Quarta-feira, 29 de Agosto de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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 Alexandre O'Neill

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Inveja do Mundo Real

 

 

Pegara em casa num bloco A5 para tomar notas em Agosto (há sempre blocos à minha volta; este é da Presidência Portuguesa da U.E.O. no primeiro semestre de 2.000, tinha eu deixado de ser o manda-chuva lá do sítio há um mês e logo a seguir  a U.E.O. foi extinta) e já tinha com certeza mexido nele. No canto superior direito da primeira página encontrei escrita pela minha mão mas com caligrafia que permite identificar cada letra, a palavra Nietzsche. Devo-a ter posto ali depois de verificar a ortografia no Google, instrumento precioso para quem tenha «linhas mortas» como diria o falecido embaixador António de Faria; deadlines, dir-se-á correntemente porque tal é o caso de quase toda a gente que escreva nestes dias. Instrumento precioso porque poupa não só idas laboriosas a livrarias ou bibliotecas mas também simples viragens de torso na cadeira para o braço alcançar a estante dos dicionários mais utilizados.

 

É claro que nesta terra de poetas haverá muitas e muitos, sobretudo entre gente nova desempregada ou em busca de primeiro emprego, ou em reformados com décadas de tempo para matar à sua frente, a escrevinhar por amor à arte. Mas a vasta maioria dos escribas do nosso tempo (escriba – o que escreve), acocorados ou não, estará mais inclinada a dar razão ao Dr. Johnson, sempre lapidar: «No one but a blockhead would write except for money». O Dr. Johnson, Samuel de sua graça, é especialidade regional inglesa tão típica quanto a ausência de bilhete de identidade, a condução à esquerda ou a falecida Rainha Mãe, née Elisabeth Bowes-Lyon no seio de família fidalga escocesa. A Rainha a que nós chamamos Isabel II não tem uma gota de sangue inglês nas veias, salvo se, como diria Camilo, tiver havido ao longo dos séculos um ou outro capelão atravessado. De resto, o escritor Evelyn Waugh – juntamente com George Orwell um dos dois gigantes da prosa inglesa do século XX – que era profundamente monárquico, era também visceralmente anti-snob porque, dizia, depois de séculos de costumes ligeiros e divórcio impossível, vá lá saber-se.

 

Hoje uso às vezes expressões ou palavras estrangeiras não traduzidas, como aconteceu em blocos anteriores. Traduttore traditore e, além disso, quem leia hoje português, lê algum inglês e às vezes até um resto de francês. Prefiro fazer assim a arriscar-me a tradução, arte muito difícil, com praticantes prestigiosos e astutos (quem fez de The Importance of being Earnest «A Importância de ser Severo» vem logo à mente), monumentos históricos (o primeiro Fausto de Goethe no francês de Gérard de Nerval), divergências insanáveis (em línguas modernas, do grego de A Guerra do Peloponeso) e puro génio (Mais où sont les neiges d’antan,  segundo Alexandre O’Neill: «Ai onde transpira agora/O bom sovaco d’outrora!»).

 

Há mais ainda.A passagem de língua sem escrita para português deu-nos Inveja do Mundo Real, nome de pessoa nascida em PALOP e não frase deliberadamente confusa para comentar em exame de Filosofia.

 

 

 

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Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Davos, Suíça

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Ricos e pobres no mundo inteiro

 

 

 

Quando eu era antropologista praticante publiquei um livro em inglês, sisudo como o título sugeria: A Portuguese Rural Society. Estávamos em 1971 e eu pensara poder inventar nome menos aborrecido para lhe chamar mas quando já havia provas revistas, as fotografias do Mano João e do meu chorado Gérard tinham sido escolhidas, tudo pronto para a feitura física dos volumes da edição, eu não encontrara ainda nome que armasse ao pingarelho quantum satis. No meu gabinete, nos escritórios da Oxford University Press, na oficina da tipografia escolhida para a impressão, o nome continuava a ser o da tese de doutoramento na qual o livro se baseara.

 

A certa altura ocorrera-me chamar-lhe Before the Revolution (explicando no prefácio que, apesar do ambiente e das condições de vida daquelas aldeias tal poder sugerir a algumas cabeças jovens e entusiásticas da burguesia urbana, não iria haver revolução nenhuma) mas desisti por me parecer pretensioso (três anos depois teria ajudado às vendas, mas fosse lá alguém saber). Em última tentativa, passei um dia inteiro numa pequena biblioteca da Universidade com uma “Concordance” de Shakespeare, a ver se havia qualquer verso, dito, frase do Bardo que incluísse as palavras peasant ou peasants e me desse de bandeja o título de que eu precisava. Qual o quê: no tempo de Shakespeare, bem antes de ilusões sobre as virtudes e belezas dos camponeses terem animado almas românticas (e, mais tarde, de pungências sobre o seu sofrimento terem animado almas neo-realistas – No impressionismo, pinta-se o que se vê; no expressionismo pinta-se o que se sente; no neo-realismo pinta-se o que se ouve contou-me o Luís de Sousa que já não sei que professor ensinava por essa altura numa das universidades de Londres), não se escrevia nada de simpático sobre peasants, gente rude, sem maneiras nem conversa, mais própria para se roçar por bestas do que para convívios humanos. Vão tal esforço derradeiro, foi A Portuguese Rural Society que apareceu nas livrarias.

