Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça gravam mulheres da Beira a cantar.
Fotograma de 27 minutos com Fernando Lopes Graça [António Pedro Vasconcelos, RTP 1968]
[... ] Recolhendo a letra dos Romances desacompanhada da respectiva música, o autor das Viagens na minha terra fez obra incompleta, truncada. Não o culpemos muito por isso. Poderia ele ter procedido diferentemente ? Garrett era, antes de mais nada, um poeta, um escritor, certamente pouco familiarizado com o fenómeno musical. Não era folclorista (a disciplina do folclore achava-se então ainda nos limbos) para poder proceder à sua recolha (aliás feita indirectamente, através de comunicações de terceiros) com verdadeiro método científico.
Lembremo-nos, ademais, que, nos países que de certo modo o impulsionaram no estudo da literatura popular e que lhe ministraram as ideias interpretativas desta, a Inglaterra e a Alemanha, ou, antes, o movimento romântico naquelas duas nações, também as coisas não principiaram doutro jeito e que só mais tarde ali se começou a. prestar a devida atenção às melodias populares e a considerar em conjunto o binómio poesia-música.
No entanto, ao próprio Garrett. não passou acaso despercebida a deficiência do seu trabalho e o quanto importaria, sob o ponto de vista prático, isto é, para o aproveitamento artístico dos materiais fornecidos pela nossa poesia tradicional, associar esta às melodias que com ela nasceram ou que com ela fraternamente andam de par. Comentando, no mesmo 2.° volume do Romanceiro, o Romance da «Bela Infanta» (que classifica de chácara), diz que o introduziu, com algumas alterações indispensáveis, no 5.º acto d' O Alfageme de Santarém, fazendo-o «cantar por um coro de mulheres do povo, à hora do trabalho». E relata, entre satisfeito e pesaroso: «...observei o sensível prazer que tinha o público em ver recordar as suas antiguidades populares, que nem ainda agora deixaram de lhe ser caras, Mas por mais que fizesse, não consegui que as cantassem a uma toada própria e imitante, quanto hoje pode ser, da melopeia antiga com que há séculos andam casadas essas trovas. Ainda em cima, os cantores desafinavam e iam fora de tempo na música italiana e complicada que lhe puseram. Apesar de tudo, os espectadores avaliaram a intenção e a aplaudiram.»
Dos Romances compendiados por Garrett conhecemos nós hoje tão só as toadas da Bela Infanta, do Bernal- Francês, do Conde Yano (ou Conde Alberto), do Conde de Alemanha, da Silvaninha, do Reginaldo, do Conde Nilo, da Donzela que vai à guerra (também conhecido por D. Martinho), da Nau Catrineta, de O cego, de Linda-a-pastora (ou O príncipe e a pastorinha), do D. João e de A morena. (E possível que ainda um que outro deles haja por aí recolhido por algum curioso ou folclorista benemérito de que não temos notícia). Mas o ponto é saber-se se tais toadas são de facto as que, à altura da colação garrettiana, se cantavam com as letras que ali se referem. Não terá havido em muitas delas permutas e transposições? Já se verificaria então o fenómeno, hoje corrente, de a uma determinada toada se poderem atribuir vários romances ou de um destes ser cantado com melodias diferentes ? Que alterações ou transformações se terão produzido nessas toadas no decurso de um século?
A coisa seria importante de saber-se para a organização e estudo quanto possível documentado do nosso Romanceiro no ponto de vista poético-musical; mas crêmo-la já agora impossível de apurar-se.
A tarefa sistemática da recolha da poesia e música dos Romances nunca chegou a ser empreendida entre nós, e talvez já seja tarde para a tentar. E que prejuízo daí não resultou, a avaliar pelos belos mas desgarrados espécimes com que se consegue topar numa que outra publicação ou ouvir ainda (cada vez menos, infelizmente) da boca do próprio povo! (*)
O cometimento de Garrett ficou incompleto; mas saibamos fazer jus ao grande escritor, hoje, no ano do seu Centenário, por haver dado o sinal de partida, ao menos num aspecto do conhecimento, resguardo e apreço do rico tesouro da nossa arte popular.
Fernando Lopes Graça
in A propósito do Romanceiro de Garrett
Vol. III de Gazeta Musical (Academia de Amadores de Música) nr 51 Dezembro de 1954
(*) Nota do Autor: — Já agora, consignemos aqui os Romances (na maior parte incompletos, outros com interpolações várias) que, acompanhados de música, andam dispersos por várias publicações de que temos conhecimento, fazendo, para algumas das toadas recolhidas, a prudente reserva da fidelidade da transcrição musical (por exemplo, para os das colecções de Pedro Fernandes Tomás, a quem muito se deve neste capítulo, mas cujo rigor musical é frequentemente duvidoso), e formulando votos por que a presente lista possa vir a ser acrescentada com comunicações dos nossos estudiosos da matéria.
