Quarta-feira, 16 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 

 

 

Cem anos depois

 

 

A Primeira Guerra Mundial começou vai fazer cem anos no princípio de Agosto. Livros e televisões evocam o cheiro pungente de milhões de mortos — desde 7.000 para Portugal até 1 milhão e 600.000 para a Rússia — ruínas de cidades e descampados. Os horrores que foram filmados, aqueles sobre os quais se lê e os que se adivinham são muitíssimos. E o horror maior é que menos de 21 anos após o fim da Primeira Guerra Mundial a Segunda havia começado.

 

Durou de 1939  a 1945, matou mais gente ainda (portugueses, só em Timor) e acabou, tal como a Primeira, pela derrota da Alemanha e seus aliados. A Alemanha ficou arrasada e dividida; em vez de a fazerem pagar pela guerra, perdoaram-lhe dívida e houve o Plano Marshall, foi-se recompondo sem revanchismos que levassem a outro Hitler e à tentação de nova guerra. Reunificada, democrática, cívica e próspera (até 2010, a única das grandes potências europeias invariavelmente decente com os pequenos) os incómodos que, nos últimos anos, a sua fobia patológica da inflação tem causado a vizinhos pequenos e pobres são graves mas não se comparam com a anexação nazi dos sudetas.

 

Os sudetas têm sido lembrados agora não por causa da Alemanha mas por causa da Rússia. O ex-KGB Vladimir Putin anda a armar aos czares e resolveu anexar a Crimeia (dito e feito), perturbar a parte oriental da Ucrânia e não se sabe que mais ainda. Outras terras europeias com minorias russas — Estónia, Letónia, Lituânia (três estados-membros da União Europeia, aliados na OTAN) — sentem-se ameaçadas pela retórica expansionista e revanchista do Kremlin. Juntamente com Polónia e Suécia — e E. U. A — querem que a Rússia seja avisada em termos inequívocos. Além das sanções aprovadas depois da anexação da Crimeia, deveriam explicitar-se sanções mais graves a serem aplicadas se a Rússia tornar a pôr pé em ramo verde. Apesar de Putin insistir em exercícios militares perto de fronteiras, fomento de rebelião na Ucrânia e retórica perigosamente ambígua, membros da União do sul, entre eles Portugal e às vezes Alemanha, estão relutantes a elevar o tom e recomendam “prudência e diplomacia”.

 

Atenção. O Kremlin sabe que nenhum poder ocidental mandará rapazes e raparigas matarem e morrerem pela Crimeia (e presume que pela Ucrânia também não). No mundo pre -1945 que Putin parece imaginar à sua volta, europeus e americanos devem figurar como poltrões anafados e sem chefe, incapazes de resistirem ao quero, posso e mando do Senhor de todas as Rússias.

 

Mesmo sem comemorar a Primeira Guerra Mundial com o começo da Terceira poderíamos sair vitoriosos desta embrulhada. O poder económico conjunto de Europa e Estados Unidos é tão superior ao da Rússia que sanções inteligentes levariam o Kremlin à glória. Mas seria preciso que alemães, britânicos, franceses, todos, fizéssemos pequenos sacrifícios a curto prazo.

 

Sem a coragem de conter Estaline não teria havido OTAN nem União Europeia. Esperemos que Putin chegue para nos endireitar outra vez a espinha.

 

 

 

publicado por VF às 08:15
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Quarta-feira, 30 de Outubro de 2013

Timor (1852)

 

 

 

Limites dos domínios portugueses e neerlandeses em conformidade com o projecto de Tratado estipulado pela Comissão Mista em 28 de Agosto de 1852

Documento do espólio de meu tio-avô António Caldeira Coelho



História-Antropologia TIMOR LESTE  aqui



CARTOGRAFIA  aqui



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Sexta-feira, 25 de Outubro de 2013

carta de Timor (5)

 

Quarta Semana:

 

As acácias vermelhas estão a voltar. Nos tempos da colónia as ruas eram cheias de acácias vermelhas, diz quem ainda se lembra. Depois os indonésios arrancaram-nas todas. Porquê? Maldade pura, não há outra explicação. Não se pense que alguém exagerou nas descrições da crueldade dos indonésios em Timor. Foi o padre Felgueiras que me contou os piores horrores. 86 anos quase todos passados aqui, jesuita. Em Santa Cruz morreram duzentos jovens abatidos a tiro e muitos outros “desapareceram” como toda a gente sabe. Mas o que eu não sabia é que aos feridos, levados para o hospital militar, foi-lhes deitado ácido sulfúrico pela goela abaixo. É só um pequeno exemplo.

