O teor de terilene
Quando eu andava na escola, o 25 de Abril era a 28 de Maio. Na escola e por aí fora, quase até aos meus quarenta anos; depois mudou. Cada regime celebra o golpe militar que levaria à sua instalação: o Estado Novo festejava a revolta de Braga em 1926, chefiada pelo Marechal Gomes da Costa, que pouco tempo durou na chefia; a Democracia festeja a revolução dos cravos, com o General António de Spínola como figura de proa que também depressa se foi. Dos quatro regimes que tivemos no Século XX - dez anos de Monarquia, dezasseis de primeira República, quarenta e oito de Estado Novo e agora a Democracia, toda foleira pelo Século XXI a dentro, deverá vir a ser esta a mais duradoura, quiçá mesmo muito mais duradoura, se o país vier a juntar mais uns mil anos àqueles que já viveu, quase todos com Rei (ou Rainha) absoluto ou constitucional.
«Os portugueses hão-de ser sempre os mesmos porque não há outros» dizia o primeiro Duque de Palmela, segundo me contou há anos o Vasco Pulido Valente, e gosto de o lembrar aqui porque eu não sou historiador e, quanto ao passado, prefiro fiar-me no que eles me digam a pôr-me a armar em carapau de corrida ou a armar ao pingarelho (o sargento-criptógrafo Pina dizia que não era bem a mesma coisa, eu acho, pelo contrário, que é exactamente a mesma coisa e o meu chorado Vasco Graça Moura, Deus lhe tenha a alma em descanço, dava-me razão e considerava o sargento – que ainda por cima era a favor do novo acordo ortográfico – um imbecil: o Vasco não tinha papas na língua). Mas se somos os mesmos há-de ser por genética e imitação de que nem sequer nos demos conta, que geração após geração, repetem-se momentos – «A beber capilé, fica igual ao bisavô que eu ainda conheci» - e a propósito de capilé vem-me à ideia outro morto. Eduardo Calvet de Magalhães, que Deus tenha, irmão do pedagogo e do diplomata, tão esperto quanto os ilustres manos mas mais divertidos, inventou a publicidade moderna em Portugal e, numa altura em que Salazar não deixava entrar cá a Coca Cola, dizia ter inventado também o refrigerante português ideal – capilé gazeificado – tendo já slogan para ele:«A bebida que lhe corre nas veias».
Talvez haja em todos nós um ar de Sul da Europa, de Norte de África sem turbantes. Quando vivia em Princeton, vim a Coimbra, convidado ainda pelo Professor Ferrer Correia, a seminário sobre a Europa. Passava-se num antigo convento ao pé do rio; quando chegou a minha vez, passei para a mesa e me voltei para o público, poucos estudantes com capas, mas muita gente nova, e também velhas e velhos, achei-me de repente no Kosovo, onde eu ia muito nessa altura pelas Nações Unidas: as peles, os cabelos, as roupas, as expressões de espectativa resignada, os olhares. Senti-me quase em Pristina, sabendo que estava em Coimbra.
Contei isto dias depois a amigo da idade do meu filho, muito viajado e homem de bom conselho que me disse, meio espantado com o meu espanto:
«É o teor de terilene, Senhor Embaixador.»
Voltas do Mundo
Na segunda-feira de manhã, a telefonia do carro lembrou-me que fazia 50 anos desde a morte de Che Guevara. 50 anos, dantes, eram um ror de tempo, mais do que a vida de muita gente (o meu Pai, por exemplo, morreu com 44, tinha eu 21); hoje os números são outros: casa-se bem mais tarde, muitas mulheres dão à luz pela primeira, e geralmente última vez por volta dos 40. Foi a pílula – a pastilha, dizia amiga minha, também aí há 50 anos, mas nunca ouvi mais ninguém usar a palavra com esse significado, de maneira que não figurará em dicionários de sinónimos: a excentricidade morreu com quem a inventou.