I. O Conde de Alemanha, Reginaldo, O Capitão da Armada, Nau Catrineta, O Cego, Frei João, Jesus pobrezinho, in Pedro Fernandes Tomás: Velhas Canções e Romances Populares Portugueses (França Amado, Coimbra, 1913).
II. O duque de Alba, A noiva enganada, in Pedro Fernandes Tomás : Cantares do Povo (França Amado, Coimbra, 1913)
III. O Caçador, Pastora, Sta, Catarina, Milagre da Virgem, in Pedro Fernandes Tomás: Canções Portuguesas — do século XVIII à actualidade (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934).
IV. D. João, D. Fernando, D. Angela, Deus te guarde pastorinha, Mineta, A menina cativa (?), in P.e Firmino A. Martins: Folklore do Concelho de Vinhais, 2º vol. (Lisboa, Imprensa Nacional, 1939).
V. O lavrador da arada, O homem rico, Conde Alardo, Santa Iria, in António Avelino Joyce: Revista Ocidente, IV.
VI. Lavrador da Airada, D. Silvana, Santa Iria, O príncipe e a pastorinha, Ora, valha-me Deus, Morena, O rei e a pastora, D. Martinho, in J. Diogo Correia: Cantares de Malpica (Livraria Enciclopédica de João Bernardo, Lisboa> 1938).
VII. O cego, Conde Nino, Conde Albano, Rosa, a pastorinha, Nau Catrineta, Dona Silvanas Irene (sem letra), Bernal Francês (sem letra), Lamentações da freira (sem letra), Dona Infanta, Gerinaldo, O lavrador da arada, in Gonçalo Sampaio: Cancioneiro Minhoto, 2,a edição (Livraria Educação Nacional, Porto, 1944).
VIII. O lavrador da arada (três versões), Romance ("sem titulo), in Edmundo Arménio Correia Lopes: Cancioneirinho de Fozcoa (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926).
IX. Santa Iria, A nau Catrineta, in Francisco de Lacerda: Cancioneiro Musical Português (Junta de Educação Nacional, Lisboa, 1935).
X. Rosa, a pastorinha, Confissão da Virgem, in Sales Viana: Cancioneiro Monsantino (Edições SNI, Lisboa).
XI. A bela Infanta, in Rodney Gallop: Portugal, a book of Folk-ways (Cambridge, at University Press, 1936),
XII. Silvaninha (var.), Bela Infanta, in Rodney Gallop: Cantares do Povo Português (Livraria Ferin, Lisboa, 1937).
XIII. Reginaldo (ou Gerinaldo), O homem rico, in Fernando Lopes Graça: A Canção Popular Portuguesa (Publicações Europa-América, Lisboa).
Deve observar-se que certos destes Romances se acham repetidos ou constituem lições diferentes do mesmo tema; estão neste caso, por exemplo, Mineta (O cego), Rosa, a pastorinha (O príncipe e a pastora, Pastora), Frei João (Morena), Jesus pobrezinho (O lavrador da arada). Isto apenas quanto às letras, porquanto as melodias não se repetem.
*
Notas:
1. Fotograma de 27 minutos com Fernando Lopes Graça [António Pedro Vasconcelos, RTP, 1968] de excerto reproduzido no documentário Uma visita aos afectos do compositor [Músicas Festivas de Fernando Lopes Graça © Sílvia Camilo 2014]
Imagem gentilmente cedida por Sílvia Camilo a quem muito agradeço.
2. O romance popular Linda-a Pastora com introdução de Garrett neste blog aqui
3. Artigo de Gonçalo Frota no Público O cante ouve-se com o corpo, diante das vozes" aqui
4. Mais neste blog nas tags Lopes Graça e Garrett
Fernando Lopes Graça, Horta, Açores 1983
Cumpriu-se faz agora dois anos a primeira etapa do projecto ambicioso dum grupo de amigos de Fernando Lopes Graça (1906-1994): trazer a público uma colecção de peças para piano que o compositor dedicou a amigos e eventos – as “Músicas Festivas” – e registá-la em múltiplos suportes, permitindo a criação de conteúdo não efémero.
Das 23 peças, 13 nunca tinham sido tocadas em público e 18 nunca tinham sido gravadas. A colecção inédita foi apresentada a 16 de Dezembro de 2012 num concerto do pianista António Rosado no Centro Cultural de Belém. Na mesma data saíram os CD "Músicas Festivas de Fernando Lopes Graça", os quatro volumes das partituras (em suporte papel) e foram criados um sítio Web multilingue* e um álbum de fotografias e documentos no facebook.
Um duplo DVD agora lançado [o concerto no CCB, com introdução do musicólogo Rui Vieira Nery, e o documentário "Uma visita aos afectos do compositor"] completa este projecto multimédia, a vários títulos exemplar, constituído por cinco iniciativas produzidas e financiadas por um grupo muito pequeno de pessoas com apoios quase nulos.