 

 

 

 

Timor-Leste é verde, tropical húmido e no entanto nas montanhas à volta de Dili praticamente não há árvores, num fenómeno de desertificação marcado e estranho. Com tanta chuva está a desertificar? É certo que a população empobrecida dá cabo de muitas árvores para lenha e que as cabras não ajudam, mas também não há assim tanta gente nem tantas cabras. Então? O exército indonésio durante 24 anos destruiu sistematicamente a floresta que abrigava as ferozes FALINTIL. Sem raízes que agarrem a terra, as chuvas torrenciais arrastam-na. Se acaso for reversível, vai demorar muitos anos e custar muito dinheiro para reflorestar. A propósito, quando depuseram as armas, as ditas ferozes FALINTIL eram uns 120 homens descalços e famintos com, por junto e a retalho, talvez 29 balas e umas espingardas enferrujadas. Mas davam conta da cabeça de um exército bem armado, bem vestido e bem alimentado. Fica sempre bem recordar os heróis.

 

 

 

 

 

Não sei se é porque nos gramam mesmo ou se é só porque abominam profundamente indonésios e australianos. Hoje um taxista pergunta-me “Australian?”, não, portuguesa. “Ah, desculpe” como se me tivesse insultado.

 

Pantai Kalapa, a praia dos coqueiros, a minha. Muitos esgotos a correr para o mar, impensável tomar banho. As marés vivas arrancaram grandes pedaços de coral que lançaram na areia; hoje ao passear apetecia-me apanhar não conchinhas mas enormes pedregulhos. Fica para a próxima maré viva.

 

... and I reluctantly say farewell to bloomy Dili...

 

 

 

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003.

 

Uma entrevista com Isabel Feijó sobre o seu trabalho em Timor aqui

 

Arquivo & Museu da Resistência Timorense aqui

 

Fotos de Pedro Martins

 

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Sexta-feira, 18 de Outubro de 2013

carta de Timor (4)

 

Quarta Semana:

 

Esta semana chegou finalmente a oportunidade de assistir a um discurso do presidente. Full treatment.

Presidente feliz com lágrimas, de acordo com o Público. De 2a a 5a decorrreu na “Comissão de Acolhimento Verdade e Reconciliação” a primeira audiência pública sobre a guerra civil de 75 em que andaram todos a matar-se uns aos outros. Para quem não leu o Adelino Gomes, já várias vezes tinha sido marcada e outras tantas adiada. É um assunto do mais sensível já que muitos responsáveis políticos de hoje (tanto governo como oposição) foram responsáveis por grandes matanças na época. Desta vez fez-se mesmo. Era aguardado com enorme expectativa e durante as sessões Dili andou colada aos rádios para ouvir os depoimentos; os motoristas aqui do PNUD não saíam dos carros o dia inteiro, sintonizados na Rádio Timor-Leste, e quando saíam era para se juntarem em volta dum transistor. 

 

Note-se bem que isto na altura era Portugal. As nossas maravilhosas RTP, RDP e Lusa têm correspondentes em Dili. Adivinha quantos jornalistas portugueses estavam nas audiências? Quantos passaram por lá, nem que seja 5 minutos? Resposta – Um. Quem? Adelino Gomes que veio de propósito de Lisboa (no voo mais barato que encontrou e pagando do bolso dele as despesas em Dili...). Timor não é notícia. Como não estão a matar ninguém, não interessa para nada. Foram mortos uns milhares em 75 e nunca se falou disso? As feridas são fundas e a gente também teve responsabilidade. Mas o que é que isso interessa agora? Os jornalistas portugueses em Dili foram para a praia.

 

 

 

 

Aconselho vivamente a leitura dos artigos do Adelino Gomes, não posso acrescentar nada. Resta-me a minha própria comoção ao ver toda a gente a chorar com o discurso do Xanana (a começar pelo próprio, voz quebrada, olhos e nariz vermelhos, assoando-se, limpando a cara com o lenço, no meio das suas longas pausas habituais, desta vez mais longas ainda). Nem as moscas (abundantes) se ouviam.