 

Depois da Revolução, que afinal sempre viera, podia por fim aparecer edição portuguesa que a Sá da Costa me propôs e a questão do título levantou-se de novo. Não me lembro se por sugestão minha, ou do João Sá da Costa ou da mulher dele, Ricos e Pobres no Alentejo foi escolhido e (salvo o Iá, Deus lhe tenha a alma em descanso, que com sentido moral exigente me disse, contristado, achar o título demagógico) toda a gente achou bem: o Alentejo tinha fama de grandes diferenças – lavrador abastado dissera um dia de trabalhador despedido que lhe queimara a seara: “Custou-lhe mais o fósforo do que a mim o trigo”.

 

Eram outros tempos e temos a mania das grandezas. Números divulgados este mês mostram que 82% da riqueza mundial gerada o ano passado couberam a 1% dos habitantes, enquanto os 50% mais pobres - 3,6 mil milhões de pessoas - não viram qualquer melhoria. As fortunas de 8 homens somam o mesmo que a totalidade dos bens desses 3,6 mil milhões.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 17 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Las Vegas 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Patos bravos

 

 

 

As mesmas palavras dizem coisas diferentes segundo os lugares. Em norueguês, “pato bravo” traz logo à cabeça peça de teatro de Ibsen (e em inglês também, em certas circunstâncias: vi uma tarde em Nairobi cartaz de representação teatral nessa noite e noites seguintes, por actrizes e actores negros do Quénia, alguns dos quais lá estavam figurados, de The Wild Duck de Hendrik Ibsen). E poderia ter visto cartaz equivalente, escrito em dinamarquês, numa rua de Copenhaga, porque a língua em que Ibsen escreveu os seus dramas era o dinamarquês, embora Ibsen ele próprio fosse norueguês - não é bem o mesmo que Luís Bernardo Honwana, sendo moçambicano, escrever em português, mas tampouco é completamente diferente porque a Noruega, se não estou em erro, a certa altura foi colónia ou coisa parecida da Dinamarca - e como o disparate não poupa ninguém, nem os escandinavos, quase sempre tão certinhos em tudo, há agora na Noruega espíritos desembaraçados que retrovertem Ibsen para norueguês moderno, oferecendo a públicos de representações teatrais e a leitoras de livros o que eles entendem ser como Ibsen teria escrito agora. Disse-me entendida um dia que o dito norueguês moderno soava feio e tosco, enquanto o Ibsen original soava bonito e subtil, mas essa minha amiga era um alma sensível e considerava que o punhado de homens e mulheres, instruídos obrigatoriamente, que julgavam estar assim a fazer justiça ao verdadeiro espírito do dramaturgo, estavam na realidade a caricaturá-lo, ainda por cima com mau gosto.

 

Já as três palavras Le Canard Sauvage, lidas em parede de uma rua de Bruxelas, só depois de muitas voltas lembrariam o mister – ou arte, ou engenho – de Racine, Goethe ou Shakespeare ou, porque não, do próprio Ibsen (tenho dias em que não consigo impedir-me de complicar as coisas…) mas antes, prosaica e gulosamente, sugeriria restaurante mais ou menos pretensioso. Em Bruxelas, ou em Estrasburgo, ou em Mulhouse, ou em Basileia, ou em qualquer outro vestígio do Reino Lotaríngio, tudo isto em grande parte depois Ducado de Borgonha, e hoje, Suíça, França, Luxemburgo, Bélgica Valónica, um dos ramalhetes de lugares no mundo onde há séculos se come e se bebe muito bem.

 

Em Lisboa, isto é, na Lisboa do meu tempo - não sei se hoje se falará por lá assim – o significado de ‘pato bravo’ era outro ainda. Um pato bravo era um construtor civil que fizera fortuna e passara a novo rico, nem sempre com honestidade pegada à sua reputação, pelo contrário, mas com jeito para escapar a complicações. Muitas vezes, não sei porquê, vindo de Tomar. Nesse Portugal, o equivalente de Trump seria um pato bravo ordinário. Mas o caso de Trump é mais complicado: os patos bravos de Nova Iorque escapam melhor à troça dos ricos-ricos se forem de Manhattan do que se forem de Brooklyn. E Trump é um pato bravo de Brooklyn. São complexos de inferioridade, uns dentro dos outros como bonecas russas, e o homem sempre a achar que não lhe estão a dar o valor devido.

 

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Quarta-feira, 10 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Toile de Jouy

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

A Ordem Natural

 

 

 

“Venha aqui falar a este Senhor que era muito amigo do seu bisavô!” A menina obedeceu à mãe e parou a trotinete ao pé de nós, virando de repente o guiador de maneira que quase a fez cair e espalhou terra do jardim à volta.

