Favoritas do Sóba, Angola
O passado e o presente
Desabafo de leitor amigo: «Foi quando se perdeu o respeito pelos mais velhos que começou a dégringolade… afirmo eu agora que sou velho». A leitora terá o seu exemplo preferido desta evidência; eu tenho o meu, não da minha própria experiência de vida mas de bisbilhotices registadas em estudos que alguns querem fazer passar por ciência, aos quais me dediquei quando era novo.
Em quase toda a África ao sul do Sara, antes da chegada dos colonos europeus, os velhos mandavam em tudo quanto lhes coubesse na hierarquia da tribo: ficavam com o melhor das colheitas, casavam com as pequenas mais bonitas, dirimiam pendências internas, comandavam os seus contra o mundo. Os brancos trouxeram muitas mudanças, por exemplo, a autoridade da língua do colonizador (ainda hoje, em Madagáscar, pastores dão ordens às vacas em francês), sendo a mais importante, nisto de velhos e novos, o pagamento de trabalho a dinheiro. O trabalho era e foi por muitos anos, agrícola e mineiro, privilegiando homens novos e robustos, enquanto o dinheiro dos brancos se tornara na única moeda de troca corrente e fiável. De repente, homens novos de origem modesta podiam pagar dotes acima das posses dos velhos mais distintos da tribo. A ordem antiga resistiu simbolicamente, aqui e além (em recantos bucólicos, há reis com trono mas sem poder), mas o grosso das coisas passou a ser regido pela ordem nova donde partiram as élites dos novos países independentes. Os velhos deixaram de constituir uma espécie de Senado da sua terra; sobrevivem esquecidos à mercê da caridade dos novos. Muitos pensarão, como o meu amigo, que a dégringolade começou quando lhes perderam o respeito.
Entendo-os mas não simpatizo com a nostalgia. O pitoresco da ordem antiga tinha incómodos. Aquí há 75 anos o meu chorado amigo Carlos Manuel fora a tourada em Santarém com o Fernando e o António Mascarenhas e o Conde da Torre, pai deles. Carlos Manuel deu a certa altura opinião sobre a lide; o Conde, sentado ao lado dele, discordou e deu-lhe uma estalada. Carlos Manuel levantou-se e saiu, no silêncio embaraçado da bancada. Ao fim do dia, no bar do hotel (nesse tempo o mundo era maior e quem viesse aos touros a Santarém ficava a dormir lá) o Fernando e o António foram ter com o Carlos Manuel: «O Pai está incomodadíssimo com o que se passou esta tarde. Vai lá pedir-lhe desculpa».
Tudo isto se passava nesta terra de costumes brandos onde Álvaro Cunhal se doutorou na Faculdade de Direito de Lisboa, arguido por Marcello Caetano, indo dormir à prisão e lá ficando depois de doutor e onde o tenente-coronel Majolinha, na Flandres durante a Grande Guerra, sempre que fazia disparar morteiro contra os alemães, rezava para não matar ninguém. Havia muito pior na Cristandade. O Marquês de Custine conta que a sociedade russa do seu tempo estava dividida em 14 classes, podendo os de cada uma delas bater nos das classes inferiores. Isto bem antes do bolchevismo.
A dégringolade fez bem a muita gente.
Associação Cultural Moinho da Juventude, Cova da Moura
© Rui Palha 2014
A Amadora é um PALOP
A minha sobrinha predilecta, que fala alemão e russo, andou por essa Europa com Erasmo de Roterdão e, após tese de direito brilhante, é advogada em Lisboa, está indignada por haver tanta gente com “interesse eleitoral em berrar que querem pôr na rua os imigrantes todos já”. Sobretudo em países que não têm imigrantes e até mandam eles próprios emigrantes para partes menos intolerantes do Continente.
O que há agora é mau e anima em cada um de nós sentimentos que podem facilmente passar da indignação para a ira - e a ira é má conselheira, se não se quiser fazer mal. ‘A dor humana busca amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar’, escreveu Cesário Verde e hoje à roda dá-se pelas ditas marés, embora me pareça não serem desta vez causadas por dor mas por raiva. Que há mal dentro de cada um de nós toda a gente sabe; que se batam tambores para o fazer sair à rua a dar ares da sua graça, não acontece sempre e na Europa, desde as convulsões que acompanharam o fim da Segunda Guerra Mundial – na Alemanha e á volta dela expulsaram-se milhões de pessoas, último sobressalto da grande matança – tínhamos perdido o hábito e o gosto disso, salvo em lugares precisos – o País Basco espanhol; a Irlanda do Norte – especializados em horror macabro. (Estrada à saída de Belfast, tanta chuva que os cantoneiros se abrigam numa tenda. A lona abre-se, homem encapuçado, a metralhadora engatilhada, pergunta: “Católicos ou protestantes?” Aconteceu).
