Quarta-feira, 23 de Agosto de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

 

Sacanas e bananas

 

 

 

Passam-se anos sem eu ver o Duro. Desde novos, privámos em passagens animadas da vida e ele conhece-me melhor a mim do que eu o conheço a ele - ou pelo menos é isso que eu sinto. (Outro com quem acontecia o mesmo era o meu chorado Zé Cardoso Pires e eu achava que tal se devia ao Zé ser romancista e eu não; com o Duro essa explicação não colhe). Encalhámos um no outro há dias e lembrei-me – lembro-me sempre que nos encontramos - de encalhe anterior, também no verão, à porta do Balaia, depois do 25 de Abril mas antes do Balaia ter virado Club Med.

 

“Voltaste?”. Fazia-o ainda pela finança internacional, em Londres ou numa das costas dos Estados Unidos.

 

“Não! Só quando as condições estiverem cumpridas”.                                                                                  

“Quais condições?”                                                                                                                                                  

“Salazar no poder; Marcelo Caetano na oposição; Freitas do Amaral na clandestinidade!” (Freitas do Amaral, nessa altura, considerava-se e era considerado de direita).

 

A mi me gustan las cosas asi: los hombres hombres; el trigo trigo!” afirma camponesa andaluza numa peça de teatro de Lorca. Camponesa que havia de ser, como o Duro, pessoa de um só princípio, de um só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer. Como seria também o médico cujo nome me escapa, membro do Partido Comunista Português no tempo da clandestinidade, preso duas ou três vezes, esbofeteado pela Pide, que encontrei em casa da Mimi e do Fernando Bandeira de Lima, amigos dos meus Pais (ele também maltratado na António Maria Cardoso) e que, ao falar eu de inspector da Pide inteligente me interrompeu, indignado, porque a inteligência era um dom das almas superiores e, por isso, nenhum Pide podia ser inteligente.

 

Ainda haverá gente assim. O Duro é fino como um coral; o amigo dos Bandeira de Lima era burro; o que nos chegou da camponesa de Lorca não dá para saber – mas tudo seres morais e isso escasseia agora no pessoal político. Não só por cá (já lá vamos); falha no cimo mesmo do que chamávamos “O Mundo Livre”: Trump, palhaço pouco esperto, ignorante e malfazejo terá de ser corrido depressa; no Reino Unido não se vê hoje ninguém; em Berlim, automóveis poluentes e superavit escandaloso são demais para que a mediocridade da Senhora disfarce a Alemanha. Talvez Macron, se fizer os franceses perderem egoísmo e peneiras.

 

E nós? No tempo de Salazar o escritor José Rodrigues Migueis dizia que Portugal era um país de bananas governado por sacanas. Democracia e Europa trouxeram-nos harmonia: hoje somos, governados e governantes, bananas assacanados - ou sacanas abananados se a leitora preferir.

                                                                            

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Quarta-feira, 31 de Maio de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Jean-Michel-Basquiat-50-cent-Piece.-1983

 Jean-Michel Basquiat, 1983 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

 

Não há de ser nada

 

 

Leitora querida, duas gerações abaixo da minha, jurista – o que ainda me impressiona sempre, é uma espécie de microtraumatismo para a minha mente moldada em fôrma alentejana anarquista na qual o pai proíbe o filho de em crescido ser padre, soldado ou advogado - metida num desses programas europeus para a educação superior que vão sob o nome geral de Erasmo, levam gente nova de um lado para o outro a encontrar outra gente e, logo por isso, não teriam desagradado ao sábio de Roterdão do Elogio da Loucura, mandou-me dizer o seguinte:

 

A marcha da tecnologia é um problema bicudo, mas não há de ser o fim do mundo. Admito que me irrita um pouco a jovialidade com que os jornais gostam de proclamar semana sim, semana não, o antecipado fim da profissão X ou Y (às vezes incluindo o da minha-a-partir-do-ano-que-vem-com-sorte). Mas se nos conseguimos – mais ao menos e depois de muita tareia – adaptar às mudanças da revolução industrial, não vejo porque estas serão diferentes. O ritmo assusta, é certo, e não digo que nos esperam rosas, mas alguma coisa se haverá de arranjar.”

