Quarta-feira, 26 de Dezembro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Karajan - Lipatti

 

 

José Cutileiro

 

Elites

 

Há coisas antigas quanto a espécie humana. Em toda a parte, a guerra (a paz é uma invasão recente) vinda já de primos antepassados próximos - Cromagnon; Neandertal; alguns africanos - e, em quase toda a parte, o arranjo das gentes em mó de cima e mó de baixo, mesmo quando ainda não haja agricultura a separar quem tenha a terra de quem a trabalhe. De vez em quando, os da mó de baixo acham que a sua voz deveria ser mais ouvida do que o é e o bom povo passa de querer mal aos vizinhos – alfacinhas a tripeiros, portugueses a espanhóis, europeus a africanos, matéria prima da história tal como ela é (era ?)  ensinada nos liceus e atitude aprovada por pais da Pátria e por forças vivas  da nação - a querer mal a patrões se for por eles empregada e a ricos em geral se achar que  não pertence ao grupo.

 

A França é o país europeu que se especializou na segunda variedade e, como os vinhos, tem anos piores e anos melhores. 2019 promete, com os coletes amarelos na rua, a bloquear rotundas e pagamentos nas autoestradas e a proclamar urbi et orbi que o mundo é mal feito e que é preciso refazê-lo melhor (propondo muitos o referendo – cidadão, como eles dizem – processo seguro de enrolar o povo e abrir a porta a ditaduras). Quanto à contribuição directa dos coletes amarelos para organização social decente de aldeias, cidades, países e continentes onde porventura tomassem ou influenciassem o poder, pouco sabemos ainda mas, por outro lado, talvez saibamos já tudo. Se um deste dias a leitora se meter à estrada em França e passar por grupos aguerridos de coletes amarelos, se não levar à vista no para-brisas do seu carro um dos ditos coletes e não tocar muitas vezes a buzina fazem-na passar devagar e gritam-lhe insultos. Les gilets jaunes acreditam em « zero-sum games » como se diz agora, isto é, são incapazes de compromisso e, portanto, nocivos à democracia. Dito isto, repito o que já disse aqui muitas vezes: depois do colapso da União Soviética o capitalismo tomou o freio nos dentes (ou, pior ainda, passou a obedecer cegamente às instruções de uma clique que o controla e sabe muito bem o que quer, como dantes nas visões conspirativas dos comunistas mais néscios) de tal maneira que o fosso entre ricos (cada vez menos) e pobres (cada vez mais) continua a cavar-se muito depressa, levando a minha mulher a dias a ter inveja do meu BMW,  em vez de como dantes, na tradição das trente glorieuses, sentir nele uma segurança cobrindo o seu VW.

 

As elites? Escrevo no dia de Natal. Ainda deitado ao fim da manhã, chegaram-me lá a cima, vindos da sala no primeiro andar onde está a música, Lipatti ao piano e Karajan a dirigir a orquestra no andante do concerto para piano n°21 em dó maior de Mozart, no festival de Lucerna de 1950, gravado por auditor que o ouvia na telefonia e ressuscitado por técnicos no CD que eu tenho. Ramalhete de milagres de génio musical e tecnologias contemporâneas trouxe-me  bem-aventurança neste dia sagrado dos cristãos de 2018.

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Novembro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

arc de triomphe Paris

Arco do Triunfo, Paris

 

 

José Cutileiro

 

Eterno retorno

 

 

Fim de semana chuvoso, no conforto de casa, com a televisão a mostrar comemorações em vários lugares, mormente no Paris que Haussman arquitectou para glória do Estado e controle de turbas operárias descontentes. Arco do Triunfo no centro da Estrela, debaixo do chão da qual jaz o soldado desconhecido (ou conhecido de Deus – Known unto God– segundo lápides funerárias em cemitérios militares britânicos, graças a Rudyard Kipling, prémio Nobel da literatura, que perdera um filho na guerra cujo fim, há cem anos, foi celebrado este Domingo). França, a mais monárquica das Repúblicas - cada francês ou francesa entrança em si um ci-devante um sans culotte  - tem jeito para comemorações destas, a coreografia foi excelente, os muitos chefes de estado presentes, abrigados da chuva por elegante construção temporária transparente, portaram-se bem e Macron disse bem discurso bem escrito. A Sarabanda da 5ª suite para violoncelo solo de João Sebastião Bach - que Rostropovich tocara em 1989 diante de Muro de Berlim deitado a baixo – ouviu-se desta vez pelas mãos de Yo Yo Ma. (Mesmo três Fems que conseguiram manifestar-se e a polícia agarrou logo não destoaram: mamas ao léu fazem parte gloriosa da Grande Revolução Francesa).