 

É bom ir pondo as crianças diante daquilo que a gente entenda ser a Ordem Natural do Mundo com parentes, amigos e inimigos devidamente colocados no espaço e no tempo, às distâncias certas, para elas não desaguarem na vida real, directas de Facebook e quejandos. E é bom porque, para além de fantasias modernas entretidas que tiram horas sem fim às vinte e quatro que cada dia tem, petizes e petizas levam agora mais tempo a perceberem como as coisas são do que levávamos quando era a nossa vez de sermos pequenos. Não sou filósofo mas oiço muitas vezes telefonia no carro e, uma manhã, voz de mulher parisiense encheu o habitáculo assim que carreguei no botão: “Comme disait Lacan, le réel c’est quand on se cogne!”. Antes de figurar o ‘maître à penser’, por uma única vez, pareceu-me a mim, autor de verdade como um punho, que tanta influência teve – e tem – em gerações seguidas de intelectuais e candidatos a intelectuais do país de Edith Piaf e Marcel Cerdan (e tão pouca marca deixa se se tenta traduzi-lo: quando o meu amigo David Callagher trabalhava para o Times Literary Supplement quiseram dedicar um número à vida intelectual francesa da época e pediram artigos a autores na moda – Lévi-Strauss, Derrida, Leroy Gouraind, Merleau-Ponty, etc., incluindo Lacan – os artigos chegaram, foram traduzidos, tirando o de Lacan que o staff do TLS não conseguiu verter para inglês e foi posto a circular pelos melhores departamentos de francês das universidades britânicas mas sem resultado tangível, enquanto Lacan telefonava insistentemente a David - “Alors, Monsieur Callagher: mon article?” – as repostas sucediam-se, idênticas, implacáveis: It doesn’t make sense in English), antes pois de Lacan figurar no meu espírito, veio François Villon, cinco séculos mais velho, a louvar a fala das parisienses do seu tempo: “Il n’est bom bec que de Paris!” A galanteria francesa arranja sempre maneira de se sobrepor nos nossos espíritos a aspectos menos agradáveis dos costumes e do temperamento gauleses. Os jornais – ou melhor, o que no nosso tempo tecnológico por eles passa na net – informam que Catherine Deneuve e mais noventa e nove mulheres vieram manifestar-se contra o que acham excessos de puritanismo anglo-saxónico do movimento “me.too”. Violação é violação, mas insistência, mesmo desajeitada, em sedução não o é; o que se tem passado e está a passar-se nos Estados Unidos (e noutros recantos protestantes do mundo) nestas matérias e matérias afins, é patético e perigoso. (Cínicos provocadores talvez publiquem Grab my pussy the French way; mas, no geral, Deneuve & Co trazem bom senso e bom gosto a estados de alma que perderam ambos).

 

Velhice é outra questão. Ser muito amigo do seu bisavô põe pontos pesados demais nos is.

 

 

 

 

 

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Terça-feira, 30 de Agosto de 2016

Fernando Guedes, editor e homem de cultura

 

 

Untitled-1.jpgFernando Guedes (1929-2016)

 

 

 

 

Ignoro se têm sido muito ou pouco estudadas eventuais afinidades do nosso modernismo com o dos Britânicos, para além da comum recusa do sentimentalismo (mas talvez não a procura radical da despersonalização e do distanciamento, que quase só encontramos em Pessoa; a estética imagista só terá verdadeira expressão portuguesa com Alberto de Lacerda, mas esta poderá ser uma opinião controversa), mas não resisto a chamar a vossa atenção para os conselhos que William Carlos Williams, um outro americano que foi figura de proa do Imagismo, dava à poeta inglesa Denise Levertov, em 1954, repercutindo ainda nesse momento, de forma bastante fiel, o ideário imagista de Pound e Eliot em 1914. Dizia ele: «Corte, e corte de novo, tudo o que escrever — ao mesmo tempo que por obra da sua arte não deixa vestígios dos cortes — e o resultado final ficará repleto do que tem para dizer».

 

O crítico britânico Harold Monro, num livro intitulado Some Contemporary Poets, publicado em 1920, conta a história de um jovem poeta americano recém-chegado dos Estados Unidos que procurou Eliot a fim de lhe mostrar os seus trabalhos. Este, ponderou longamente em silêncio um poema e, erguendo finalmente os olhos, terá dito: «Precisou de 97 palavras para o fazer; eu acho que poderia tê-lo feito em 56». Mas nada disto era novo e os próprios imagistas não se cansavam de o afirmar: «Estes princípios não são uma novidade; caíram em desuso. Eles são o essencial de toda a grande poesia».

 

É claro que estamos no plano estilístico da precisão. Mas creio que poderíamos articular isto, independentemente dos particulares relativos à diferença de contextos, com o que António Ferro — fundador e referência desta Casa — escrevia, em 1919, em Leviana (publicado em 1921):

 

«O excesso de pormenores embrulha a concepção, a intenção. Já que não podemos simplificar a vida, simplifiquemos a literatura. A literatura, como a vida, está atravancada. Há que descongestioná-la: um só quadro numa parede, dois ou três móveis em cada sala. Simplifiquemos! Simplifiquemos! A falta de espaço é cada vez maior. Há que fazer peças com poucas personagens, romances com poucas páginas, telas com poucas tintas. Seleccionar! Seleccionar! Escrever muito é fácil. Escrever pouco é heróico, muitas vezes. Poucos escritores têm essa coragem».

 

Como é sabido, The Waste Land, o poema de Eliot que Fernando Guedes considera o mais visionário do século xx, foi drasticamente reduzido na sua dimensão pela mão de Pound, que na dedicatória de Eliot é justamente designado como il miglior fabbro.