 

That’s the spirit!” teria eu reagido, nos meus anos ingleses, tão diferentes dos anos de hoje em Inglaterra ou seja onde for. O ritmo realmente assusta. Em A Cidade e as Serras, Zé Fernandes, vê fita de papel sair de máquina em casa do seu amigo Jacinto (que tinha nascido com cento e nove contos de renda em fartas terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival – e cento e nove contos no fim do século XIX eram muitíssimo dinheiro) no número 202 dos Campos Elísios, fita onde está escrito que a fragata russa Azoff entrara no porto de Marselha com avaria e pergunta a Jacinto porque é que aquilo lhe interessa. “É uma notícia” responde o anfitrião e hoje estamos todos como ele. Smartphones, tablets, computadores, emails, twitts, Facebook, Skipe, WhatsApp, etc., etc., etc., deixam-nos ao fim de cada dia – que a rotação da terra, tirando ou pondo um minuto por século, essa ainda é a mesma - com milhares de fragatas russas avariadas em centenas de portos dentro da cabeça. Eu sei que o saber não ocupa lugar (houve a certa altura colecção de livros de divulgação chamada assim) mas o que entra todos os dias parece incomensurável - e, de qualquer maneira, serão precisos instrumentos inéditos de medição no bravo mundo novo da post-verdade.

 

Cada homem é uma ilha, escreveu o poeta. Em 1968, em Oxford, ainda assim parecia ser. M.S. Lourenço e eu inventámos poeta escocês romântico esquecido, redescoberto e analisado pelos filólogos oxonianos Marks, judeu, e Spencer, goyim, de cujo nome já me não lembro mas de quem sei ainda de cor a tradução – feita por nós do original inglês – de um verso: “Já do teu sentimento conhecimento não tinha.” Graças à mania inveterada de fazer partidas de M. S. estivemos quase a mandar curto artigo sobre ele a uma das nossas revistas literárias, seguros de que os nomes dos filólogos não poriam de fora o rabo do gato. Bons tempos.

 

 

 

 

publicado por VF às 12:48
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Terça-feira, 30 de Agosto de 2016

Fernando Guedes, editor e homem de cultura

 

 

Untitled-1.jpgFernando Guedes (1929-2016)

 

 

 

 

Ignoro se têm sido muito ou pouco estudadas eventuais afinidades do nosso modernismo com o dos Britânicos, para além da comum recusa do sentimentalismo (mas talvez não a procura radical da despersonalização e do distanciamento, que quase só encontramos em Pessoa; a estética imagista só terá verdadeira expressão portuguesa com Alberto de Lacerda, mas esta poderá ser uma opinião controversa), mas não resisto a chamar a vossa atenção para os conselhos que William Carlos Williams, um outro americano que foi figura de proa do Imagismo, dava à poeta inglesa Denise Levertov, em 1954, repercutindo ainda nesse momento, de forma bastante fiel, o ideário imagista de Pound e Eliot em 1914. Dizia ele: «Corte, e corte de novo, tudo o que escrever — ao mesmo tempo que por obra da sua arte não deixa vestígios dos cortes — e o resultado final ficará repleto do que tem para dizer».

 

O crítico britânico Harold Monro, num livro intitulado Some Contemporary Poets, publicado em 1920, conta a história de um jovem poeta americano recém-chegado dos Estados Unidos que procurou Eliot a fim de lhe mostrar os seus trabalhos. Este, ponderou longamente em silêncio um poema e, erguendo finalmente os olhos, terá dito: «Precisou de 97 palavras para o fazer; eu acho que poderia tê-lo feito em 56». Mas nada disto era novo e os próprios imagistas não se cansavam de o afirmar: «Estes princípios não são uma novidade; caíram em desuso. Eles são o essencial de toda a grande poesia».