 

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003

 

Foto de Pedro Martins

 

Arquivo & Museu da Resistência Timorense aqui 

 

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Quinta-feira, 10 de Outubro de 2013

carta de Timor (3)

Terceira Semana:

 

Esta semana a minha vida melhorou consideravelmente. Pantai Kalapa. Frase mágica, tipo abre-te sésamo! Entro num taxi, qualquer taxi, vocifero pantai kalapa e trazem-me direitinha ao hotel. Tornei-me uma mulher independente! Posso ir para qualquer lugar que, quais pedrinhas do polegarzinho, sei sempre voltar a casa. Claro que militantemente na defesa da língua portuguesa começo por dizer avenida de Portugal, passo em seguida a praia dos coqueiros mas na ausência absoluta de reacção, vergo-me ao peso da evidência e atiro-lhes com pantai kalapa. Há dias o taxista era um velho, disse hotel Esplanada. Reacção zero. Avenida de Portugal. Idem. Pantai Kalapa. “Ah...”. Passado mais um bocado. “Que horas são, por favor?” Mais um bocado. “E em Portugal que horas são?” Mais uma pausa. “Em Portugal está frio? Lá têm 4 estações?”. Riu-se como um perdido quando lhe disse que em Portugal estava um frio de rachar e ficou muito interessado em saber que as estações se chamam Primavera, Verão, Outono e Inverno.  Depois deve ter esgotado a sua memória do português porque não disse mais nada. Coitado e estava comovido. Eu também fiquei como é obvio. 

Os taxistas dão sempre pano para mangas em qualquer parte do mundo e Dili não é excepção. Um dia desta semana resolvi ir almoçar a um japonês no centro (o PNUD é um bocado fora, não é longe, mas andar na rua com sol a pino é impensável). Apanho um taxi cheio de penduricalhos de terços e santinhos. O motorista estava a ouvir música tipo igreja mas ao perceber que eu era portuguesa resolveu ser simpático e pôr uma cassette especial para mim. Quim Barreiros. Mais tarde vim a saber que a rádio da igreja transmitia abundantemente música pimba. O bispo foi alertado para o perigo de ter pessoas com uma grande boa-vontade em relação à língua portuguesa mas um total desconhecimento da dita e apressou-se a corrigir. Agora é mais música delicodoce ultrapirosa brasileira e portuga e canções de emigrantes género Linda de Susa.

 

 

 

 

Quanto à língua portuguesa, claro que não se pode dizer que aqui se fale muito, mas ainda assim fala-se muito mais do que esperava e sobretudo é verdade que fazem um enorme esforço para aprender. As empregadas do hotel, onde a língua de trabalho é o inglês, no princípio parecia que não falavam uma palavra lusa para além de bom dia e boa noite e obrigada, que de resto se diz também assim em tétum. Hoje, de repente ouço – boa noite senhora, como está? quer fazer já o seu pedido? já terminou, posso retirar? mais alguma coisa? Não sei o que se passou. Suponho que tivessem vergonha de falar tuga. Há um ano, os ministérios e o parlamento tinham dificuldades de entendimento medonhas porque uns falavam ou escreviam em indonésio, outros em inglês, outros em português outros em tétum. Hoje toda a legislação e documentos oficiais é escrita em português excepto a que sai do ministério das finanças que vem em inglês. Única excepção. 

 

Acontecimentos relevantes na semana? Dia dos Direitos Humanos no Estádio Nacional e passagem de testemunho da polícia ONU para a polícia de Dili. Nunca tinha visto um Presidente da República passar revista às tropas em t’shirt, mãos nos bolsos, sem saber o que fazer aos óculos escuros. Nem nunca vi nenhum PR em cerimónia oficial a subir as escadas aproveitando para ajeitar o tapete vermelho que estava perigosamente descomposto. 

 

E para acabar – o mercado. Um mercado no terceiro mundo tropical é sempre um fascínio de cores e cheiros e apetece logo ter uma casa para levar as frutas todas e experimentar ervas e legumes estranhíssimos e comer tomates com sabor e coisas dessas. Carne não, santo deus, as moscas!... abençoados supermercados com frigoríficos. Nem peixe, que o vendem na praia acabado de pescar.

 

 

 

 

E antes de ir para a cama, fiquem sabendo que aqui as osgas cantam e há uns lagartos vermelhos que falam. Não estou a brincar, pensei que eram passarinhos. Deve ser por estarmos perto de Darwin...