 

***

 

Há muito que Fernando Guedes se interessa por estes dois autores, Eliot e Pound. Poeta, ligado à Távola Redonda, nessas «folhas de poesia», cuja publicação se iniciou em Janeiro de 1950, apresentou e traduziu ambos (possivelmente pela primeira vez entre nós, como ele próprio notou na sessão de apresentação do livro). Eliot fora distinguido com o Nobel em 1948; Pound, internado num hospital psiquiátrico, recebera o Prémio Bollingen, em 1949. Posteriormente, no final da década, Fernando Guedes haveria de dirigir uma outra revista que logo no título – Tempo Presente – evocava Eliot (O tempo presente e o tempo passado/ São ambos presentes talvez no tempo futuro/E o tempo futuro contido no tempo passado) e que no segundo número apresentava traduções de Pound e saudava a sua libertação, ocorrida no ano anterior.

 

Deste modo, o que Fernando Guedes faz nestas quatro comunicações é arrumar de forma condensada o seu próprio percurso de leitor de Eliot e Pound ao longo de décadas e apresentar a sua visão sobre o lugar de cada um deles na poesia do século xx. Partindo de uma perspectiva, que foi antes de mais geracional, de reavaliação da modernidade face à tradição, de indagação estética (o tal percurso partilhado em fraterna amizade com Fernando Lanhas), mas também ideológica na marcação das suas distâncias, Fernando Guedes engloba no seu interesse por estes poetas a dinâmica concisa e complexa da estética imagista, a relação com as artes plásticas, e, muito particularmente, a sua ressonância mítica e religiosa.

 

 

Jorge Colaço

 

Excerto de um texto lido no Círculo Eça de Queirós no dia 4 de Setembro de 2014 a propósito do livro de Fernando Guedes T. S. Eliot e Ezra Pound – uma tentativa de aproximação às suas vidas e às suas obras, publicado nesse mesmo ano.

 

 

O artigo de Jorge Colaço  Na morte de Fernando Guedes (1929-2016)  aqui.

 

Algumas obras de Fernando Guedes disponíveis na Wook aqui

 

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 6 de Agosto de 2016

dicionário pessoal : palinódia

 

 

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palinódia
pa.li.nó.di.a
nome feminino
(do grego palinodía, canto diferente)

 

 

Como género literário da Grécia antiga era uma retractação, que servia ao autor para desdizer ou desmentir o que dissera num canto anterior. Nem sempre é fácil perceber se tais retractações eram sinceras, mas é um facto que a palinódia se tornou uma forma poética que teve a sua fortuna. Estesícoro, no século VII-VI a.C., terá sido o primeiro a usá-la. Leopardi, já no século XIX, retomou o género na «Palinodia al marchese Gino Capponi», que a certa altura diz assim: «Vendo isto/ e meditando profundamente sobre as largas/ folhas, de minhas graves, antigas/ ilusões e de mim próprio senti vergonha.»* (tradução de Albano Martins). Em português, tanto na variante brasileira como na europeia, o termo designou, pelo menos a partir do século XIX, a mudança de opinião, sobretudo política, sem rasto da retractação original. Isto é, sem vergonha.

 

 

*Così vedendo,/ e meditando sovra i largui fogli/ profondamente, del mio grave, antico/ errore, e di me stesso, ebbi vergogna.

 

 

 

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Segunda-feira, 13 de Junho de 2016

lisbon poets & co.

 

 

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 7 postais ilustrados por André Carrilho

 

 

 

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 lisbon poets & co. no Facebook aqui

 

Poètes de Lisbonne - Camões, Cesário Verde, Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Pessoa | Traduction Élodie Dupau.

 

 

Lisbon Poets - Camões, Cesário Verde, Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Pessoa | Portuguese originals and English translations, by Austen Hyde and Martin D'Evelin | Illustrations by André Carrilho | Foreword by Leonor Simas-Almeida | 1st edition: June 2015  Publisher: lisbon poets & co.

 

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Domingo, 13 de Setembro de 2015

Tomaz Kim (1915-1967)

 

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  Tomaz Kim / Joaquim Monteiro-Grillo

 

 

Nascido há cem anos, em 1915, e desaparecido em 1967, foi poeta*, professor da Faculdade de Letras de Lisboa, ensaísta, tradutor. Deu a conhecer ao público português muitos escritores da literatura inglesa e americana.

 

É justamente recordado este mês no Jornal de Letras num extenso artigo ilustrado com uma fotografia que aqui publiquei em 2009. Foi aliás a fotografia que me conduziu à descoberta do excelente texto de Fernando J. B. Martinho, de que reproduzo este pequeno excerto, a acompanhar uma tradução de Tomaz Kim que encontrei junto de recordações dele que os meus pais guardaram, neste caso uma simples folha de bom papel, bem impressa em frente e verso.

 

*  

 

Os dois volumes do que consideramos ser a segunda fase da sua obra situam-se num período em que a carreira académica do poeta iniciada em 1947 alcança justíssimo reconhecimento institucional, que a morte precoce, em 24 de Janeiro de 1967, pouco antes de atingir os 52 anos, veio, lamentavelmente, interromper. É este um período em que o poeta, fiel continuador do que há já de uma sólida tradição modernista em termos nacionais e internacionais, faz acompanhar a sua prática poética da tradução de poetas ingleses e americanos (com maior incidência na 2ª metade dos anos 40, no Diário Popular), e de textos de doutrina crítica, de Shelley e T.S. Eliot, e de ampla produção crítica e ensaística própria, que assina com o seu nome civil, Joaquim Monteiro-Grillo ou J. Monteiro-Grillo.