 

É claro que estamos no plano estilístico da precisão. Mas creio que poderíamos articular isto, independentemente dos particulares relativos à diferença de contextos, com o que António Ferro — fundador e referência desta Casa — escrevia, em 1919, em Leviana (publicado em 1921):

 

«O excesso de pormenores embrulha a concepção, a intenção. Já que não podemos simplificar a vida, simplifiquemos a literatura. A literatura, como a vida, está atravancada. Há que descongestioná-la: um só quadro numa parede, dois ou três móveis em cada sala. Simplifiquemos! Simplifiquemos! A falta de espaço é cada vez maior. Há que fazer peças com poucas personagens, romances com poucas páginas, telas com poucas tintas. Seleccionar! Seleccionar! Escrever muito é fácil. Escrever pouco é heróico, muitas vezes. Poucos escritores têm essa coragem».

 

Como é sabido, The Waste Land, o poema de Eliot que Fernando Guedes considera o mais visionário do século xx, foi drasticamente reduzido na sua dimensão pela mão de Pound, que na dedicatória de Eliot é justamente designado como il miglior fabbro.

 

***

 

Há muito que Fernando Guedes se interessa por estes dois autores, Eliot e Pound. Poeta, ligado à Távola Redonda, nessas «folhas de poesia», cuja publicação se iniciou em Janeiro de 1950, apresentou e traduziu ambos (possivelmente pela primeira vez entre nós, como ele próprio notou na sessão de apresentação do livro). Eliot fora distinguido com o Nobel em 1948; Pound, internado num hospital psiquiátrico, recebera o Prémio Bollingen, em 1949. Posteriormente, no final da década, Fernando Guedes haveria de dirigir uma outra revista que logo no título – Tempo Presente – evocava Eliot (O tempo presente e o tempo passado/ São ambos presentes talvez no tempo futuro/E o tempo futuro contido no tempo passado) e que no segundo número apresentava traduções de Pound e saudava a sua libertação, ocorrida no ano anterior.

 

Deste modo, o que Fernando Guedes faz nestas quatro comunicações é arrumar de forma condensada o seu próprio percurso de leitor de Eliot e Pound ao longo de décadas e apresentar a sua visão sobre o lugar de cada um deles na poesia do século xx. Partindo de uma perspectiva, que foi antes de mais geracional, de reavaliação da modernidade face à tradição, de indagação estética (o tal percurso partilhado em fraterna amizade com Fernando Lanhas), mas também ideológica na marcação das suas distâncias, Fernando Guedes engloba no seu interesse por estes poetas a dinâmica concisa e complexa da estética imagista, a relação com as artes plásticas, e, muito particularmente, a sua ressonância mítica e religiosa.

 

 

Jorge Colaço

 

Excerto de um texto lido no Círculo Eça de Queirós no dia 4 de Setembro de 2014 a propósito do livro de Fernando Guedes T. S. Eliot e Ezra Pound – uma tentativa de aproximação às suas vidas e às suas obras, publicado nesse mesmo ano.

 

 

O artigo de Jorge Colaço  Na morte de Fernando Guedes (1929-2016)  aqui.

 

Algumas obras de Fernando Guedes disponíveis na Wook aqui

 

 

 

 

 

 

 

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Domingo, 21 de Agosto de 2016

Letters to J.D. Salinger

 

 

Penguin-1248 Salinger Catcher on the Rye-rc.jpg

 

 

 

Seymour'd told me to shine my shoes just as I was going out the door with Waker. I was furious. The studio audience were all morons, the announcer was a moron, the sponsors were morons, and I just damn well wasn't going to shine my shoes for them, I told Seymour. I said they couldn't see them anyway, where we sat. He said to shine them anyway. He said to shine them for the Fat Lady. I didn't know what the hell he was talking about, but he had a very Seymour look on his face, and so I did it. He never did tell me who the Fat Lady was, but I shined my shoes for the Fat Lady every time I ever went on the air again — all the years you and I were on the program together, if you remember. I don't think I missed more than just a couple of times. This terribly clear, clear picture of the Fat Lady formed in my mind. I had her sitting on this porch all day, swatting flies, with her radio going full-blast from morning till night. I figured the heat was terrible, and she probably had cancer, and — I don't know. Anyway, it seemed goddam clear why Seymour wanted me to shine my shoes when I went on the air. It made sense.