 

Tudo como deve ser mas Álvaro de Campos veio-me logo à cabeça.

 

Dos Lloyd Georges da Babilónia                                                                                             

Não reza a história nada.                                                                                    

Dos Briands da Assíria ou do Egipto,                                                                                  

Dos Trotskys de qualquer colónia                                                                                            

Grega ou romana já passada                                                                                                     

O nome é morto, inda que escrito.

 

 

 

Só o parvo de um poeta, ou um louco                                                                                                                                           

Que fazia filosofia                                                                                                                        

Ou um geómetra maduro                                                                                                               

Sobrevive a esse tanto pouco                                                                                                                                                                                                                                  Que está lá para trás no escuro                                                                                                   

E nem a história já historia.

 

 

Ó grandes homens do Momento!                                                                                                              

Ó grandes glórias a ferver                                                                                                                        

De quem a obscuridade foge!                                                                                                                

Aproveitai sem pensamento,                                                                                                                           

Tratai da fama e do comer,                                                                                                                                                                         

Que o amanhã é dos loucos de hoje.

 

 

Em modo menos anarquista, lembrei-me da estreia de ‘A Tragédia do Rei Lear’, posta em cena em sueco por Ingmar Bergman em Janeiro de 1984, na véspera da abertura da Conferência de Paz de Estocolmo, entre países da OTAN, países do Pacto de Varsóvia e países neutros e não-alinhados, que começou num dos momentos mais tensos da Guerra Fria. O 'Rei ‘Lear’ é uma zaragata de faca e alguidar em que muita gente mata e morre, incluindo o Rei e as três filhas. Na última cena, alguns sobreviventes lambem as feridas e preparam-se para retomar a vida, acabrunhados. Na mise en scénede Bergman, o pano cai – e levanta-se num ápice com os personagens de espada em riste já prontos para outra, antes de cair de vez.

 

Será o que nos espera? Angela Merkel esmagou o Sul da Europa, não quis tocar no superavit alemão, despertou o fascismo latente do Leste da Europa ao prometer-lhes gente de todas as fés e cores e vai-se embora. Os ingleses perderam a tramontana. Varsóvia, Budapeste, Viena, até Roma, deixaram de procurar entrar pela porta estreita e animam o pior dentro de cada um de nós. Macron quer as coisas certas mas tem pouca companhia. E de um lado e do outro, sem fé nem lei, Trump e Putin fazem troça.

 

Uma broncalina do camandro ou, se a leitora preferir, uma Bernardette do caboz.

 

 

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Quarta-feira, 13 de Setembro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Schubert

 Franz Schubert, aguarela de Wilhelm August Rieder, 1825.

 

 

 

José Cutileiro

 

 

O quinteto em dó maior, D 956, de Schubert

 

 

 

O mano Jorge, que morreu com dez anos e tinha menos nove do que eu, era o único dos três filhos com jeito para música. O piano que fora da Mãe veio de Évora para nossa casa em Lisboa e a Professora Mariana que dera lições ao Babalhú, à Luzinha e à Nucha, filhos de João Cid dos Santos e de sua mulher Nazaré Vilhena, amigos lá de casa – o Pai era padrinho da Nucha – começou a dar lições ao Jorge quando ele tinha seis anos.

 

O Pai cantara em novo cantigas alentejanas (lembro-me da confusão que me fizera ouvi-lo nos Olhos da Marianita em casa do avô quando eu sabia estar ele em Lisboa: era um disco gravado quando era estudante e posto na telefonia naquela manhã pelo Radio Clube Português ou a Emissora Nacional) mas quer o João quer eu pouco ou nada herdámos dessa inclinação; o João, nada mesmo: se fosse inglês poderia dizer como Winston Churchill que só conhecia duas músicas – uma era o God Save the King e a outra não era; eu saíra um bocadinho menos duro de orelha, distinguindo alguns compositores de outros e sentindo preferências fortes por alguns deles.