Ódios fraternos adormecidos, partiu-se para o que os franceses gostam de chamar o ódio ao outro – e nada parece abater agora. Comovemo-nos, há três anos, com cadáver de menino turco na praia? Mas pouco ou nada fazemos para impedir que homens, mulheres e crianças continuem a morrer no Mediterrâneo. Na Alemanha, a maré de fel quer dar cabo do extraordinário exemplo de recuperação cívica e moral de um povo (o dos alemães ocidentais). Nos ‘países de Visogrado’ – Polónia, Hungria, Eslováquia, República Checa – o ódio ao outro, brutal (e ridículo, porque não há ‘outro’), torpedeia tentativa de instalação de democracia e decência. Ninguém quer o comunismo de volta mas a solidariedade humana, maltratada durante décadas, não recupera. Quanto ao nazismo: ao ver a Baviera, rica e sem imigrantes, querer tanto mal ao ‘outro’ fica um homem perplexo.
Volto à minha sobrinha, na Amadora. “Tenho contactado muito com questões de imigração no trabalho. E tenho um respeito enorme pela maioria destas pessoas. Ser imigrante legal não é fácil e envolve mais papelada e meses de espera com a vida pendurada do que qualquer ser humano merece (…) Ser imigrante ilegal é não existir. Tentar passar a legal depois de ter começado como ilegal é um calvário (…) Enfim também não digo que temos de aceitar toda a gente só porque temos de aceitar mas esta ‘nova’ Europa não é coisa em que me reveja.
Se calhar é porque, como me dizia no outro dia um taxista ‘a Amadora é um PALOP’ e eu afinal nunca vivi na Europa”.
7 postais ilustrados por André Carrilho
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Poètes de Lisbonne - Camões, Cesário Verde, Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Pessoa | Traduction Élodie Dupau.
Lisbon Poets - Camões, Cesário Verde, Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Pessoa | Portuguese originals and English translations, by Austen Hyde and Martin D'Evelin | Illustrations by André Carrilho | Foreword by Leonor Simas-Almeida | 1st edition: June 2015 Publisher: lisbon poets & co.
Andries Pieter van der Graaf (1909-1996) spent almost his entire professional career (1928-1970) with the Dutch company Zuid Afrikaans Handelshuis (ZAH). In 1950 he was posted to Angola to act as managing director of the Luanda Office. He served as Dutch Honorary Consul from 1952 till 1971.
It is with great pleasure that we present in Retrovisor excerpts from a memoir in which he tells about his experiences learning to run a Dutch trading company in Angola in colonial times and his fascination with the country and its peoples.
Many thanks to Elizabeth Davies (van der Graaf) and her family for allowing me to adapt the text and to illustrate it by using photos from the family's collection.
* * *
I visited Angola for the first time in 1950. ZAH (Zuid Afrikaans Handelshuis) had two offices there, one in Luanda, the other in Nova Lisboa. The area covered by the Nova Lisboa office was mostly that along the Benguela Railway: a section from the coast to the border with the Belgian Congo (Katanga). The purpose of my stay in Nova Lisboa was to familiarize myself with the activities that the business had in Africa. Luanda always brought in good year-end results, but paid very little attention to the advice and instructions coming from Head Office, causing continued conflict.
Zuid Afrikaans Handelshuis, Luanda c. 1960
The ZUID building in Nova Lisboa was a warehouse, mostly. Trade was mainly in foodstuffs, textile, construction materials, paint, small agricultural tools, general merchandise, and so on.
Massive square piles of cotton cloth were the first thing you saw. The cotton prints that attracted the greatest interest were the ones that had just arrived: "novidades". In the area around Nova Lisboa, "pintados" ("blue print"), originally from Germany (Fritz Becker), were still in general use, and worn by both men and women. It was dark blue material with white lines or spotted patterns.
Casa Holandesa
Sometimes business contacts arrived from the interior with elephant tusks. Their weight varied from 10 to 40 kg, sometimes even more. Consignments were made up and eventually shipped to Holland, where there was always a great deal of interest in these tusks. The tusks were mainly used to make billiard balls. Other products from the upper plateau which were exported by ZUID were beans, castor seed, manioc (cassava, Portuguese: crueira) and sesame seed; and from the river basins: palm nuts, palm oil; also Arabica coffee, as opposed to Robusta, which was practically the only kind of coffee grown in the north of Angola.