No começo de Outubro de 1967 eu vivia em St. Antony’s College, Oxford, e dava-me com economista francês, Jean-Marc Fontaine, chegado há pouco de Sciences-Po. Carregado de todos os preconceitos anti-ingleses que qualquer francês que se prezasse, fosse ele sans-culotte, ci-devant ou mistura dos dois, trazia consigo desde as batalhas de Azincourt, de Waterloo, teve todavia de ir reconhecendo, com relutância, os grandes méritos do que lhe davam agora a ler na pérfida Albion (embora a maneira de pensar fosse tão diferente da sua que lhe acontecia chegar ao fim do primeiro capítulo de um livro com a sensação de ter chegado ao fim do livro). Só na Páscoa seguinte, depois de discussão épica no correio de North Parade, ao virar da nossa rua, julgou entender. “Pourquoi ces types sont, d’une façon générale, si stupides mais leurs intellectuels sont, quand-même, assez astucieux? C’est que, pour eux, penser ce n’est pas naturel. It’s a job. You either do it well or you don’t do it at all”.
Jean-Marc era um romântico e quando a notícia chegou pela televisão, e a seguir nas capas de jornais, a preto e branco, com o Che deitado de costas morto, nu da cintura para cima, lembrando Cristo famoso pintado por Mantegna na Renascença, e soldados bolivianos armados em pano de fundo, que geralmente as redacções tiravam da fotografia, achou que era preciso mandar pêsames à embaixada de Cuba em Londres. Ele ia mandá-los, não era comunista mas o Che era figura impar que merecia homenagem e eu deveria mandá-los também. Eu tampouco era comunista; nem sequer tinha a simpatia por Cuba revolucionária que muitos lhe estendiam só por serem anti-americanos – eu não o era – mas também não chegava aos rigores dos que falam dos comunistas como de peste bubónica. O comunismo não foi uma doença; foi um remédio que falhou; o manifesto dos dois alemães (como o Sermão da Montanha do nazareno) não queria dar cabo do mundo, queria endireitá-lo. Deu para o torto; a emenda foi pior do que o soneto - mas o Che morreu convencido do contrário. Mandei os pêsames – e não parei de me arrepender. Passei a receber em quantidade e com regularidade exasperantes toda a espécie de propaganda impressa daquela ditadura de ilhéus, crassa e mentirosa, enquanto estive em Oxford. Três anos depois, quando mudei para Londres, o Colégio passou a devolver tudo e perderam-me o rasto.
traje masculino - século XIX
Para em tudo ser grande, este homem singular a quem os seus contemporâneos chamaram «o divino», como a Platão, foi um dos maiores, senão o maior elegante do seu tempo. Poeta do amor, tão belo, que se um dia os Amores descessem à terra fariam o ninho num verso seu; orador tão eloquente, que o seu verbo evocava o daqueles atenienses maravilhosos que, envoltos no seu pálio branco, arrastando as suas sandálias doiradas, discutiam sob os loureiros roxos dos jardins de Academo: diplomata, homem do mundo, grande do ir mo, ministro de Estado — Garrett levou trinta anos de vida a espalhar em volta de si, como braçados de rosas, a elegância, a harmonia, a beleza e a graça. Por onde quer que passasse, a Moda curvava-se diante dele. Ministro na Bélgica, foi tão grande o sucesso pessoal da sua elegância que por toda a parte, nas montras, nos cartazes, nos jornais de Bruxelas aparecem as «capas à Garrett», os «chapéus à Garrett», as «jóias à Garrett». Regressando a Lisboa em 1846, de tal forma o seu tipo inconfundível se impôs, tanto o imitaram e o copiaram, que todos os retratos em miniatura pintados por Guglielmi parecem, pelo talhe das barbas, pelo jeito das cabeleiras, peias pequenas moscas, pelos próprios folhos das camisas, o retrato de Garrett. Como Brummell, tudo na sua elegância era simples, mas tudo era perfeito e minucioso. Vestia-se em Inglaterra. Mandava vir de Londres as casacas, as meias, os sapatos de baile, as luvas de Jouvin, a libré verde do groom, a suit of clothes com que passeava em Sintra, até os seus assombrosos pijamas matinais de xadrez branco e vermelho, cuja pantalona afunilava em meia como a dos arlequins. Bulhão Pato descreve o trajo com que ele se apresentava nas Câmaras, o mesmo que usava nas lutas da eloquência e nas entrevistas de amor: «Casaca verde-bronze com botões de metal amarelo recortado sobre veludo verde; colete branco, deslumbrante, grandes bandas; calça de flor de alecrim; camisa finíssima, encanudada; luvas amarelas.» Quando tinha de pronunciar algum dos seus monumentais discursos, não esquecia nenhum pequeno pormenor de elegância: ele, que não usava rapé, levava sempre