[Fernando J. B. Martinho in "Tomaz Kim Um poeta de tempos dramáticos" - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Número 1172 – 2-15 Setembro de 2015] 

 

 

 

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Minster Lovell, de David Wright, tradução de Tomaz Kim

 

 

 

 

 

MINSTER LOVELL 

 

 

Now I a ghost ascend a broken stair

where no more the cold fingers of the rain

comb, or the winds caress my long brown hair;

I move among the populous passages

peopled with brown leaves and the sluggish weed,

and the wind's mutterings and memories

of sere wolds and the dark Atlantic seas.

 

 

Remembering now the dancing. O my lover

break down the cold embraces of the grave:

murder the time, recover

the lost words, the lost glances.

 

 

Remembering now the dancing. I remember

voice of the harp, the tender

not of the flute, the tremble

of the low-toned clavichord;

the whisper of the dresses

as the dancers turned and parted

as the music paused and started.

The dancers are departed.

 

 

 

Now I a virgin ghost, under the cold

and lunatic moon, forsaken. Whom these walls

already have forgotten. Whom they hold

in the dark rain of spring, in the cascade

of the clear pool that will not wet my feet.

 

 

 

O find me whom I fled

before the leaden pressure of the lid

weighs down the thin white arms and bended head.

Who only hears the voices on the stair

who cannot hear the dry grate of the lock.

 

 

 

I am bound in with darkness. In the iron

strong womb of time. The lover

clasped by a stronger, more enduring arm;

in a more proud embrace.

 

 

 

O find me. Find, recover.

Break down the cold embraces of the grave:

shatter these hasps, and scatter

eternal walls, and batter

with a white leap of light the night. Discover

the bright horizons.

 

 

 

I heard a footstep on an outer stair:

I heard a voice call once, and call my name.

I blinded in the tangle of my hair,

pressed in with darkness. Who will not recapture

the sunlight or the crocus, who will wander

in the moon's error and the winds, forgotten.

Virgin of the spring rains, among these walls.

 

 

 

Now I the ghost of a delighted bride

brought to a dark unrobing, and a bed

celibate, to surrender

a living virginity for a dead;

O this my pride to tender

to the malicious worm my slender head.

Brown hair and white limbs, who will not remember?

 

 

 

I not await him. I await no lover;

who overtakes the still feet of the years?

And I have mouldered in the dust too long,

too long my being in the. darkness fed.

Under the sallow moon I must await,

tenant of hollow winds and bitter rain,

the new birth of the crocus. Non deliver.

 

 

 

And none return. The constellations wheel

westward; and westward the reluctant moon.

None shall burst down the indurate barriers;

none open wide the doors: and none return.

Westward the moon. Inhabitant of the springs,

the short grass and the broken palaces,

I meditate the winds and the cold rain.

 

DAVID WRIGHT *

 

 

 

 

 

MINSTER LOVELL (tradução de TOMAZ KIM)

 

 

Ora, eu, um espírito, ascendo a escada carcomida

Onde não mais os álgidos dedos da chuva penteiam,

Ou o vento acaricia, a minha longa cabeleira fulva.

Caminho por entre populosas veredas

Povoadas de folhas secas e erva daninha inerme

E murmúrios do vento

E lembrança

De tantos plainos e sombrios mares atlânticos.

 

 

 

Lembro, agora, a dança... Ó, meu amado!

Desenlaça o gélido abraço da tumba:

Assassina o tempo,

Retoma as palavras perdidas, o perdido olhar...

 

 

 

Lembro, agora, a dança.,.

Lembro a voz da harpa,

O terno trinar da flauta,

O trémulo grave do clavicórdio,

O sussurro das vestes,

enquanto os bailarinos rodopiam e se separam,

Quando a música se detém e recomeça.

 

 

 

Foram-se os bailarinos.

 

 

 

Ora, eu , espírito de uma virgem,

Abandonada sob a lua fria e tonta,

A quem estes muros já esqueceram,

A quem eles retêm na chuva escura da Primavera,

Na cascata da límpida lagoa que não molhará meus pés...

 

 

 

Oh, encontra-me, a mim, de quem eu fugi,

Antes que o plúmbeo peso da tampa

Comprima os alvos braços esguios e a cabeça tombada,

Aquela que ouve apenas as vozes na escada

Aquela que não pode ouvir do ferrolho o áspero arranhar.

 

 

 

Envolta estou em treva

No fero útero férreo do tempo.

O amado,

Enlaçado por um braço mais firme e duradouro

Num mais soberbo abraço.

 

 

 

Oh, encontra-me,a mim. Busca, retoma.

Desenlaça o gélido abraço da tumba,

Despedaça estas ferragens

E dispersa os muros eternos

E desfaz a noite com um alvo arranco de luz.

Descobre os rútilos horizontes ...

 

 

 

Ouvi passos numa escada, lá fora,

Ouvi uma voz a chamar uma vez, a chamar pelo meu nome.

Eu fiquei cega no emaranhado do meu cabelo,

Confundida com a escuridão,

Eu, aquela

Que não virá acolher a luz do sol ou a flor do açafrão,

Aquela que vagueará, esquecida,

Nos enganos da lua e do vento,

Virgem das chuvas da primavera,

Entre estes muros...