Map of Angola c. 1960
During the eight months I spent in Nova Lisboa, I made a number of trips to the coast. In the rainy season, these trips often had to be postponed, as the road was poor, and very little was done about this, as the Railways, who had a great say in the matter, felt that good road connections would harm the railway's interests.
Ferry across the Cuanza
On the road from Sá da Bandeira (formerly "Lubango") to Moçamedes, I saw groups of zebra grazing near the road, and further off, herds of springbok, leaping to get out of the way. There are very few springbok left nowadays. The Portuguese name for them is "cabra de leque." "Leque" means "fan," and when alarmed, the hair on their backs stands up on end.
Cabra de Leque
Benguela itself still had the appearance of an old slave town, with the old walled enclosures still there, where the slaves were kept after their arrival from the interior until being shipped away. Other than that, the most striking things were the red-colored earth and the orange blossoms of the acacia rubra (flame tree).
Nova Lisboa c. 1960
Benguela, c. 1960
I remember that one morning, a young native man who always travelled with us to help with the bags, told me that "the rain had rained during the night." This was the first time I had come across the typically Bantu personification of natural phenomena.
... to be continued...
Andries Pieter van der Graaf
Jan/Feb 1974
Translated by Elizabeth Davies (van der Graaf) 2012
Other posts:
Full text:
The memoir of Andries Pieter van der Graaf is in two parts: Part 1 (written in English) starts in 1909 with his birth, and provides a vivid description of his early life in Krimpen aan de Lek, a small community near Rotterdam; of the effects of the Depression on the family; and of his experiences during the war. In Part 2 (written in Dutch, translation into English provided), he takes us from his first day in Angola, through his years learning how to run a Dutch trading company in Angola in colonial times, to his fascination with Angola and its peoples.
www.asclibrary.nl/docs/341/217/341217840.pdf
http://www.asclibrary.nl/docs/341220647.htm
Album "Vintage Angola" on Flickr
Notes:
Map of Angola: Veteranos da Guerra do Ultramar
Nova Lisboa and Benguela: Tempo Caminhado
Duas citações ao almoço e três ao jantar
O pai tinha ido passar um par de semanas a Madrid, na clínica do Dr. Lopez Ibor, psiquiatra reputado (e membro do Conselho Privado do Conde de Barcelona); a mãe fora com ele não sei se por conveniência clínica se por estratégia matrimonial; não me lembro do que fizeram os meus irmãos nem se a casa de Lisboa foi fechada (a idade não perdoa…); eu fiquei aboletado em casa de amigos.
Nesse tempo comia-se em casa. Dois dias depois da minha chegada o tio Clarimundo, pater famílias que presidia a mesa, proibiu-me de fazer mais de duas citações ao almoço e três ao jantar. Nunca mais me esqueci porque, até nesta idade — que dantes se considerava avançada — a tentação de citar continua a ser grande. Não, como às vezes supõem os desmemoriados, por pedantismo de bom aluno a querer fazer boa figura mas para facilitar conversa e discussão. O recurso à memória é muito tentador porque, ao longo dos séculos, houve gente que disse, numa das línguas que eu conheço, muito melhor do que eu alguma vez seria capaz, coisas que me apetece dizer por virem a propósito e acertarem em cheio no alvo visado — e as suas formulações grudaram-se-me à cabeça.
Nasci com memória como nasci canhoto e de olhos castanhos: é dom sem mérito moral (se tivesse nascido nas classes menos favorecidas talvez tivesse arranjado trabalho num circo), se não faz de mim um Apolo tampouco de mim faz um Quasimodo, mas reconheço duas razões que recomendam limites ao seu abuso público. Uma é pôr limites a caracter maníaco que às vezes tome. Eça de Queiroz contou de amigo tão escrupuloso na atribuição de fontes que chegava a dizer: “Na frase de Carlos Valbom: Estou triste”. A outra é tentar manter boas maneiras. É mal-educado querer parecer mais culto, mais inteligente, mais lido do que os outros ou as outras com quem se esteja a conversar, quer cara a cara e bafo a bafo, como era a prática, quer ao telefone ou das muitas outras maneiras que a modernidade vem pondo ao nosso alcance (uma das razões que torna às vezes tão difícil convívio com a gente muito competitiva que abunda no nosso mundo pós-moderno).