consigo uma pequena tabaqueira de ouro para o ajudar nos gestos; e nunca, antes de começar a falar, deixava de esfregar as mãos para as fazer mais pálidas. Como a sua nobre figura dominava então a assembleia! Que harmonia de atitudes! Que elegância majestosa, só comparável à de Lamartine! Iluminava-se, crescia, arrebatava. E, entretanto, Garrett não era belo. Garrett lutava com a falta de dotes naturais. O milagre da sua elegância foi, sobretudo, uma obra de arte, de paciência e de génio. Tudo nele era postiço, desde o espartilho até ao chinó, desde os dentes até às ancas, desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas. Quando à noite recolhia a casa, depois de um baile ou de uma recepção, desmanchava-se como um puzzle. E o que tem graça, é que era ele o primeiro a rir-se dos ridículos a que o obrigavam, não só os seus defeitos físicos, mas as própria exigências da moda de 1840. Uma noite, o criado de quarto de Garrett adoeceu e teve de ser substituído por outro — um pobre rapaz boçal chegado da província. Quando o «divino», quase de madrugada, de calção e meia, regressava de um baile dos marqueses de Viana — o primeiro baile de Lisboa em que apareceram camélias do Japão — foi já o criado novo que, pela primeira vez, se apresentou para o despir. — «Começamos pelo chino, percebe?» — disse-lhe Garrett, tirando a cabeleira postiça e enfiando-a na boneca. O pobre rapaz, que nunca tinha visto arrancar os cabelos da cabeça com tanta facilidade, ficou varado de espanto. Depois, o poeta tomou um pequeno espelho, abriu a boca, fez saltar a dentadura e deu-a ao criado: — «Tome lá os dentes. Meta-os num copo de água.» O assombro do pobre homem subiu de ponto. Imperturbável, Garrett despiu a casaca em «busto de abelha», o colete de reflexos de prata, o espartilho, e apontou os chumaços das espáduas: — «Tire-me os ombros.» Em seguida, puxou uma cadeira, assentou-se: — «Agora, tire-me as barrigas das pernas.» O criado, muito pálido, coberto de suores frios, teve naquele instante a impressão de que o amo ia desfazer-se todo. (Garrett percebeu, levantou-se, avançou para ele e disse-lhe, olhando-o fixamente: — «Agora, desatarrache-me a cabeça devagarinho.» O pavor do ingénuo provinciano foi tal que abalou pela porta fora e nunca mais ninguém o viu. Este epislódio pinta a figura do poeta muito melhor do que todos os retratos e todas as caricaturas. No fim da vida, no período agudo da paixão pela Ignota Dea das Folhas Caídas, Garrett esqueceu-se por vezes de que já tinha mais de cinquenta anos e de que nem todas as idades suportam as modas excessivamente audaciosas. Quando sobraçava a pasta dos Negócios Estrangeiros, apareceu um dia em conselho de ministros com umas extravagantes calças de quadradinhos brancos e roxos, que fizeram sensação em Lisboa e que chegaram a despertar receios de natureza política. — «Então, como vão esses negócios da Fazenda?» — perguntou o poeta ao seu colega Rodrigo da Fonseca, estendendo-lhe afectuosamente a mão. — «Mal, muito mal — respondeu o espirituoso Rodrigo. — Sobretudo, os negócios da fazenda das tuas calças. Se tu apareces assim no Parlamento, deitas o governo a terra!» A sua última preocupação foi a de mandar gravar por toda a parte, na baixela de prata, nos sinetes de uso, nas pedras dos anéis, o seu escudo de armas rodeado das insígnias da grã-cruz e bailiado de Malta. A morte, porém, que tantas vezes tem piedade do génio, não o deixou ser ridículo por muito tempo. Dois anos depois, o divino Garrett, príncipe dos príncipes da elegância portuguesa, rodeado de flores, compondo ainda ao espelho a sua última toilette, morria vítima das duas mais terríveis doenças que se conhecem no mundo: a política e o amor. Sem dúvida, foram estes os corifeus da elegância romântica em Portugal — os «internacionais», aqueles cujas jóias e cujas casacas nos fizeram, por um momento, quase tão admirados na Europa do século XIX, como os coches de D. João V nos tinham feito célebres na Europa do século XVIII. Mas, ao lado destes, quantos outros! Quanto janota ilustre fascinou Lisboa, nessa longa parada de elegâncias que ia da plateia de S. Carlos até aos salões da Regaleira, do Marrare de Polimento até às alamedas doiradas do Passeio Público! De quantos está ainda fresca a memória, elegantes pragmáticos, devotos fiéis do ritual da Moda, capazes de se deixar insultar para não desfazer um só caracol da cabeleira, de se deixar matar para não desmanchar uma só prega das calças! Alguns passam, flagrantes e vivos, diante dos meus olhos.