 

Nunca saberemos o que o Jorge teria dado. Na geração seguinte, a inclinação reapareceu. O meu filho toca há muitos anos em dois grupos pop holandeses que têm conhecido algum sucesso em Groningen e outras cidades do Norte dos Países Baixos. E o meu sobrinho Tiago, que agora vive em Berlim, é compositor, inter alia, de uma ópera, de música orquestral e de música de câmara, tendo também sido professor de composição. Para entender melhor estes saltos de gerações é útil saber que não são à toa. Existe toda uma ciência destas coisas a partir das experiências de um monge agostinho de Brno, hoje na República Checa, chamado Mendel que, passou oito anos a cruzar ervilhas de cheiro e descobriu as leis segundo as quais, em cada espécie, os caracteres hereditários passam de geração em geração, fazendo comunicação científica em que explicou tudo isso, incluindo a existência de pares do que hoje chamamos genes, em 1865. Ficou esquecido meio século, depois inspirou investigações que ainda hoje continuam: é um gigante da biologia, ombreando com Darwin. Ver-se-á o que darão o meu neto e os netos (e o bisneto) do mano João.

 

Tudo isto porque na telefonia do carro ouvi hoje mais uma vez o quinteto em dó maior de Schubert D 956 quase todo, tocado não sei por quem. De há um século para cá ouve-se música que nos chega assim, por acaso ou de propósito, em discos e em maneiras mais modernas ainda de a reproduzir sem ter de haver músicos a tocá-la diante de nós ou nessa altura. Ouvi-o pela primeira vez em casa do Ruy Cinatti e, na minha ignorância musical, tocou-me muito e veio-me à cabeça linha de Eliot “ an infinitely gentle, infinitely suffering thing”. Volta sempre que o oiço (a última vez o ano passado, ao vivo). Quando estou em sala, dá-me para achar que não devia haver discos. Depois caio em mim: sem discos, teria ouvido muito pouca música, quase toda má.

 

 

 

 

 

 

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Domingo, 25 de Dezembro de 2016

Boas Festas

 

 

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Nativity, 1470-1475 - Piero della Francesca

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 24 de Dezembro de 2016

dicionário pessoal: sofrível

 

 

S letter

 

 

sofrível
so.frí.vel
adjectivo de 2 géneros
(de sofrer + sufixo ível)
 
 
 
 
Aquilo que é suportável, que se consegue sofrer, aguentar. Noutros tempos, designava também uma classificação escolar que se situava entre o medíocre e o suficiente. É no fundo o que hoje se designa como «suficiente menos», que é o eufemismo de sofrível, tal como o insuficiente, com a gradação de mais ou menos, o é para os antigos medíocre e mau. Imaginam as inteligências pedagógicas que nos governam que é menos humilhante ter insuficiente menos do que mau. Contudo, o «mau» constitui uma classificação clara, sem ambiguidades, ao passo que o medíocre é uma notação envergonhada, usada, tal como o sofrível, como forma de castigo ou de favorecimento. Se o mau não tem apelo nem agravo, o medíocre é um limbo, nem carne nem peixe. Há quem não passe do medíocre, há quem não passe do sofrível. O suficiente, curiosamente, assume-se quase como uma nova expressão da aurea mediocritas horaciana, a pequena felicidade encontrada no que se tem, sem outra aspiração. Não confundir com o sentido religioso do Ich habe genug da cantata de Bach, que é um contentamento de outra natureza. É precisamente no caminho entre o medíocre e o sofrível/suficiente pequeno que se tem construído a danação do país, cuja pequenez geográfica parece ter-se entranhado ao longo dos séculos na alma dos seus habitantes.
 