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003

 

Fotos de Isabel Feijó e Pedro Martins

 

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Quarta-feira, 2 de Outubro de 2013

carta de Timor (2)

 

Segunda Semana:

 

Pois não, não é fácil. Eu sabia que não ia ser fácil e não é. Timor? Os timorenses? O clima? Não!!! Tudo isso é de caras. A terra é simpática, as pessoas acolhedoras, totalmente incompetentes mas sempre com um sorriso tímido. O pior são os taxistas. Será que existe uma recomendação internacional para que qualquer pessoa que não perceba uma palavra de língua nenhuma a não ser a própria (mais ainda numa terra onde praticamente só os estrangeiros apanham taxis...) e não conheça a cidade, tenha justamente que ser taxista? E custa sempre um dólar. Um norueguês a puxar pró arrogante lá do PNUD diz que os “locals” só pagam meio dólar e que portanto se recusa a pagar mais. Diz ele que não se pode pactuar com a terrível exploração do pobre estrangeiro (a ganhar 10 ou 20 vezes o que ganha um ministro, note-se...). Santa paciência!...  Os “locals” não só pagam 50 cêntimos como andam aos 8 e 9 num taxi. Não quererá ele impor o número máximo permitido num veículo automóvel de quatro portas aos timorenses? Os “internationals” às vezes têm destas coisas.

 

A semana de trabalho foi tão preenchida que de repente parece que passou um mês inteiro. Tive reuniões com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, do Interior, da Educação, o Procurador-Geral, o Chefe do Estado Maior, isto para só mencionar os postos mais elevados da hierarquia. Mas não se pense que já corri a Administração timorense porque para a semana há mais... Presidente do Parlamento, do Conselho Superior da Magistratura mais alguns ministros e secretários de estado...

 

 

 

 

E depois tive um fim de semana inteiro para mim. Ufff! Ontem fui ao mercado de artesanato – umas 10 bancas, todas rigorosamente com os mesmos panos (de resto lindíssimos) no meio dos quais lá consegui encontrar um chapéu de palha. Que alívio! Temo ter dado um bocadinho nas vistas. A única cobertura de moleirinha aparentemente admitida nestas bandas é o boné de baseball e só os rapazes usam. Algumas senhoras usam guarda-chuvas, ou melhor, sombrinhas. Mas não me dá jeito nenhum. Depressa esgotei o comércio disponível naquela rua. Resolvi então ir até à Areia Branca, a tal praia onde se encontram pedaços de coral azul. E era isso mesmo que me apetecia fazer. Passear à beira mar e apanhar conchinhas.

 

 

 

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003

 

Fotos de Pedro Martins

 

Uma entrevista com Isabel Feijó sobre o seu trabalho em Timor aqui

 

 

 

 

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Quarta-feira, 25 de Setembro de 2013

carta de Timor (2003)

 

Primeira Semana:

 

Por muito que tenha seguido o drama de 99 pela TSF e visto montanhas de imagens do day after, confesso que não estava preparada para isto. Não ficou mesmo um edifício inteiro. Não se vê um telhado que não brilhe sem sequer um átomo de musgo. Com este calor e esta humidade quer mesmo dizer que estão acabadinhos de fazer. Mas muitas casas e edifícios publicos não têm telhado nenhum. Normalmente quando não têm telhado também não têm interior. Com pelo menos uma excepção – o palácio da Presidência da República, apropriadamente intitulado Palácio das Cinzas. Não tem telhado. Tem rés do chão e primeiro andar, mas só o rés do chão funciona, com umas placas de zinco a servir de tecto. Claro que já podia ter instalações decentes mas suponho que o PR queira dar o exemplo e só terá um palácio digno quando a população que ficou sem casa tiver onde morar. Mas digno é uma coisa, um telhadinho, não seria talvez um luxo excessivo... enfim... por estas e por outras é que não se pode deixar de ter uma imensa admiração por estes malucos. Pelo menos eu tenho, senão também não estava aqui.

 

 

 

 

 

 

E era pena, porque se está aqui muito bem. Para meu grande espanto em Dili há tudo. Não haverá muito queijo francês, mas há massa italiana, vinho português (e australiano), azeite de diversas proveniências, carne brasileira e mais o que se quiser de produtos chineses, tailandeses e etc., desta zona do mundo. Restaurantes dos mais diversos – timorenses, chineses, indianos, tailandeses, birmaneses, japoneses, australianos e portugueses - muitos e muito apreciados. Portugal do Minho a Timor não foi o Salazar que fez, foi a paixão timorense pelo bolinho de bacalhau. 