Seja como for, isto da memória tem que se lhe diga. A velho amigo meu, colega perguntara na Faculdade: “Tu estudas Medicina Legal compreendendo ou empinando?” A dicotomia não é tão tonta quanto possa parecer. As pessoas mais inteligentes com quem privo são quase todas, como uma delas gosta de dizer, “Alzeimerizadas de nascença”. Se essa maciça falta de memória lhes trouxe esforços suplementares quando as meteram na linha de montagem da educação – o Sistema Galaico-Duriense, os Reis de Portugal, etc., etc. – trouxe-lhes também enormes benefícios de agilidade mental pois não lhes sendo dado, como diria o colega do meu amigo, “empinar raciocínios”, foi em exercícios permanentes que desenvolveram a gramática intelectual precisa para confrontar o mundo.
NB Chamara-lhe “O Bey de Tunis”, não me lembro porquê. Fui escrevendo, saiu isto e mudei o nome.
Em tempo de Verão regresso aos álbuns de família e colecções privadas que aqui tenho explorado.
À excepção da fotografia do chalet, as imagens deste post foram encontradas na blogosfera portuguesa. Não achei fotografias de fandangueiros, saltimbancos, mulheres dos bolos e banheiros nas praias de Portugal do princípio do século XX.
Sobre este álbum de recordações de Alda Rosa, “para os filhos, netos e bisnetos”, editado em 2011 e do qual foram feitos 3 exemplares impressos, leia neste blog o post Festas e Mascaradas.
Agradecimentos especiais a Alda Rosa Bernardo de Sousa, Maria do Rosário Sousa Machado e blogs Restos de Colecção, Teatro e Marionetas, Américo e Galafanha.
Chalet Alda , S. João do Estoril c. 1900
No meu tempo de menina, as horas em que se ia à praia eram totalmente diferentes das de hoje. íamos de manhã, e á tarde ficávamos no jardim. Só em dia de pic-nic é que ficávamos na praia até mais tarde. Estes almoços eram de "garfo e faca" e toalha posta na mesa. De casa vinham salada russa e um prato quente trazidos pelas criadas. Os banheiros emprestavam-nos uns banquinhos e umas tábuas que serviam de mesa e as cadeiras eram também deles. Claro que com tanta mordomia estes pic-nics não podiam repetir-se muitas vezes.
Mesmo para se comer na praia só havia barquilhos e bolas de Berlim. O homem dos barquilhos apregoava: Barquilheiro!!! Trazia uma lata alta com uma roleta, o comprador fazia girar a roleta que ditava a sorte de comer pelo mesmo preço mais ou menos barquilhos. O homem das bolas de Berlim apregoava: bolas de Berlim, perlim pimpim! Assim andavam pela praia estes vendedores. A senhora Ana dos bolos só apareceu mais tarde...
Para divertir as crianças aparecia o "Fandangueiro". Trazia um pequeno estrado, e fazia o seu número de sapateado (com a música do fandango). Também para nos entreter havia o homem dos cães. Trazia 4 ou 5 cães e com cães fazia o seu número. A um dos cães ele mandava «morrer à moda da China com três cartuchos...!» e o cãozinho deitava-se fingir que tinha morrido.
O "Catitinha" aparecia na praia todo vestido de preto pois tinha perdido uma filha. Protegia e gostava de crianças: apertava a mão a cada criança e apitava. Os miúdos corriam para ele, apesar de ser uma figura sinistra, com um grande cabelo branco...
Os "Robertos" apareciam com a sua voz de flauta e o número de pancadaria a que nos habituaram. No fim pediam dinheiro pelas "actuações" que tinham feito!
Robertos na Foz do Douro, início do século XX
Para os banhos de sol os banheiros também forneciam encostos e os toldos eram ao mês. Os banheiros tinham "chatas" que levávamos até fora de pé, para aí tomar banho. Muitas vezes atirávamos água uns aos outros e ali se fazia uma guerra com água, que muito nos divertia. As "chatas" eram cada uma do seu banheiro, e não havia rivalidade, era só brincadeira.
Também íamos ao Rádio Clube Português patinar...
Com tantos programas, as férias em S. João do Estoril eram muito apreciadas...
Alda Rosa Bandeira de Lima Osório Bernardo de Sousa
2011
Kinshasa, 2000
© Marie-Françoise Plissart
Veja também neste blog o post Kinshasa - Récits de la Ville Invisible
Sport Lisboa e Benfica 1966/1967
Postal reproduzido no livro Retrovisor, um Álbum de Família. Texto e outra foto neste blog aqui.
A crónica de Ferreira Fernandes Nunca passei por ele sem dizer "obrigado" aqui
O ensaio de Nuno Domingos As lutas pela memória de Eusébio aqui
Alexandre O'Neill sobre Eusébio aqui
Perfil de Eusébio aqui