 
 
 
 
 
 
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Quarta-feira, 16 de Março de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Montaigne

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

 

All you need is love

 

 

 

E é – diga o que disser o seu administrador de fortuna ou de massa falida, gestor de conta, cabo de esquadra onde tenha de se apresentar todas as semanas até chegar a sua vez na bicha infinda de acesso ao banco dos réus nos nossos tribunais; oncologista recomendado pela mulher de um primo que se deu bem com ele e que ele há quase três anos deu por curada (enquanto o da Caixa indicado pelo médico de família não deu conta do recado e a deixou, leitora, depois de cirurgia e de radioterapia e de quimioterapia – tudo minuciosamente relatado a parentes, amigos e estranhos em estalagens do Minho - sem conforto nem esperança); centro de encontros na net fornecendo aplicação que deteta o homem – ou a mulher - ideal cinco léguas em redondo, tão rigorosa que indica probabilidades de alma gémea de 1% a 100% (está programada para incluir LGBT e, pagando emolumentos dobrados, apenas heterossexuais de qualquer sexo - de maneira que pais e mães convencionais, com aversão a riscos a possam oferecer a filhas e filhos adolescentes) ou, no caso de gente mais à antiga mas moderna bastante para ter sido primeiro convencida por e depois se ter desimaginado de Freud ou de Jung ou de Lacan, bruxo num rés-do-chão à Rua da Boavista especializado na reconquista de entes queridos cujos corações se hajam tresmalhado no vasto mundo, garantindo resultados mesmo a quem as frequências da dor já tenham ensinado a desejos deixar de ser contente (sem aldrabices: ou sucesso ou devolução dos honorários já pagos). All you need is love.

 

Mais do que as duas outras coisas da cantiga – la salud y la platilla – melhor dito, é a única das três coisas da cantiga, que faz milagres comparáveis aos relatados no Antigo e no Novo Testamento, que só Deus conseguiu. (Ateu como eu não deveria escrever isto mas não encontrei melhor figura de retórica para referir the love that you need e explicações verosímeis e cabais conciliando tais estados de graça e as minhas luzes metafísicas, ler-se-iam como folhetos explicativos dentro de embalagens de remédios ou como o small print de contratos propostos por instituições financeiras. Com gentes de outras fés a questão é a mesma. Para um cristão, quem não acredite no Deus de Abraão, Isaac e Jacob não acredita em Deus, ponto final. Montaigne achava que nem sempre: quem, nascido em terras distantes, educado noutras crenças, longe do cristianismo – ou por este não existir ainda ou por estar tão longe dessas terras que nada dele lá fosse conhecido ou suspeitado – acreditasse nos deuses que Deus lhe dera poderia salvar-se. É simpático mas lógicos formais demoliram há muito a verosimilhança do argumento, conhecido no ramo por “falácia de Montaigne”).

 

Salud não faz milagres. Platilla pode fazer cópias que enganam, mas é batota. Amor, sim mas cada um sabe de si. Ignazio Silone escreve no começo de um dos seus livros: estas são algumas das melhores histórias que conheço mas não são as melhores. As melhores, guardo-as para mim.

 

 

 

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Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 2016

romanceiro.pt

 

 

Os textos do Romanceiro português e respectivos registos sonoros, quando conservados, vão passar a estar disponíveis online e em acesso livre na plataforma Romanceiro.pt. A preservação deste património, através da digitalização, era urgente, já que a sua manutenção nos formatos em que se encontrava (cassetes áudio e fotocópias em papel) constituía uma séria ameaça à sua preservação. 

 

A plataforma digital será apresentada amanhã, pelas 16h, na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé), pelo coordenador do projecto, o investigador Pedro Ferré.

 

O objetivo é tornar acessível ao grande público um arquivo sem par no contexto ibérico, que alberga já perto de 14000 imagens de documentos de grande relevo no âmbito da literatura patrimonial portuguesa, nomeadamente do Romanceiro de tradição oral, e cuja expansão está prevista.