Júlio Dantas in O heroísmo, a elegância, o amor*
Edições Roger Delraux
© Maria Isabel Dantas, 1980
* Conferências proferidas no Brasil em 1923 pelo autor, a convite da Academia Brasileira de Letras, por proposta do romancista Coelho Netto:
O Heroísmo: O Mosteiro da Batalha
A Elegância: Os Elegantes do Romantismo
O Amor: Mulheres que Camões amou
Nota:
O meu agradecimento a Manuel Sant'Iago Ribeiro, que me deu a conhecer estas conferências.
A imagem é do blog Des bobines et des songes
Cem anos depois
Ernst Jünger, autor de diários de guerra célebres na Alemanha e também em França – traduzidos na Bibliothèque de La Pléiade (Tomo I: 1914-1918; Tomo II: 1939-1945), sendo o primeiro considerado por muitos o mais belo livro de guerra e o segundo, onde o autor, já homem feito, hostil aos nazis, deixou para trás a excitação do combate e o horror das trincheiras para ser oficial durante a ocupação alemã de Paris, relata com a mesma franqueza a extrema dificuldade de conservar “a sua integridade num mundo onde verdade e moralidade já não têm qualquer expressão visível” – quando lhe haviam perguntado, nos anos de l’entre deux guerres, qual a impressão mais forte que lhe ficara da Grande Guerra, respondera “A pena de a termos perdido”.
Lembrei-me dessa resposta com as comemorações do centenário da batalha de Verdun que durou onze meses, matou oitocentos mil soldados sob as bandeiras alemã e francesa vindos de muitas pátrias - no caso da França bem para lá da Europa e da cristandade – e foi ganha sob a égide do Marechal Pétain que ficou herói nacional – quase à altura de Joana d’Arc no altar patriótico que cada francesa ou francês traz dentro da cabeça – até a Alemanha atacar de novo, 20 anos depois de humilhada pela paz de Versailles, tendo Pétain, guindado a Presidente da República, negociado rendição que deixou a Alemanha a ocupar o país e o governo francês, subalterno, sediado em Vichy. De Gaulle, de cujo filho mais velho Pétain fora padrinho, fugiu para Londres, de lá exortou à rebelião pela BBC, organizou a Resistência e foi condenado à morte à revelia. (Os comunistas só passaram a resistir aos nazis depois de Hitler invadir a Rússia em 1941). Com a vitória Aliada em 1945, De Gaulle, entretanto Presidente, amnistiou Pétain que de Leão de Verdun passara a traidor condenado à morte e acabou a vida preso da Ilha de Yeu. François Mitterand, Presidente socialista eleito em 1981, mandava pôr-lhe flores na campa nos aniversários da sua morte.
No Domingo, diante do ossuário monumental que guarda milhares de ossadas desconhecidas franco-alemãs, inaugurado em1932 (condenar o horror da Grande Guerra não impediu os chefes de se meterem noutra), François Hollande e Angela Merkel lembraram erros e crimes passados e avisaram de nuvens negras no futuro. De facto, novos fascismos e racismos de sempre atraem muita gente. Na Europa, fronteiras voltam: só a que separa Chéquia e Eslováquia não foi traçada a sangue. A guerra é tao antiga quanto o homem; a paz é uma invenção recente, disse jurista inglês a meio do século XIX.
Felizmente há a Bomba (nuclear) para moderar ímpetos mas quanto mais amigos animarem à toa redes sociais e mais jornais com pés e cabeça forem desaparecendo de bancas e écrans, maiores serão as probabilidades de gente que não sabe nada e julga saber tudo ser posta no poder em eleições livres e limpas e o usar muito mal. O puto coreano já é grande susto; meia dúzia de graúdos democráticos serão o fim da picada.