O documentário "Uma visita aos afectos do compositor" — retrato intimista e muito cativante de Lopes Graça construído a partir de depoimentos, excertos musicais, fotografias, imagens em movimento e documentos reunidos ao longo da pesquisa — revela-nos com simplicidade e saber toda a riqueza da sua música (1), do seu legado intelectual e da sua personalidade, à luz do presente.
E nem de propósito, a coincidir com a recente consagração mundial do Cante Alentejano, este documentário vem recordar o papel pioneiro de Lopes Graça na música coral portuguesa e na recolha da nossa música tradicional (2), e inclui mesmo um apontamento extra sobre a digressão pelos Estados Unidos, pela mão do compositor, do grupo coral alentejano da Aldeia Nova de São Bento, a convite da Smithsonian Institution, por ocasião do bicentenário do país, em 1976.
Bem vindo às “Músicas Festivas” de Fernando Lopes Graça, disponível em DVD numa loja perto de si.
Notas:
1. “Muita da sua reflexão vem de um trabalho de desconstrução dessas músicas tradicionais e de transposição de elementos que ele encontra nessa linguagem popular para uma esfera erudita em que depois cruza esses elementos com as referências cosmopolitas das vanguardas modernistas em que se integrou”. [Rui Vieira Nery na introdução]
2. Lopes Graça cria nos anos 40 o Coro da Academia de Amadores de Música. As suas harmonizações das Canções Regionais Portuguesas e as Canções Heróicas serão cantadas pelo Coro por todo o país. O interesse de Lopes Graça por este património tradicional e o trabalho que desenvolveu nesta área é comparável ao de Garrett com o Romanceiro, acerca do qual o compositor escreveu na revista Gazeta Musical um artigo que será abordado em futuro post.
*Na web em português aqui e EN-FRA-RU-ESP-HUN
trailer do documentário aqui
facebook aqui
Audições no fim do ano lectivo na Academia de Amadores de Música*, Lisboa, Junho 1969.
Miguel Azevedo e Sílvia Camilo. Flauta de bisel. Professora: Catarina Latino
São 23 obras para piano, compostas ao longo de três décadas por Fernando Lopes Graça para aniversários, bodas e outros acontecimentos como a inauguração de uma casa ou um simples convívio de amigos.
"Umas são pequenas, outras maiorzinhas. É uma colecção que eu tenho: uma comemoração disto, uma comemoração daquilo, uns anos deste, um casamento daquele... São "Músicas Festivas" (F.L.G. fev. 1986).
Em 1962, ano em que inicia a composição das Músicas Festivas, Fernando Lopes-Graça muda-se de Lisboa, onde ainda compõe a primeira peça deste ciclo, para um apartamento na Parede. Aí, um pequeno gabinete com um piano vertical passará a ser a oficina do compositor até à sua morte. Após uma fase emocionalmente dilacerante que culminará nessa obra-prima que é Canto de Amor e de Morte (1961), este ciclo de Músicas Festivas parece inaugurar, simbolicamente, uma nova fase na vida do compositor. (1)
partitura original
A colecção inédita — das 23 peças 13 nunca foram tocadas em público e 18 nunca foram gravadas — será registada em múltiplos suportes para permitir a criação de conteúdo não efémero. A iniciativa partiu de um grupo de amigos de que hoje fazem parte três dos dedicatários das Músicas Festivas, entre outros colaboradores, e todas as acções vão por diante apesar de os apoios terem sido muito escassos.
Um Concerto no Centro Cultural de Belém a 16 de Dezembro de 2012 incluirá a maior parte das peças, interpretadas pelo pianista António Rosado e com uma introdução do musicólogo Rui Vieira Nery . Na mesma data serão lançados os quatro volumes das partituras (em papel) e o primeiro volume do CD das Músicas Festivas [2]. Os autores do projecto criaram igualmente um sítio web [3] e um álbum de fotografias digital [4]. Mais tarde será produzido um DVD incluindo o concerto ao vivo e um documentário, com depoimentos dos dedicatários e outras pessoas próximas do compositor.
Além do seu interesse cultural manifesto, esta edição multimédia das Músicas Festivas de Fernando Lopes Graça é sem dúvida um modelo inspirador de "Álbum de Família" ou, melhor dizendo neste caso, de "Livro dos Amigos".
Fernando Lopes Graça (1906-1994)
retratado por Cecília Pinto
Notas:
1 Texto integral de João Espírito Santo (Outubro de 2012) aqui
2 CD: integral Músicas Festivas pelo pianista António Rosado
3 sítio web aqui
4 álbuns de fotografias aqui
5 um perfil de Fernando Lopes-Graça aqui
6 De todos os materiais produzidos serão entregues exemplares ao Museu da Música Portuguesa - Casa Verdades de Faria para serem integrados no espólio do compositor. aqui
7 Imagens deste post encontradas aqui
8 Fernando Lopes-Graça e a Academia de Amadores de Música aqui