 

Nos últimos anos, os investigadores do CIAC  Pere Ferré, Mirian Tavares e Sandra Boto trabalharam o acervo da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, que compreende 660 horas de gravação em 609 cassetes áudio ali depositadas, e onde estão guardadas 3632 versões inéditas de romances e acolhe 10096 versões de romances publicadas entre 1828 e 2010. A plataforma Romanceiro.pt é o resultado do projeto “O Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2010): sua preservação e difusão”, uma parceria entre a Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé) e o CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação/FCT (Universidade do Algarve / Escola Superior de Teatro e Cinema) com o mecenato da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do Concurso de Recuperação, Tratamento e Organização de Acervos Documentais (2013).

 

 

 

 

Romanceiro.jpg

 

 

 

 

O Romanceiro é um género poético tradicional que circula desde os finais da Idade Média na memória dos povos de expressão portuguesa, galega, castelhana e catalã, difundindo-se desde então oralmente de geração em geração. Trata-se, portanto, de um património imaterial de uma vitalidade excepcional e de uma riqueza ímpar que importa preservar, numa altura em que a disseminação das novas tecnologias e dos media parece ter aniquilado talvez definitivamente a sua vitalidade e função no seio das comunidades rurais em que ainda permaneciam até há pouco tempo.

 

Remonta a 1421 o primeiro documento conhecido onde se fixa uma versão de um romance, o "Gentil dona, gentil dona", pela mão do estudante maiorquino Jaume de Olesa. Foi, contudo, o Romantismo que encetou o interesse sistemático por este género poético. Desde 1824, foram coligidas milhares e milhares de versões de romances em Portugal, em Espanha e nos países da diáspora portuguesa e espanhola, sem falar na memória romancística que os judeus expulsos da Península Ibérica nos finais do século XV transportaram com eles pelo mundo e que ainda hoje é preservada.

 

Poderíamos, para o caso específico português, referir-nos ao contributo das recolhas e publicações de versões de romances realizadas a cargo de nomes como Almeida Garrett, Teófilo Braga, Leite de Vasconcellos, Consiglieri Pedroso, Alves Redol, Michel Giacometti, Maria Aliete Galhoz, Manuel Viegas Guerreiro, entre tantos outros. Este arquivo alimenta-se, justamente, dos trabalhos de recolha e publicação do romanceiro tradicional português que estes e muitos outros interessados na literatura de tradição oral levaram e continuam a levar a cabo no presente.

 

 

 

Leia mais aqui e aqui

Entrevista com os investigadores aqui

No facebook aqui  

 

 

 

 

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Quarta-feira, 24 de Junho de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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A asneira da austeridade

 

 

Em tempo de vacas gordas, haver ricos conforta os pobres e vive tudo na paz do Senhor. Em tempo de vacas magras, o Diabo põe-se à coca e faz das suas. De entrada, a esperança teima: para o ano vai ser melhor, pensam muitos (e depois pensam poucos). Quando anos passam e quase nada melhora, o azedume rói as almas. O mau viver instala-se a pouco-e-pouco; cava-se um fosso entre o mundo cada vez mais pequeno dos ricos e o mundo cada vez mais vasto dos pobres e acaba por se estragar tudo — mesmo em lugar tão cordato e tão pouco dado a excessos quanto Portugal.

 

Estamos a chegar aí – tal como vários outros países europeus – graças a política de austeridade que de há quase cinco anos a esta parte os países que têm o euro como moeda resolveram adoptar. Em lugares do Sul animados por tradições de guerra civil, como a Espanha e a Grécia, a violência formiga à flor da pele. Mais acima no Continente, os países decisores ou por falta de visão (tais aqueles jogadores de futebol que olham para a bola em vez de olharem para o campo) ou por ignorância de história (a qual lhes diria que, em 1953, a Alemanha Ocidental ter um superavid primário foi crucial para a decisão de lhe reduzir drasticamente a dívida) estão a minar a segurança e o bem-estar dos europeus. É certo que em 1953 os europeus ocidentais tinham pavor salutar da URSS. Mas hoje a Europa inteira deveria ter medo geral profilático: da Rússia; da concorrência desregrada dos outros BRICS; do descalabro sanguinário do Próximo Oriente. Somos uma jangada de paz e decência em mar alto onde borbulham monstros.