Chocalhos
A UNESCO, organização educacional, científica e cultural das Nações Unidas, a que muitos países pertencem, alguns, como nós, por inércia, outros devido a diligência burocrática própria de regimes que sistematicamente violam direitos humanos e julgam que a organização lhes confere respeitabilidade (falta-lhes a lucidez de Groucho Marx: “Eu teria vergonha de pertencer a um clube que me aceitasse como membro”) vai distinguir Portugal no universo do Património Cultural Imaterial da Humanidade - mais uma vez, pois já o tinha feito quanto ao Fado, ao Cante Alentejano e à Dieta Mediterrânica, neste caso sendo a distinção partilhada com Espanha, Marrocos, França, Itália, Grécia e, salvo erro, Tunísia.
Agora são os Chocalhos de Alcáçovas, concelho de Viana do Alentejo, distrito de Évora, a subir ao pódio (dizem-me que também ainda há artesãos vivendo de fazer chocalhos na Ilha Terceira dos Açores e em Trás-os-Montes mas foi a ‘comunidade representativa’ das Alcáçovas que meteram à liça e Alcáçovas será o nome que a distinção contemplará). À minha pergunta “Porquê Imaterial?” a resposta veio em duas partes. Primeira, que a UNESCO estabelece a terminologia para os seus programas, prémios e distinções e, a pedido, esclarece termos menos claros a quem, prima facie, não os entenda. Segunda, que é o som dos chocalhos que passa a Património Imaterial por pertencer ao que os antropólogos chamam “paisagens sonoras”, as quais vão mudando, esperando a UNESCO, presumo eu, que a entrada no Património da Humanidade ajude a suspender o desaparecimento progressivo do rumor chocalhal das calçadas da província portuguesa. Palpita-me que seja esforço vão – assim como os que são feitos quando o Estado decide usar dinheiro do contribuinte para salvar empresas cuja vocação é a falência. As Alcáçovas trazem-me outra memória: a mulher de Évora mais bonita do seu tempo (e de todos os tempos entre o seu tempo e o nosso de hoje) que lá viveu pequena, tão inteligente e tão direita que por esse dom e essa virtude mais vezes é lembrada do que pela beleza ímpar. Ainda hoje faz falta.
Na UNESCO confirmei uma certeza política e ganhei outra. No Verão de 1974 fiz parte da delegação portuguesa no nosso regresso à organização depois do 25 de Abril em reunião geral que durou várias semanas. Coube-me cobrir sessão noturna em que discursaram representante da Albânia e chefe estudantil do Chile, fugido dos algozes de Pinochet. O albanês demoliu primeiro o Capitalismo, depois o Comunismo Soviético e, quando estava quase a convencer-nos, rendeu elogio abjeto ao camarada Enver Hoxha. Entusiasta, o estudante gabou o paraíso que o país perdera com o fim brutal de Allende e do seu governo.
Saí para a noite de Paris confirmado no que pensava dos horrores da Albânia mas convicto de que, se o regime de Allende houvesse durado, o Chile teria passado por muitas e penosas baralhadas.
Vem a propósito lembrar isso quando cá se celebra – ou devia celebrar-se – o 25 de Novembro.
A primeira série dos “Cadernos” (1940-42) foi organizada pelos três poetas referidos e engloba cinco números antológicos; a segunda (1951) foi concretizada por Jorge de Sena, Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal e José-Augusto França com sete fascículos. A terceira teve três números (1952-53).
Cristina de Carvalho Futscher Pereira
17 de Abril 1948 - 27 de Setembro 2005
O Ramo de Oiro
Estando eu à minha porta
Com três horas de serão
Vi passar Nossa Senhora
Com um ramo de oiro na mão.
Eu pedi-lhe uma folhinha
Ela disse-me que não;
Pedi, tornei-lhe a pedir,
Ela deu-me o seu cordão,
Que me dava sete voltas
À roda do coração.
Sete voltas não são nada
Ó Virgem da Conceição
Prendei vós esta alma toda
Prendei-ma com vossa mão
Que a metade inda é do mundo
Metade, que a outra não.
Plantai-me esse ramo de oiro
No meio do coração
Ficarei no vosso altar
Como vaso de eleição.
Romance popular incluído nos manuscritos garrettianos descobertos pela Cristina em 2004. O poema foi lido no seu funeral e editado numa pagela oferecida aos amigos.