 

J.D. Salinger in Zooey (1957)

 

 

*

 

 

What stays to me the most from your books is the Fat Lady from Franny and Zooey. I remember Seymour telling his siblings to polish their shoes for the fat lady [...] I remember Zooey explaining years later to Franny that there wasn’t really a Fat Lady, that the Fat Lady is God, or that faceless unknown person in the audience for whom a performer must always do his or her best, even when we don’t feel like it, or when we’re confronted with a cold, unresponsive, audience.

 

Stephen Collins in Letters to J.D. Salinger, edited by Chris Kubica, Will Hochman

 

 

 

Letters to J.D.S..jpeg

 

 

 

 

 Leia também neste blog o post Everyone is the Fat Lady 

 

 

 

 

 

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Sábado, 14 de Maio de 2016

dicionário pessoal: omnívoro

 

 

letter-o-cherubs cooking soup.jpg

 

 

 

omnívoro
om.ní-vo.ro/a
adjectivo
(do latim omnivorus)

 

 

 

Que come de tudo e não que come tudo, como os vampiros da balada. No primeiro caso estamos perante um sinal de liberalidade, no segundo, de mera glutonaria. O animal omnívoro distingue-se, assim, das grandes famílias dos carnívoros e dos herbívoros, cuja dieta alimentar é mais exclusiva. O organismo do animal omnívoro está adaptado a essa circunstância, o que não significa que seja um devorador exaustivo. Ou até à exaustão, que é coisa um pouco diferente. Mas é quase sempre um predador. Por analogia, podemos falar, por exemplo, de leitores omnívoros – sobretudo na idade em que tudo o que vem à rede é peixe –, mas o termo é usado demasiadas vezes como elogio. Ora, o leitor omnívoro é um leitor que lê de tudo. E, fora do âmbito democrático e da idade própria, o leitor que lê de tudo (ou ouve de tudo, ou vê de tudo) ainda não se decidiu em matéria de gosto, o que não é em si grande louvor. Já os leitores que são exaustivos e lêem tudo de certo autor ou sobre um determinado assunto podem ser altamente estimáveis. Se a analogia for feita no plano sexual, a criatura omnívora será aquela que come de tudo, satisfazendo plenamente o requisito semântico do termo, e não tanto a figura rapace que come tudo – por exemplo – que tenha saias, ou pegue touros, para referir dietas clássicas, assaz restritas nos tempos que correm.

 

 

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Quarta-feira, 15 de Abril de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

MapasNCondeJoanina.jpg

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

Fofocas

 

 

 

Na semana passada a Vera tinha-me prevenido – “Aqui ninguém pensa em guerra; têm medo de outras coisas mas guerra não lhes passa pela cabeça” – e eu modificara o texto mandado antes, procurando colocar o público em terreno que me conviesse.

 

Êxito mitigado. Leitora entre as happy few a quem eu mando o Bloco já paginado - escusam de o ir buscar elas (e eles) ao web, assim como dantes se faziam de livros pequenas tiragens fora do comércio, com exemplares numerados e impressos em melhor papel – pilar de discernimento na minha vida, foi a primeira a disparar: “Acho que estás a precisar de apanhar um bocadinho de sol, de ver o Guincho… ” Leitor com a cabeça mais bem arrumada que encontrei fora de grandes universidades inglesas e norte-americanas surgiu a seguir: “Almocei umas iscas de leitão muito simpáticas e estava bastante contente da vida, quando quiçá por praga rogada pela mãe do reco, me chega este murro do real para dificultar a pacífica digestão. Irra lá terei de chupar uma Rennie, para tentar recolocar-me no paraíso artificial.”

 

A leitora já foi sobrinha por afinidade do leitor - e também minha por, digamos, contra-afinidade. A família de pai, mãe, filhos, filhas, cognaticamente alargada, apesar das muitas bordoadas levadas desde que a minha geração chegou à idade de descasar, continua a ser o núcleo indestrutível e indispensável da vida dos portugueses (como verificou elegantemente num pequeno estudo empírico a Dra. Isabel Marçano, que não conheço nem sei se lê estes Bloco-Notas).