 

 

 

Ora, eu, espírito de uma noiva deslumbrada,

Levada a um tenebroso desvelar

E a um leito solitário

Para render

Uma virgindade viva a uma virgindade morta...

Oh, este, o meu orgulho:

Ofertar ao verme malévolo a minha cabeça donairosa!

Cabeleira fulva e alvos membros, Quem os não lembrará?

 

 

 

Não espero por ele. Não espero nenhum amante;

Quem ultrapassará as quietas passadas dos anos?

E eu me desfiz em pó, no pó, há muito, já...

Há muito, já, meu ser das trevas se alimentou.

 

 

 

Hóspede do vento cavo e amarga chuva,

Sob a lívida lua, eu tenho de aguardar

O novo natal da flor de açafrão.

 

 

 

Ninguém o fará.

 

 

 

E ninguém regressará.

As constelações rodam para ocidente

E para ocidente, a lua relutante.

Ninguém derrubará as barreiras firmes,

Ninguém escancarará as portas

E ninguém regressará.

Para ocidente, a lua.

 

 

 

Habitante das fontes,

Da erva núbil e dos palácios em ruínas,

Eu pondero os ventos e a chuva fria!

 

 

 

 

*

 

 

Notas: 

 

Obra Poética de Tomaz Kim aqui

 

Cadernos de Poesia aqui

 

Fundada por Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti, a revista “Cadernos de Poesia” teve publicação intermitente, em três séries e quinze números, nos anos 1940-42, 1951 e 1952-53, revelando alguns dos poetas portugueses mais marcantes da segunda metade do século XX: além dos fundadores, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade.

 

 

David Wright aqui 

 

 

 

Veja também neste blog os posts:

 

 

Exercícios Temporais

 

Tempo de Amor

 

Amigos (1950)

  

Cozinha do mundo português

 

 

 

 

 

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Sábado, 27 de Setembro de 2014

Carta a Garrett (2005)

 

 

Cristina Ténis 1965.jpg

 

 

Cristina Futscher Pereira

17 Abril 1948—27 Setembro 2005 

 

 

 

 

 

Caro Almeida Garrett

 

 

Perdoe-me tão directa interpelação, mas creia que não o incomodaria por pouca coisa. Conhece bem o drama de partir, e de partir cedo. De partir cedo demais. Sei, por isso, que entenderá o que tenho para dizer.

 

O seu nome e a sua obra são ainda venerados nesta sua terra, embora um pouco da mesma forma que os monumentos o costumam ser. Reverenciados, mas na verdade esquecidos, ignorados, e vandalizados. Nada de novo, como muito bem sabe.

 

Imagine que se descobriram os manuscritos inéditos do seu Romanceiro misturados com outros papéis que estavam em casa de Venâncio Deslandes, na época director da Imprensa Nacional. Podemos talvez imaginar as razões pelas quais o Senhor Deslandes poderá ter levado os manuscritos para casa, mas provavelmente nunca saberemos ao certo a razão de lá terem ficado até a Cristina Futscher Pereira os ter descoberto.

 

Mas o achado constituiu também um encontro.

 

A partir desse momento o destino de Cristina Futscher Pereira passou a estar ligado ao destino desses papéis, e Você, meu caro Garrett, passou a estar no centro do seu entusiasmo. Ela pressagiava que aqueles manuscritos eram um sinal da sua boa estrela, e até construiu este pequeno «templo», de onde agora lhe escrevo, para nele partilhar as boas novas com todos os interessados.

 

Mas (quase) ninguém estava verdadeiramente interessado. Bem, houve alguns lampejos de interesse pelos papéis, noblesse oblige, embora frouxos e breves. Não sei, talvez estejamos cansados de ser um País, de ter uma História tão pesada e de tão incerto saldo.

 

Além do mais, o romanceiro é uma coisa tão out, tão old fashioned you know what I mean? —, é coisa de um mundo que já não existe, e que por isso já não nos interessa. Claro, é bom que se preserve, alguém que se encarregue de guardar essas coisas. Pode ser que um dia façam falta, sei lá.

 

Apesar de tudo, o meu Amigo nem tem muito de que se queixar. Apesar do infortúnio pedagógico das Viagens, ainda faz parte do cânone, ninguém lhe impugna o episódio do Mindelo, ainda lhe dão palco nos teatros, o fraque verde, a gravata de cor e o chapéu branco ainda causam um simulacro de furor entre as senhoras. Da sua poesia sobraram as Folhas Caídas (cujo pathos aumenta se se souber da história com a viscondessa da Luz), e a sua eloquência ainda ecoa vagamente no Parlamento. Outros não se podem gabar de tanto.

 

Mas na verdade pouca gente o lê e, hélas!, cada vez menos gente fala a mesma língua em que Você escreveu páginas tão marcantes.

 

Adiante. Eu conheci a Cristina por sua causa. Digamos que foi o ilustre Autor que propiciou o nosso encontro. Assim que lhe ouvi os planos, logo a alertei para esperar muito pouco ou nada. Mas o meu cepticismo foi cedendo à sua energia e vontade de suscitar um interesse renovado pela sua figura e pela sua obra, caro Garrett. E a isso eu não me poderia negar.

 

O resultado dessa colaboração está aqui nestas páginas escritas no éter (o meu caro Amigo perdoará não me atrever sequer a tentar explicar-lhe o que isto é…), mas está também nas muitas cartas que trocámos, através da quais o nosso relacionamento atingiu a patente de amizade.