 

Mas e Dili, como é?...  A bem dizer ainda não percebi bem. Tem uma rua com comércio, sobretudo de chineses, tipo loja dos 300 e dezenas de timorenses a vender CDs e DVDs pirata. Mas parece-me que o comércio está muito espalhado. Não há construção em altura. O edifício mais alto deve ser a catedral. Muitas árvores. Casas dentro de muros com jardins. Muitas Nações Unidas (que gastam fortunas em pré-fabricados em vez de reconstruirem como os timorenses desejariam) com muitas medidas de segurança, muito arame farpado e muitos sacos de areia em volta. Compounds com muitos circuitos de video interno e muitas parabólicas. Muitas embaixadas e muitas residências de embaixadores. Bastantes ONGs. Quantidade de restaurantes do mais a armar ao pingarelho ao mais mixuruca. E os timorenses, onde vivem? Em barracas, na sua esmagadora maioria. Os bairros de barracas, embora tenham sofisticados esgotos construidos a céu aberto (brilhantes indonésios, bastava pôr uma tampa e talvez se diminuisse o número de mosquitos e respectiva malária e dengue!...), são normalmente os mais limpos. As mulheres, ou melhor, os seres do sexo feminino (a partir dos 3 anos) passam uma boa parte dos seus dias a varrer meticulosamente o seu espaço privado e envolvente. Para uma cidade que não tem serviços municipais (não tem sequer município), Dili é surpreendentemente limpa.

 

 

 

 

 

E para terminar, finalmente ontem confirmei que existe coral azul. Tinha há anos lido uma crónica da Sophia em que falava das maravilhosas ilhas de coral azul na Indochina. Desde então procurei por todo o lado (sobretudo guias turísticos da região) onde ficariam as tais ilhas de coral azul. Cheguei a concluir que era liberdade poética. Coral azul só existe na cabeça da senhora. Mas não. Existe. Na Praia da Areia Branca, a 10 km do centro de Dili, junto com búzios e beijinhos encontram-se abundantes pedaços de coral branco, vermelho e AZUL!!! Afinal era verdade! Grande Sophia!

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003

 

Fotos de Pedro Martins

  

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Domingo, 15 de Setembro de 2013

Timor, páginas de um diário poético (2)

 

Nas praias solitárias da ilha de Timor as frondes e as palmas sacodem já uns vagos restos de neblinas. Vale de Lahane acima vão fugindo esgarçadas pelos fustes mais altos; alcandoram-se, por fim, ameaçadoras, nas ramagens sombrias da verde floresta de eucaliptos. As linhas de cumiada cobrem-se de uma vegetação estranha. As árvo­res são as mesmas, os eucaliptos de tronco rugoso e escuro, mas em vez de folhas pegam-se aos ramos e raminhos os farrapos de musgo, cor do nevoeiro. Estranha paisagem, repito, como a de um país do Norte, onde a voz se escoa em surdina e o olhar descobre formas deambulantes e translúcidas, por entre a profusão de fetos arborescentes, polipódios, «ninhos de ave» e outras plantas que recordam os primei­ros tempos da Terra. Verdadeiramente, uma paisagem de sonho onde a solidão cami­nha a nosso lado e se insinua connosco nas profundidades inenarráveis do mistério. Quando, porém, o sol devassa aquela penumbra esverdeada e evapora de todo os nevoeiros, é ainda a solidão que nos espera, mas uma solidão alheia aos secretos apelos da vida. A natureza remoça, temporariamente, mas sem a omnipresença das seivas criadoras. E o mistério perdeu-se.

Era o tempo de abrir a alma aos quatro ventos, subir para as alturas e aspirar o ar fino e frio; de me sentir o senhor da Terra, «Rainai» de Timor, absorto... Das grandes alturas a vista imensa abarca montes e montes, serranias cruzadas, dois a três mil metros rolando, como as vagas de um mar fortemente encapelado. A ilha sente ainda a proximidade do anel de fogo que nas Flores e em Lomblem ascende em majestosos vulcões; do Tata-Mai-Lau posso abranger em dias claros de Setembro o maior comprimento, e de ambos os lados o mar sem fim, limitado ao Norte pelos maciços das restantes ilhas do grande arquipélago: Alor, Ataúro, Liran, Wetter, Kissar...