 

Em Portugal, a seguir à família, talvez o mais importante corrimão de escada seja o lugar de onde se venha, aquilo a que o emigrante Alves – conheci-o em Maputo mas a diáspora começara em França – chamava “a minha parvónia”, no meu caso Évora, Alto Alentejo. Deste, na semana passada, disseram também de sua justiça patrício e patrícia do meu mundo de correspondentes. Ele percebia o “desânimo que te provoca a cultura de mercearia europeia que não tem um só motivo para que qualquer jovem (e os respectivos progenitores) aceitasse morrer por ela”. Ela foi sucinta : “Que grande texto!” – tinha gostado da substância e da forma. Devo acrescentar que, já antes destes encómios, se eu tivesse de organizar duas bichas alentejanas, uma de homens e outra de mulheres, pô-los-ia à cabeça de cada uma delas.

 

Como os do Tejo para cima não têm no meu coração canto menos acolhedor do que os transtaganos (ou os algarvios), perguntei se teria sido pessimista a estrangeira que conhece o direito e o avesso da Europa comunitária e conhece Portugal sem a ternura difusa dos residentes estrangeiros (ricos) nem a raiva uns aos outros dos indígenas (ricos e pobres). Achou que eu não fora pessimista mas fora brutal. “Brutal como Al Capone ou como o Sermão da Montanha?” inqueri . “Como o Sermão da Montanha.”

 

Fiquei todo babado pois o mesmo me palpita que na altura tenha dito ao Filho Nossa Senhora, acrescentando à parte para Santa Ana: “Ai este rapaz, este rapaz…”

 

 

Imagem aqui

 

 

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Quarta-feira, 17 de Setembro de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 Cosimo de Medici 

 

 

 

 

 

Progresso?

 

 

“Quem saiba a língua sabe a cultura e quem saiba a cultura entende as pessoas” dizia o professor de antropologia social em Oxford. Por estudar gente do meu país —  e da minha província natal — em vez de estudar gente de fala, lugar, manhas e fé diferentes das minhas, eu tinha meio caminho andado. Sobre isso, para Evans-Pritchard  (EP como a gente lhe chamava), não havia a menor dúvida. Concordei.

 

Hoje não concordaria. A conversa foi há cinquenta anos e cinquenta anos agora não são o que eram cinquenta anos há cinquenta anos. As diferenças entre passado e presente são maiores do que alguma vez haviam sido desde o Big Bang, ou, para tentar entender, desde que a consciência humana inventou e mediu espaço e tempo. Mais perto de nós, longe dos mistérios do tempo cósmico e dos buracos de traça do tempo histórico, no tempo pessoal de cada um, a velocidade da mudança acelerou como nunca acontecera. A língua falada pelos netos afasta-se da língua falada pelos avós e o confronto entre as duas roça a incompreensão. A escrita, desde os tijolos gravados da Caldeia ao processador de palavras que estou a usar, passando pela Bíblia de Gutenberg, o Dicionário de Moraes, a cartilha de João de Deus, fora acompanhando e resistindo, guardando e deitando fora, mantendo-se viva ao contrário do latim e do grego clássico. Hoje é diferente.

 

“[O] blog está a perder fluidez: trazes muitos temas colaterais à colação. A net exige uma escrita mais linear, frases mais curtas e menos ornamentos de erudição sobre o assunto principal” escreveu-me leitor fiel a quem Verão dantesco revelou que amigos do peito eram, afinal, amigos de Peniche, afastando-o algumas semanas de rotinas que incluíam a leitura destes Bloco-Notas. “Eu não sou especialista mas estive a vê-lo com os meus filhos [que o são] e aquilo que observo foi deles que o ouvi”.

 

Devem ter razão mas a pressa competitiva, inventando maneiras cada vez mais curtas e rápidas de dar recados para espalhar notícias antes da concorrência ou ganhar milhões em fracções de segundo, está a afunilar a língua, reduzindo ou conseguindo mesmo eliminar ambiguidades, preferindo certezas a dúvidas, acção a reflexão, usando, para referir maneiras de agir ou reagir, metáforas que reflectem métodos financeiros, investigação económica, práticas comerciais e se afastam cada vez mais do ciclo das estações, tal como no supermercado se encontra sempre agora fruta que não é da época. (A popularidade de Twitter, que restringe comunicações a 142 caracteres, atesta gosto pela brevidade mas não era bem disso que Tchekov falava quando dizia: “escrever bem é escrever com concisão”).