 

Caro Almeida Garrett, a Cristina Futscher Pereira morreu.

 

Partiu cedo demais, como também aconteceu consigo. Com a morte dela, morre também este espaço que ela lhe dedicou, no qual eu tive a honra e o gosto de participar.

 

Ele aí – aí?, aqui? – fica, como testemunho de como lhe pulsou o coração ao longo do seu último ano de vida. A Cristina fez o que pôde, até já não poder fazer mais. Mas fica também o exemplo, e, quem sabe?, talvez ele frutifique, talvez possa ser retomado. Não é verdade que todos lhe devemos isso?

 

Cumprido este dever de que voluntariamente me incumbi, despeço-me com a estima e a admiração de sempre.

 

Jorge Colaço

 

Post-Scriptum – Se os mortos e os tempos conviverem e se misturarem como acontece na Torre de Barbela de Ruben A., estou certo de que há-de vir a conhecer a Cristina. Peço-lhe que a trate como a uma boa e dedicada Amiga.

 

 

 

 

Notas:

 

Este texto fechou o blog O Divino em 2005. O blog garrettiano fora criado por Cristina em 2004 e foi retirado dos blogs do sapo cinco anos depois.

 

Jorge Colaço é o autor dos blogs Retentiva e Conteúdos em Português. 

 

 

Leia também os posts

 

Long Live Garrett

 

Garrett inédito

 

Garrett liberal, romântico, escritor, homem de espírito, pesquisador, homem de acção...

 

Garrett leitor de Vicente

 

Venâncio Augusto Deslandes (1829-1909)

 

 

Inéditos do romanceiro garrettiano neste blog na tag Garrett 

 

 

 

 

 

 

Lettre à Garrett (2005)

 

 

Cher Almeida Garrett,

 

Pardonnez-moi de vous interpeller ainsi, si soudainement, mais, croyez bien que je n’oserais pas vous importuner pour un rien. Partir, et partir tôt, est un drame que vous connaissez bien. Partir trop tôt. Je sais, donc, que vous comprendrez ce que j’ai à vous dire.

 

Votre nom et votre œuvre sont encore vénérés dans ce pays qui est le vôtre, même si on leur voue, en somme, l’estime accordée habituellement aux monuments. Révérés, mais en vérité, oubliés, ignorés et vandalisés. Rien de nouveau, nous le savons bien.

 

Imaginez-vous que les manuscrits inédits de votre Romanceiro ont été découverts dans un tas de papiers qui se trouvait chez Venâncio Deslandes, jadis directeur de l’Imprensa Nacional. Il n’est pas difficile d’imaginer les raisons qui auront conduit Monsieur Deslandes à rapporter le manuscrit chez lui mais nous ne saurons probablement jamais le fin mot de l’histoire qui explique qu’ils y soient restés jusqu’à ce que Cristina Futscher Pereira ne les déniche.

 

Mais cette découverte fut aussi une rencontre.

 

Car, dès cet instant, le destin de Cristina Futscher Pereira s’est mêlé à celui de ces documents. Et vous, mon cher Garrett, sachez que vous avez nourri son enthousiasme. Elle pressentait que ces manuscrits étaient une manifestation de sa bonne étoile et alla même jusqu’à construire ce petit temple d’où je vous écris, pour y partager les bonnes nouvelles avec tous ceux qu’elles intéresseraient.

 

Mais, (presque) personne ne se montra intéressé. Enfin, il y eu quelques lueurs d’intérêt pour ces documents, noblesse oblige , bien qu’elles fussent mornes et brèves. Qui sait, peut-être sommes-nous fatigués d’être un Pays, d’avoir une Histoire si pesante, au bilan si incertain.

 

Et puis, un Romanceiro, n’est-ce pas quelque chose de complètement has been, si old fashioned – you know what I mean? – quelque chose qui appartient à un monde qui n’est plus et qui a donc cessé de nous intéresser ? Bien sûr, il convient de le protéger et quelqu’un doit se charger de conserver ces choses. Ça pourrait venir à manquer, un jour, qui sait ?

 

Et pourtant, cher ami, vous avez bien peu de raisons de vous plaindre. En dépit de l’infortune pédagogique de Voyages , vous faites encore partie du canon, personne ne vous réfute l’épisode de Mindelo, la scène des théâtres vous est encore ouverte, le frac vert, la cravate colorée et le chapeau blanc provoquent encore bien des émois chez la gente féminine. De votre poésie, il reste Folhas Caídas (dont le pathos augmente quand on connaît l’histoire de la vicomtesse de Luz) et votre éloquence résonne encore vaguement au parlement. Tout le monde n’a pas la chance de pouvoir en dire autant.

 

Mais en réalité, votre œuvre est bien peu lue et, hélas ! , rares sont ceux qui parlent encore cette langue dans laquelle vous avez écrit ces pages si remarquables.

 

Poursuivons. J’ai connu Cristina à cause de vous. Disons que c’est l’écrivain illustre qui est à l’origine de notre rencontre. A peine m’avait-elle fait part de ses projets que je lui disais de ne rien attendre, ou si peu. Mais mon scepticisme a cédé face à l’énergie qui l’animait et à son désir d’éveiller un intérêt renouvelé pour votre personne, cher Garrett, et pour votre œuvre. Comment aurais-je pu refuser ?