*
Veja também os posts:
Tomaz Kim / Joaquim Monteiro-Grillo
Nascido há cem anos, em 1915, e desaparecido em 1967, foi poeta*, professor da Faculdade de Letras de Lisboa, ensaísta, tradutor. Deu a conhecer ao público português muitos escritores da literatura inglesa e americana.
É justamente recordado este mês no Jornal de Letras num extenso artigo ilustrado com uma fotografia que aqui publiquei em 2009. Foi aliás a fotografia que me conduziu à descoberta do excelente texto de Fernando J. B. Martinho, de que reproduzo este pequeno excerto, a acompanhar uma tradução de Tomaz Kim que encontrei junto de recordações dele que os meus pais guardaram, neste caso uma simples folha de bom papel, bem impressa em frente e verso.
*
Os dois volumes do que consideramos ser a segunda fase da sua obra situam-se num período em que a carreira académica do poeta iniciada em 1947 alcança justíssimo reconhecimento institucional, que a morte precoce, em 24 de Janeiro de 1967, pouco antes de atingir os 52 anos, veio, lamentavelmente, interromper. É este um período em que o poeta, fiel continuador do que há já de uma sólida tradição modernista em termos nacionais e internacionais, faz acompanhar a sua prática poética da tradução de poetas ingleses e americanos (com maior incidência na 2ª metade dos anos 40, no Diário Popular), e de textos de doutrina crítica, de Shelley e T.S. Eliot, e de ampla produção crítica e ensaística própria, que assina com o seu nome civil, Joaquim Monteiro-Grillo ou J. Monteiro-Grillo.
[Fernando J. B. Martinho in "Tomaz Kim Um poeta de tempos dramáticos" - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Número 1172 – 2-15 Setembro de 2015]
*
Minster Lovell, de David Wright, tradução de Tomaz Kim
MINSTER LOVELL
Now I a ghost ascend a broken stair
where no more the cold fingers of the rain
comb, or the winds caress my long brown hair;
I move among the populous passages
peopled with brown leaves and the sluggish weed,
and the wind's mutterings and memories
of sere wolds and the dark Atlantic seas.
Remembering now the dancing. O my lover
break down the cold embraces of the grave:
murder the time, recover
the lost words, the lost glances.
Remembering now the dancing. I remember
voice of the harp, the tender
not of the flute, the tremble
of the low-toned clavichord;
the whisper of the dresses
as the dancers turned and parted
as the music paused and started.
The dancers are departed.
Now I a virgin ghost, under the cold
and lunatic moon, forsaken. Whom these walls
already have forgotten. Whom they hold
in the dark rain of spring, in the cascade
of the clear pool that will not wet my feet.
O find me whom I fled
before the leaden pressure of the lid
weighs down the thin white arms and bended head.
Who only hears the voices on the stair
who cannot hear the dry grate of the lock.
I am bound in with darkness. In the iron
strong womb of time. The lover
clasped by a stronger, more enduring arm;
in a more proud embrace.
O find me. Find, recover.
Break down the cold embraces of the grave:
shatter these hasps, and scatter
eternal walls, and batter
with a white leap of light the night. Discover
the bright horizons.
I heard a footstep on an outer stair:
I heard a voice call once, and call my name.
I blinded in the tangle of my hair,
pressed in with darkness. Who will not recapture
the sunlight or the crocus, who will wander
in the moon's error and the winds, forgotten.
Virgin of the spring rains, among these walls.
Now I the ghost of a delighted bride
brought to a dark unrobing, and a bed
celibate, to surrender
a living virginity for a dead;
O this my pride to tender
to the malicious worm my slender head.
Brown hair and white limbs, who will not remember?
I not await him. I await no lover;
who overtakes the still feet of the years?
And I have mouldered in the dust too long,
too long my being in the. darkness fed.
Under the sallow moon I must await,
tenant of hollow winds and bitter rain,
the new birth of the crocus. Non deliver.
And none return. The constellations wheel
westward; and westward the reluctant moon.
None shall burst down the indurate barriers;
none open wide the doors: and none return.
Westward the moon. Inhabitant of the springs,
the short grass and the broken palaces,
I meditate the winds and the cold rain.
DAVID WRIGHT *
MINSTER LOVELL (tradução de TOMAZ KIM)
Ora, eu, um espírito, ascendo a escada carcomida
Onde não mais os álgidos dedos da chuva penteiam,
Ou o vento acaricia, a minha longa cabeleira fulva.