 

O banqueiro Cosimo de Medici, dono da melhor biblioteca de Florença e o mais sábio dos irmãos, detestava a invenção de Gutenberg. Os livros não se comparavam em qualidade com os seus incunábulos. A cultura acabara.

 

Enganava-se mas quem saiba a língua hoje não sabe por isso a cultura nem entenderá melhor as pessoas. Como fazem agora os antropólogos?

 

 

 

 

 

  

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Quarta-feira, 13 de Agosto de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 Paula Rego - A dança

 

 

 

 

 

Quem sabe, sabe.

 

 

Entre as duas guerras (a de 1914-1918 e a de 1939-1945, lembro às leitoras mais novas), a propósito da explosão de exibicionismos que borbulhavam nas années folles, André Gide (francês e Prémio Nobel da literatura em 1947, lembro às leitoras menos dadas a leituras) dizia ver à sua volta mais artistas do que obras de arte. Nessa altura não havia nem internet nem twitter nem facebook nem blogs e, com o que hoje se chamam plataformas a coisa mais parecida seria o cinema, que Meliès e os manos Lumière tinham solto em Paris e vingara na Europa e nos Estados Unidos como a prole de um casal de coelhos na Austrália — mas hedonismo, egotismo e narcisismo são antigos e para lhes dar asas cada uma sempre usou o que tivesse à volta (ensimesmada: quando perguntaram às águas do lago se Narciso era mesmo belo, estas responderam que não sabiam porque quando ele vinha olhar-se nelas, elas aproveitavam para se olharem a si próprias nos olhos dele — ou, pelo menos, foi o que Oscar Wilde contou, não sei se antes se depois de ter conhecido Gide em Paris, onde viria a morrer. O mundo é pequeno).

 

De artistas e de obras de arte pouco ou nada sei mas há mais de dez anos virei comentador e, de silêncios aconchegados, longe da balbúrdia pátria, vou mandando bocas. Agora, chegado no começo do mês de Bruxelas, lendo os jornais e olhando para o que Conchita Cintrón chamava la pantalla chiquitita, suspeito que neste maravilhoso país que tão generosamente acolhia Freddy Kotter no seu seio a algazarra dos comentadores cobre de uma espécie de smog as coisas a comentar. Não é que estas faltem — desde o esforço vão do governo para transformar os portugueses em alemães (por via fiscal, ainda por cima) com Herr Gaspar, primeiro, e Frau Albuquerque, depois, a encaminharem-nos com um vasculho, como dantes os vendedores de perus pelas ruas de Lisboa, até à sanha súbita contra várias gerações da família Espírito Santo, reminiscente do azar dos Távoras — mas, bombardeadas pela cacofonia pátria, essas coisas e outras de menor porte deformam-se como as nossas caras na galeria de espelhos de uma feira de diversões.

 

Disse à Vera, dona do blog, que estava a pensar deixar de escrever o Bloco-Notas mas ela disse-me que eu não podia fazê-lo e que o mundo agora era assim, que todos podiam deitar palavra e que havia leitoras para tudo quanto se escrevesse. É, com efeito, um pouco tarde para protestar contra o ensino obrigatório, contra enciclopédias que anunciam à cabeça não garantirem que a informação que nos dão seja verdadeira e contra o ulular desafinado dos comentários de nós todos. Mas eu sou um pequeno-burguês de Évora e às vezes sinto-me como patrício meu, sentado sobre tábuas pousadas em tripés na primeira fila de um circo de província. A gaiola dos leões desconjuntou-se, o público saltou para fugir, e o meu patrício com as partes pudendas entaladas entre duas tábuas, sem se poder levantar, gritou: “Sentem-se, caralho, que os leanitos nã fazem mal”!  

 

publicado por VF às 10:06
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Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2013

Bloco-Notas

 

 

Ultimamente tenho abrandado o ritmo de posts, às vezes por falta de tempo para dedicar ao blog e outras vezes por falta de material e de inspiração. Gostaria de ter chegado aos 500 nestes cinco anos mas o meu espólio familiar tem naturalmente limites e, de momento, não tenho novas colecções em mãos. As minhas leituras também se têm prestado menos, nos últimos tempos, à composição de vinhetas politico-literarias.