 

Le résultat de cette collaboration est là, dans ces pages écrites dans l’éther (vous me pardonnerez, cher ami, de ne pas me risquer à la moindre explication...) mais aussi, dans ce riche échange épistolaire d’où est née une amitié certaine.

 

Cher Almeida Garrett, Cristina Futscher Pereira n’est plus.

 

Elle est partie trop tôt, comme vous. Avec elle, disparaît également cet espace qu’elle vous avait consacré et auquel j’ai eu l’honneur et le plaisir de participer.

 

Et lui là, – là ? Ici ? – reste pour témoigner de ces battements de cœur que vous avez provoqués tout au long de sa dernière année de vie. Cristina a fait ce qu’elle a pu jusqu’à ne plus pouvoir. Mais son exemple est là et, qui sait, peut-être fera-t-il des émules, peut-être sera-t-il repris ? N’est-il pas vrai que nous lui sommes tous redevables ?

 

C’est le devoir accompli - dont je me suis moi-même investi - que je vous salue, toujours plein d’estime et d’admiration.

 

 

 

Jorge Colaço

 

Post-Scriptum – Si les morts et les époques se rejoignent et se mêlent comme dans La Tour de Barbela de Ruben A., vous finirez par faire la connaissance de Cristina. Je vous demande de lui accorder le traitement que l’on réserve aux amis sincères et dévoués.

 

 

 

Traduction de Laurence Corréard

 

 

 

Lettre à Garrett fut le dernier texte publié dans O Divino , un blog créé par Cristina en 2004.

 

 

 

 

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Sábado, 10 de Maio de 2014

Levels of Life / Os Níveis da Vida

 

 

 Julian Barnes

 

 

First Nietzsche, then Nadar. God is dead, and no longer there to see us. So we must see us. And Nadar gave us the distance, the height, to do so. He gave us Gods distance, the Gods-eye view. And where it ended (for the moment) was with Earthrise and those photographs taken from lunar orbit, in which our planet looks more or less like any other planet (except to an astronomer): silent, revolving, beautiful, dead, irrelevant. Which may have been how God saw us, and why He absented himself. Of course I don't believe in the Absenting God, but such a story makes a nice pattern.

 

When we killed — or exiled — God, we also killed ourselves. Did we notice that sufficiently at the time? No God, no afterlife, no us. We were right to kill Him, of course, this long-standing imaginary friend of ours. And we weren't going to get an afterlife anyway. But we sawed off the branch we were sitting on. And the view from there, from that height — even if it was only the illusion of a view wasn't so bad.

 

We have lost God's height, and gained Nadar's; but we have also lost depth. Once, a long time ago, we could go down into the Underworld, where the dead still lived. Now, that metaphor is lost to us, and we can only go down literally: potholing, drilling for minerals, and so on. Instead of the Underworld, the Underground. Some of us will go down into the earth at the end of it all. Not very far, just six feet down; except that the scale of depth is lost as you stand there and throw flowers down on to a coffin lid, whose brass nameplate winks back at you. Then, it looks and feels a long way down, six feet.

 

 

Julian Barnes

in Levels of Life

Jonathan Cape 2013

© Julian Barnes

 

*

 

 

 

Primeiro Nietzsche, depois Nadar. Deus morreu e já não está lá a ver-nos. Por isso temos nós de nos ver. E Nadar deu-nos a distância, a altitude para o fazermos. Deu-nos a distância de Deus, a visão do olhar de Deus. E onde chegou (até agora) foi ao Nascer da Terra e àque­las fotografias tiradas da órbita lunar, nas quais o nosso planeta parece praticamente igual a outro planeta qual­quer (exceto para um astrónomo): silencioso, rotativo, lindo, morto, irrelevante. Que pode ter sido como Deus nos viu e a razão pela qual se ausentou. E claro que não acredito no Deus Ausente, mas uma história assim é um belo paradigma.

 

Quando matámos (ou exilámos) Deus, matámo-nos também. Demos realmente por isso, na altura? Nem Deus, nem vida depois da morte, nem nós. Fizemos bem em matá-lo, é claro, ao nosso amigo imaginário de longa data. Também não íamos ter vida nenhuma depois da morte. Mas serrámos o ramo onde estávamos sentados. E a vista de lá, daquela altura — ainda que fosse uma vis­ta ilusória — não era assim tão má.

 

Perdemos a altitude de Deus e ganhámos a de Na­dar; mas também perdemos profundidade. Outrora, há muito tempo, podíamos descer ao Submundo, onde os mortos continuavam a viver. Hoje, para nós, essa metá­fora perdeu-se e só podemos descer literalmente: espe­leologia, extração de minério e assim por diante. Em vez do Submundo, o Metropolitano. Alguns de nós des­cem à terra, quando tudo acaba. Não é muito, só um me­tro e tal; mas a escala de profundidade perde-se, quando estamos ali de pé a atirar flores lá para baixo, para a tampa de um caixão, e o nome na placa de latão nos res­ponde com um piscar de olho. Então parece-nos e senti­mos que é muito fundo, um metro e tal.

 

 

Julian Barnes

in Os Níveis da Vida

© 2013 Quetzal Editores/ Julian Barnes

 

tradução de Helena Cardoso

 

 

 

 

publicado por VF às 12:03
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