 

E nem é hoje a Alemanha que nos empurra para o abismo. Finlândia, Holanda, Eslováquia, Eslovénia falam mais grosso ainda. Mas com chefe à altura de Adenauer, que puxou os seus do fundo do opróbio; ou de Churchill que salvou a Democracia das garras de Hitler e Estaline; ou de De Gaulle que, em 1945, fez da França vencida França vencedora – tudo iria ao sítio. Mesmo sem eles, talvez vá se Angela Merkel tiver unhas para essa guitarra. Talvez as tenha.

 

Escrevo da Nova Iorque dos pobres, onde houve festa da música no Solstício de Verão. No bistrot da esquina, com mesas cá fora, quarteto francês de jazz (The Blues Syndicate, amadores cinquentões) veio dar acompanhamento ao aperitivo e, depois de jantar, ao serão. “Perdemos Waterloo mas ganhámos os blues” disse o guitarrista entre duas peças. Quinta-Feira, à reconstituição comemorativa dos 200 anos da batalha tinham vindo o Rei dos Belgas, o Príncipe Carlos, descendentes de Napoleão, de Wellington, de Blücher, outros estadistas europeus. Os franceses têm mau perder e mandaram só o embaixador em Bruxelas. Os alemães fizeram o mesmo mas porque, desde a atrocidade nazi, ganhar dá-lhes amargos de boca — por muito antigo que o ganho haja sido.

 

Isso deveríamos todos aprender com eles. Na minha experiência, a Alemanha era o único grande país europeu que se portava decentemente com os pequenos e dizem-me que continua a sê-lo.

 

 

 

Imagem: aqui

 

 

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Sexta-feira, 24 de Abril de 2015

Fotografias de João D'Korth

 

Henrique D’Korth Brandão,  que alguns leitores conhecem do Facebook onde publica regularmente fotografias – as suas e as do seu álbum de família ­– pôs gentilmente à disposição deste blog os álbuns de fotografias de seu tio João D'Korth, que lhe foram recentemente oferecidos. Em futuros posts apresentaremos as fotografias de João D'Korth, começando pelo álbum da Exposição do Mundo Português (1940), a coincidir com as efemérides dos 75 anos do evento e dos 120 anos do nascimento de António Ferro.

 

Pedi a Henrique uma apresentação de João D'Korth:

 

 

 

 

 

João D’Korth (1893-1974)

 

 

 

 

 

João D’Korth (1893-1974) 

 

Meu tio-avô João "Grande" (como me ensinaram a chamar-lhe para o distinguir do tio João "Pequeno", irmão de minha mãe), nasceu em Lisboa ao meio-dia de terça-feira 2 de Maio de 1893 na Rua Larga de São Roque, número 66, 2º andar e foi baptizado aos 25 dias do mesmo mês, na igreja do Santíssimo Sacramento com o nome de João Chrystiano Castagna D'Korth.

 

Sei que o "Tio Faísca" trabalhou décadas na C.R.G.E. [Companhias Reunidas de Gás e Electricidade] quando ainda sediada na rua Vítor Cordon, que esteve em França na Grande Guerra, e aí se interessou por pombos-correios. Também gostava de pesca. No jardim da sua Princesa, havia pombas de leque e carpas brocadas em profusão; rosas de Santa Teresinha e brincos-de-princesa.

 

 

 

D'Korth João fardado 1917 07

 

 

João D'Korth em 1917

 

 

 

Segundo a minha mãe e a minha tia, o tio João tratou a Néné "como uma Princesa". Era a Princesa dele e uso agora a aliança que ele usou, revelando quando aberta o nome dela e a data do casamento: Maria das Dôres, 9-2-1931.

 

Foi a Néné que encadernou livros e albuns de fotografias, preservando a maior parte do espólio de imagens a que tive acesso — a guardadora de imagens que me permitem evocar e aceder a esse mapa da cidade-de-cada-um, feito das ruas-do-onde-morava.

 

 

 

 

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Nené - Maria das Dores D'Korth no seu estúdio de encadernação

em Lisboa na Travessa da Fábrica das Sedas, 23

 

 

 

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 Álbum de fotografias de João D'Korth encadernado e com papel estampado por Néné 

 

 

Foi engenheiro e engenhocas. Os relógios, que coleccionou, pontuaram a vida da casa, do rés-do-chão ao primeiro andar; acertados por ele, disparavam a cada quarto-de-hora em intervalos de segundos para se poder ouvir distintamente o toque de cada um. Eram relógios de caixa-alta, de carrilhão, de mesa, de três movimentos, de parede e, em profusão no estúdio de encadernação da tia Dores, os de cuco.