Caminho por entre populosas veredas
Povoadas de folhas secas e erva daninha inerme
E murmúrios do vento
E lembrança
De tantos plainos e sombrios mares atlânticos.
Lembro, agora, a dança... Ó, meu amado!
Desenlaça o gélido abraço da tumba:
Assassina o tempo,
Retoma as palavras perdidas, o perdido olhar...
Lembro, agora, a dança.,.
Lembro a voz da harpa,
O terno trinar da flauta,
O trémulo grave do clavicórdio,
O sussurro das vestes,
enquanto os bailarinos rodopiam e se separam,
Quando a música se detém e recomeça.
Foram-se os bailarinos.
Ora, eu , espírito de uma virgem,
Abandonada sob a lua fria e tonta,
A quem estes muros já esqueceram,
A quem eles retêm na chuva escura da Primavera,
Na cascata da límpida lagoa que não molhará meus pés...
Oh, encontra-me, a mim, de quem eu fugi,
Antes que o plúmbeo peso da tampa
Comprima os alvos braços esguios e a cabeça tombada,
Aquela que ouve apenas as vozes na escada
Aquela que não pode ouvir do ferrolho o áspero arranhar.
Envolta estou em treva
No fero útero férreo do tempo.
O amado,
Enlaçado por um braço mais firme e duradouro
Num mais soberbo abraço.
Oh, encontra-me,a mim. Busca, retoma.
Desenlaça o gélido abraço da tumba,
Despedaça estas ferragens
E dispersa os muros eternos
E desfaz a noite com um alvo arranco de luz.
Descobre os rútilos horizontes ...
Ouvi passos numa escada, lá fora,
Ouvi uma voz a chamar uma vez, a chamar pelo meu nome.
Eu fiquei cega no emaranhado do meu cabelo,
Confundida com a escuridão,
Eu, aquela
Que não virá acolher a luz do sol ou a flor do açafrão,
Aquela que vagueará, esquecida,
Nos enganos da lua e do vento,
Virgem das chuvas da primavera,
Entre estes muros...
Ora, eu, espírito de uma noiva deslumbrada,
Levada a um tenebroso desvelar
E a um leito solitário
Para render
Uma virgindade viva a uma virgindade morta...
Oh, este, o meu orgulho:
Ofertar ao verme malévolo a minha cabeça donairosa!
Cabeleira fulva e alvos membros, Quem os não lembrará?
Não espero por ele. Não espero nenhum amante;
Quem ultrapassará as quietas passadas dos anos?
E eu me desfiz em pó, no pó, há muito, já...
Há muito, já, meu ser das trevas se alimentou.
Hóspede do vento cavo e amarga chuva,
Sob a lívida lua, eu tenho de aguardar
O novo natal da flor de açafrão.
Ninguém o fará.
E ninguém regressará.
As constelações rodam para ocidente
E para ocidente, a lua relutante.
Ninguém derrubará as barreiras firmes,
Ninguém escancarará as portas
E ninguém regressará.
Para ocidente, a lua.
Habitante das fontes,
Da erva núbil e dos palácios em ruínas,
Eu pondero os ventos e a chuva fria!
*
Notas:
Obra Poética de Tomaz Kim aqui
Cadernos de Poesia aqui
Fundada por Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti, a revista “Cadernos de Poesia” teve publicação intermitente, em três séries e quinze números, nos anos 1940-42, 1951 e 1952-53, revelando alguns dos poetas portugueses mais marcantes da segunda metade do século XX: além dos fundadores, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade.
David Wright aqui
Veja também neste blog os posts:
Álbum de fotografias de João D' Korth (1893-1974)
páginas 28 a 31
© Henrique D'Korth Brandão
Agradecimentos:
Restos de Colecção, Coisas de outros tempos, Aterrem em Portugal , Alexandre Pomar , Largo dos Correios , Padrão dos Descobrimentos , Hemeroteca Digital , Instituto Camões , O Leme , Candelabro
Álbum de fotografias de João D' Korth
Exposição do Mundo Português [no Flickr]
Álbum de fotografias de João D' Korth (1893-1974)
páginas 25 a 27
© Henrique D'Korth Brandão
continua...
Apresentamos as fotografias do álbum pela ordem em que o autor as paginou.
1. páginas 1 a 3 aqui
Álbum Exposição do Mundo Português no Flickr