 

Serendipity:

 

Estava eu nesta dificuldade quando José Cutileiro me telefona a propor — muito cerimoniosamente, o que ainda me faz sorrir — alojar a sua crónica “Bloco-Notas” no Retrovisor. Nesta blogosfera recheada de espaços tão apetecíveis, anuncia-me que, of all places, gostava de estrear-se neste cantinho. Terá sido o chamamento de gente como Cinatti, O’Neill, Nemésio ou Garrett?

 

Preciso de explicar que José Cutileiro é o meu Perfect Reader, o leitor ideal, o leitor a que aspira todo aquele que escreve, o leitor exigente que leu o que escrevemos de fio a pavio, percebeu tudo e gostou do que viu. Neste caso, não só gostou como se deu ao trabalho de redigir e publicar na revista do MNE uma resenha elogiosa de Retrovisor, um Álbum de Família, ultrapassando largamente tudo o que eu poderia esperar em termos de reconhecimento de um trabalho tão circunscrito. Nem sequer nos conhecíamos pessoalmente em 2009, foi o meu irmão que lhe deu o livro.

 

Desta feita, o meu leitor ideal dá-me a enorme alegria de vir arejar este "cabinet de curiosités", que andava muito precisado, e abrir-lhe as portas a novos leitores, a quem dou desde já as boas vindas. 

 

 

Stay tuned, o Bloco-Notas de José Cutileiro começa a 11 de Dezembro. Sai à quarta-feira.

 

publicado por VF às 07:41
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Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2013

Cabinet de curiosités (2)

 

 

 

Anonyme; Cabinet de curiosités; (fin XVIIe siècle)

Huile sur toile; Florence; Opificio delle Pietre Dure. aqui

 

 

Tenho celebrado um ou outro aniversário do blog com um breve balanço e queria tê-lo feito neste quinto aniversário, mas atrasei-me. Quero antes de mais agradecer os comentários deixados no post de 15 de Novembro. As palavras de incentivo de tão ilustres colegas da blogosfera animam-me particularmente. Assinalei a data com um cartoon que divide a blogosfera entre “histórias sobre ninharias que alguém cozinhou, tricotou ou coseu”, “auto-promoção” e “teorias da conspiração”. Está bem visto, em versão mais soft seria o facebook, os blogs pessoais e os blogs políticos.

 

Em poucas palavras, para quem me visita pela primeira vez, este blog divide-se entre histórias do meu álbum de família (fotos, recordações e curiosidades do espólio familiar), histórias dos álbuns dos outros (fotografias e curiosidades dos espólios de outras famílias) e, last but not least, textos bastante variados de Autores, sobretudo excertos de obras de história, jornalismo, ensaio e alguma literatura. 

 

Os textos que eu própria escrevo (em minoria) tratam normalmente de espólios familiares, álbuns e recordações, enquanto as citações de Autor e os textos doutras pessoas surgem geralmente a propósito da actualidade e/ou do calendário. Quanto às imagens tenho procurado apresentar um máximo de material inédito, inicialmente com base no meu arquivo familiar e, progressivamente, a partir de colecções particulares que parentes e amigos têm posto generosamente à minha disposição.

 

O blog recebe actualmente em média 50 visitas por dia e poucos comentários (cerca de 300 até hoje em 480 posts). O propósito continua a ser o mesmo: partilhar a minha exploração da fotografia vernacular e reflexões de Autores favoritos, além de contribuir, mesmo que modestamente, para o universo dos conteúdos em português, com imagens, perfis e textos algo esquecidos*.

 

Queridos Leitores e visitantes em geral, continuarei a esforçar-me por merecer a vossa visita. 

 

 

 

 

* Notas:

 

Cabinet de curiosités 1 in English 

 

Neste contexto veja o blog Restos de Colecção aqui e o projecto Conteúdos em Português aqui  

 

Neste blog, um texto sobre a Fotografia Vernacular aqui , um perfil  aqui e um texto de Autor ilustrado com uma foto aqui

 

publicado por VF às 07:55
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