 

 

A música foi outra das suas paixões: seu pai, meu bisavô João Gregório D'Korth, médico-homeopata, foi um dos fundadores da Academia de Amadores de Música. Tocava violino e os três filhos estudaram todos um instrumento. Piano, violino e violoncelo, em casa, em Paris e em Berlim.

 

 

 

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Da esq. para a dta Maria Henriqueta (1892), João Cristiano (1893) e Arminda Mariana (1894)

Lisboa, fotografia Vidal e Fonseca, c. 1900

 

 

 

As aparelhagens de som foram em várias casas de parentes montadas por ele com requintes de amplificação e pré-amplificação. Gostava de automóveis e de viagens; primeiro, das complicadas, daquelas guiadas horas a fio e com guindastes pelo meio para içar a máquina da estrada para o ferry e do barco para outras margens.

 

 

 

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 Viagem a Marrocos, anos 40

 

 

 

Com o passar dos anos, foram os cruzeiros e a linha "C", "Grande come il mare", com todo o seu rol de nomes de Augusto a Flavia, passando pelo meu: Enrico.

 

 

Só há pouco descobri que aos pombos, peixes, automóveis, abelhas, relógios, navios, e aviões, podia juntar ainda como paixão sua a fotografia. Faceta oculta que me é revelada meio-século volvido: quando julgava não existirem mais fotografias de família para digitalizar, aparecem quatro álbuns que me dão a ver um mundo que se estende para além do país dos afectos.

 

 

 

 

 

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Estádio Nacional, 1944

Toni e Néné, os irmãos António José Brandão e Maria das Dôres Brandão D'Korth

 

 

 

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Exposição do Mundo Português, Lisboa 1940

Nau Portugal aqui

 

Álbum Exposição do Mundo Português no Flickr

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FAMÍLIAS - NOMES

 

Os Castagna vieram de Malta em meados do século XIX, e foram comerciantes com loja de câmbio na Rua dos Capellistas, ou Rua Nova d'El-Rey.

 

Os D'Korth eram médicos que emigraram da Antuérpia para a cidade da Horta e daí para Montevideo, Porto e Lisboa. O tio João Grande era irmão de minha avó [materna] e casou com uma irmã de meu avô [materno]: cunhados, irmãos e vizinhos, numa espécie de imagem de espelho a revelar as duas famílias de que descende minha mãe: os (Carvalho) Brandão, brincalhões e mais down-to-earth, vindos da Mealhada-Anadia para Lisboa onde meu bisavô abriu loja na rua Augusta em 1913. Os de Korth, reservados de aparência e assaz altivos.

 

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Pintura a óleo representando o bisavô João Gregório D'Korth (1853-1925) a tocar violino com o "seu" quarteto; pintado pela minha bisavó, Marianna Castagna D'Korth, em 1900, na casa da Estrada das Laranjeiras a Palhavã. A casa foi demolida para dar lugar á Praça de Espanha e o quadro desapareceu também.

 

 

Henrique D'Korth Brandão

Lisboa 2015

 

 

 

 Álbuns no Flickr:

Exposição do Mundo Português

 França Anos 30

Marrocos Anos 40

 

 

 

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Sexta-feira, 27 de Março de 2015

My Years in Angola (2)

 

 

My Years in Angola (1950-1970) 

Andries Peter van der Graaf

 

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My Years in Angola (1950-1970)

My Years in Angola (3)

My Years in Angola (4)

My Years in Angola (5)

 

 

nestles-milk-banner

 

 

 

 

In the '50s, business with Nestlé was developing very well, for which we held the monopoly. At first condensed milk was the main product, then milk powder replaced it, as well as all sorts of baby food. We were not able to remain sole agent, in part as a result of pressure exerted by C.U.F. (Companhia União Fabril) on S.P.L. (Sociedade Produtos Lacteos).