Mas ensimesmado pelo sortilégio vegetal da minha ilha havia de descer aos vales umbrosos onde me esperam tantas surpresas e deslumbramentos. Para que lado me dirigir? A costa norte é já sobejamente conhecida desde Maubara a Lautem. Com pequenas variantes, acidentes de rocha, sobretudo, a charneca doirada onde os eucaliptos de tronco estrangulado e alvadio, como de róseo marfim, os coqueiros da beira-mar, os «akadiros» e as palapas, — figuras extáticas do classicismo dos trópicos —, se misturam às acácias de para-sol, às casuarinas das margens dos ribeiros e ainda às manchas viridentes, contrastadas, dos bosques marítimos. Viria, passados tempos, a descobrir-lhe as surpreendentes belezas, quando, saciado dos vergéis e selvas misteriosas da costa sul, viesse repousar na sombra acariciante dos parques de tamarindo e jujubeiras? E ao ouvir o cristalino acento de um regato perdido na solidão ardente, saberia então olhar os elementos de que era feita a paisagem desprezada? E aprenderia a amar as grandes linhas sóbrias de uma praia solitária, de uma escarpa descida verticalmente no mar, de uma encosta onde a erosão abria profundas feridas, ...as colinas ondulantes e, sobretudo, a pureza luminosa que se filtrava na tarde calma pela folhagem clara da floresta aberta do Eucaliptus alba?



 

 

Timor, Páginas de um Diário Poético

Ruy Cinatti

"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"

Números 36 e 37, ano de 1948

 

Foto: Ruy Cinatti (1947)

 

 


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Sexta-feira, 13 de Setembro de 2013

Timor (flora)

 


 

A vegetação de Timor, ao contrário do que se imagina, não é composta, exclusivamente, por agrupamentos de natureza tropical, nem oprime o espírito ao ponto de nos considerarmos irremediavelmente à mercê do poder dos elementos da selva. A oito graus de latitude sul, a ilha oferece-nos o espectáculo incomparável de uma vegetaçãoo cintilante e vária que, conforme as regiões, se sintetiza em paisagens dos mais diferentes países do mundo. As florestas do «Eucalyptus obliqua»  transportam-nos à Nova Gales do Sul e à Tasmania, já perto do círculo antártico; os parques de «Tamarindus» e de «Ziziphus» a certos espaços do nosso Alentejo; os planaltos de Fuiloro lembram os campos e os bosques do norte da Europa, a verdura luminosa dos condados ingleses; e, na estação seca, as florestas de paus-rosa», dir-se-iam imitar os maciços arbóreos do Buçaco ou Gerez. A par disso é um prolongamento de Samatra, Java e outras ilhas de vegetação genesiaca, mas harmoniosamente equilibrada. Não admira que o espírito sensível de Alberto Osório de Castro fosse levado a confessar: «A flora de Timor, misteriosa e fremente, em mim, produz, por vezes o mesmo « grand songe terrestre», igual vertigem e ardente ebriedade pânica à que me dão certos poemas... » (Ruy Cinatti)



 

 

«Troncos colossais, majestosos, encordoados, de quatro a cinco metros de circunferência, raízes poderosas que se torcem sobre o pavimento da rua...» (Armando Pinto Correia)



«Os palavões brancos (Eucalyptus alba) das encostas xistosas do litoral, diziam-me já a soledade adusta do “Bush” australiano, não distante.» (Alberto Osório de Castro)


 

 

Timor, Páginas de um Diário Poético

Ruy Cinatti

"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"

Números 36 e 37, ano de 1948


Fotos: Ruy Cinatti

 



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Sábado, 7 de Setembro de 2013

Timor (guerreiro)

 

 

 

 

«O timor que usa «taiss» ou «lipa», largo pano de algodão às riscas, colorido de azul ou de encarnado, e chegando da cinta aos joelhos, cabaia ou curta jaleca branca de botões apresilhados, lenço atado no alto da cabeça à moda javanesa..., vai porém para a guerra de «lipa» negra, cabaia encarnada, lenço com penas de galo erectas ao topo e, principalmente quando já «Açuaim», ou guerreiro de fama, de manilhas, colares de «mútissalas», «luas» de prata ou de oiro, e de cinta ou faixa branca... » (Alberto Osório de Castro)




 

«Debaixo do braço ou posto ao colo, não falta o galo de combate, nem no saquitel a lâmina acerada que no começo dos torneios, se lhe ata a uma das patas, apetrechando-o para uma peleja renhida, em volta da qual se há de comprimir o povoleu e ferverão as apostas a dinheiro.» (Armando Pinto Correia)

 

 



Testemunhas de antigas lutas, as tranqueiras e outros vestígios das arquitectura militar de Filomeno da Câmara, são hoje representações históricas que surpreendem o visitante recém-chegado a alguns postos administrativos do interior. (Ruy Cinatti)

 




Timor, Páginas de um Diário Poético

Ruy Cinatti

Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo

Números 36 e 37, ano de 1948


Fotos: Ruy Cinatti (1947)

 



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