 

 

 

 

 

 

 

1955-Nestl-em-Avanca

 

S.P.L. (Sociedade Produtos Lacteos)

 

 

For many years it was only possible to import milk products from Portugal (significantly more expensive than Dutch milk powder, for example) as no import licenses were issued for foreign milk. Later on, this situation changed. Only in later years was fresh milk available in the cities, and also sterilized milk, mainly from Cela.

 

 

Cela Igreja_e_Pelourinho_cedida_por_Z_Valada_Feliris_e_Milai

Cela, Angola c. 1960

 

Cela is a colony for white Portuguese settlers, situated in a highly fertile area of Central Angola, along the Cuvo River, most probably formerly a river bed.

 

 

12 Colonization project at Cela

 

 

Cela c.1960

 

 

A lot of money was squandered in Cela because things were done in a disorganized fashion (land planning took place when work had been on-going for over ten years, thousands of head of cattle were imported from Denmark and which were unable to adapt to the climate, colonists were recruited in Portugal more on the basis of connections than suitability). Still, it was an interesting project, to which we also contributed a good deal. One big client was the colonists' Cooperative, though unfortunately they were always short of cash, and couldn't pay their debts.

 

 


10 House of a colonist at Cela

 

Cela c.1960

 

Cooperation is not a strong point in the Portuguese. They are too individualistic for that, they say so themselves. The only Cooperative with which we had no financial problems was one in which the members were mostly Germans. Here and there in Angola there were some groups of Germans, among them the Mannhardt brothers, for example in Calulu, where they very successfully grew coffee.

 

coffee 15

 

A.P. van der Graaf visiting a coffee plantation

 

8 With Dutch padre

 Kees, Betty and Joyce with Dutch Padre

 

Sometimes missionaries came to buy goods from us and I was invited by them to come and have a look at their mission services. These were at Dondi, some 80 miles from Nova Lisboa. It was a Protestant mission, "Congregational", American and Canadian. This was a big mission, providing teaching in a number of subjects including agriculture and other trades, as well as providing medical care, including a leper colony. It covered a large area, many brick buildings in which the various services, hospitals and workshops were housed. 

 

 

 

 

IGREJA LUTAMO 1

 

 

Dondi Mission, Angola

 

Means School, 1950's

 Means School, Dondi, 1950's

 

 

 

What I remember best is the choir singing led by one of the American missionaries. The Bantu have an exceptional sensitivity to sound and rhythm, and the choir master had, I thought, brought them to a high level of performance.

 

Listen here to Angolan Umbundu music 

 

See here ruins of Dondi mission (Images of Angola - Noel Henderson-James, 2011)

 
 

 

... to be continued...

 

 

 

Andries Pieter van der Graaf

Jan/Feb 1974
Translated by Elizabeth Davies (van der Graaf) 2012

 

Full text:

The memoir of Andries Pieter van der Graaf is in two parts: Part 1 (written in English) starts in 1909 with his birth, and provides a vivid description of his early life in Krimpen aan de Lek, a small community near Rotterdam; of the effects of the Depression on the family; and of his experiences during the war. In Part 2 (written in Dutch, translation into English provided), he takes us from his first day in Angola, through his years learning how to run a Dutch trading company in Angola in colonial times, to his fascination with Angola and its peoples.

 

www.asclibrary.nl/docs/341/217/341217840.pdf

http://www.asclibrary.nl/docs/341220647.htm

 

Album "Vintage Angola" on Flickr 

 

 

 

Notes:

 

Read post # 1:  My Years in Angola (1950-1970) here

 

Many thanks to Elizabeth Davies (van der Graaf) and her family for allowing me to adapt the text and to illustrate it by using photos from the family's collection.

 

Muito agradeço a Elizabeth Davies e sua família que autorizaram gentilmente a edição do texto para publicação neste blog e disponibilizaram fotografias do espólio do autor.

 

Images and Photos:

NestléLeite Condensado

S.P.L.: Restos de Colecção

Means School, Dondi: Nancy Henderson-James

Music:

Angolan Umbundu Music: Nancy Henderson-James

 

 

 

publicado por VF às 09:59
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