Quarta-feira, 24 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

LumumbaPatrice Lumumba e o Rei Balduíno, Congo 1961

 

José Cutileiro

 

Calor

 

Num país como a Bélgica, dividido entre duas nações que se detestam, Bruxelas é uma ilha de tranquilidade, variedade e decência – uma espécie de Nova Iorque dos pobres, se a leitora entende o que eu quero dizer. Talvez por haver aqui muitos estrangeiros, o ódio recíproco de valões e flamengos esbate-se num universo muito mais vasto. (Não estou a exagerar quanto a esse ódio. Muitos anos antes de eu pôr os pés na Bélgica, tive colega belga, embaixador como eu no Conselho da Europa em Estrasburgo, quase na idade da reforma, jovial e rubicundo, que um dia, a propósito de coisa nenhuma me perguntou: Tu sais ce que c’est que la pollution? E respondeu ele próprio: Un Wallon dans la Meuse ! Et tu sais ce que c’est que la solution? Tornou a responder: Tout les Wallons dans la Meuse!! O homem não era só belga: era embaixador da Bélgica, e deveria ter por obrigação defender os interesses de todos os belgas, mas tal não lhe passava pela cabeça.

 

Em tempo de paz, o ódio esbate-se melhor. Nas grandes guerras dos europeus do século XX,  essa sanha recíproca, pelo contrário, arranjou pano para mais mangas ainda. Embora, em 1914, um dos primeiros actos de guerra alemães tivesse sido a queima brutal e viciosa da biblioteca da Universidade de Louvain, barbaridade equânime pois aquela estava cheia de livros preciosos franceses e   holandeses, durante a  guerra os flamengos colaboraram muito com os alemães, enquanto os valões penderam para os franceses e os ingleses e os ajudaram. Na segunda guerra, tudo isso se repetiu, mas com mais violência e crueldade, porque, bem vistas as coisas, ser pro-nazi era feito muito diferente do que ser pro-alemão. Neste país, algumas das cicatrizes de 39-45 estão mal fechadas e deixam ainda sair pus e sangue.

 

Neste mês de Julho em Bruxelas, porém, não se dá por isso. Perfilou-se mal maior: o calor, para o qual Bruxelas está ainda mais mal apetrechada do que Lisboa está para o frio. (As duas cidades onde vivi mais convencidas de terem um bom clima, foram Lisboa e a Cidade do Cabo, tão convencidas, a despropósito, que se rapava nelas no inverno frio de rachar. Quando eu era novo, em Lisboa, não percebia porque é que os vestiários para sobretudos estavam dentro de casa. Deviam estar fora, porque era dentro de casa que se tinha mais frio.)

 

«Pior que Kinshasa» ouvi em francês belga, de mesa ao lado da minha numa esplanada. Cada um tem as suas referências africanas e as belgas são diferentes das nossas  e menos frequentes. Não houve colonialismo mais bruto e desumano e a juventude belga de hoje condena-o muitas vezes. Mas a grande maldade dos dias que vivemos é o calor: 44 graus Celsius previstos para quinta-feira. Talvez desde as matanças mandadas fazer pelo Duque d’Alba não tenha havido tanto incómodo.

 

Mas nisto de calor, a palma d’ouro vai para Federico Garcia Lorca. Em Granada, dizia ele, no verão o calor é tanto que não se passa nada. «Dos y dos nunca llegan a ser quatro. Quedan siempre y solamente dos y dos».

 

 

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Quarta-feira, 26 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

míssil hipersónico USAmíssil hipersónico norte-americano

 

José Cutileiro

Guerras

 

Leio no jornal que americanos, russos e chineses trabalham em mísseis hipersónicos capazes de viajar a mais de 15 vezes a velocidade do som, de atingir num quarto de hora alvos russos ou chineses se forem americanos (ou americanos se forem russos ou chineses), levando cargas explosivas e podendo perfurar as paredes mais resistentes de abrigos atómicos subterrâneos ou as couraças de porta-aviões americanos. Leio também que, ao contrário do que acontecera a partir de certa altura durante a guerra fria, não há conversas entre os protagonistas para criar regras de protecção mútua que ajudassem a lidar com acidentes ou mal-entendidos. Nesse como em qualquer género de  armamento, os americanos de Trump não estão interessados em nada que cheire a prevenção e os outros tampouco insistem.

 

«Messieurs les anglais tirez les premiers» disse o tenente Conde de Auteroche na manhã de 11 de Maio de 1745, durante a guerra da sucessão da Áustria quando franceses e ingleses, com aliados vários, (ao todo 47.000 homens de um lado e 51.000 do outro) apoiavam pretendentes diferentes, assim dando começo à batalha de Fontenoy, no que eram então os Países Baixos austríacos e é hoje a Valónia, na Bélgica.  Nessa altura e até à Revolução Francesa (e, a seguir, à explosão dos nacionalismos) as guerras eram o grande desporto da fidalguia. Auteroche convidou os ingleses a atirarem primeiro como quem, num jogo de ténis entre amadores, convide a bolar primeiro quem o defronte do outro lado da rede. Escrevendo poucas décadas depois, o Príncipe de Ligne diz que o seu maior desgosto fora a morte do filho, decapitado por tiro de canhão do exército revolucionário francês. Conta da relação estreitada por terem combatido juntos, de como chegara a pensar que seria bom serem feridos ao mesmo tempo. Já no começo do fim desse mundo, Napoleão Bonaparte lembrou que a coragem (física) é a única virtude que não se pode imitar. As ruas das cidades europeias estão cheias de nomes de batalhas ganhas - e de quem as ganhou – para não as deixar sair da memória colectiva.

 

A guerra é tão antiga quanto a humanidade (recente, e não sei se duradoura, é a paz); houve, na Europa e alhures, além da fidalga e da nuclear, outras maneiras de a fazer, e haverá mais no futuro sob formas que talvez nem imaginemos. Vivemos, seja como for, em tempo muito especial: toda a gente fala da brecha aberta entre as elites e o resto. Salvo em páginas de Madame de Staël que deu por divórcio assim em Paris, no começo da Revolução Francesa, não há memória de coisa parecida na história que conhecemos. Talvez a razão seja a mesma: explosões gigantescas de liberdade, a exigirem outros costumes. (Em 1917 na Rússia não chegou a haver liberdade: Os lagartos mudam de pele/Para salvar o coração./Nós mudamos de coração/Para salvar a pele escreveu poeta local coevo, prontamente executado).

 

Dito isto: 1 Não há nada mais parecido com a França de Versailles do que a França do Eliseu. 2 E os mísseis hipersónicos?

 

 

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Quarta-feira, 28 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

pain_au_chocolat

pain au chocolat

 

José Cutileiro

 

 

Nova Iorque dos Pobres e Espírito de Contradição

 

 

 I

Há muitos anos chamei a Bruxelas a Nova Iorque dos pobres e dá sempre gosto ao inventor verificar que a coisa inventada existe. (Tem riscos, como tudo quanto seja levado ao excesso; Camões lembrou-o cruelmente: Torna-se o amador na coisa amada/Por virtude de muito imaginar).

 

Hoje, em minúscula clínica dessas que há agora onde a gente se sente muito melhor do que num hospital, de tal maneira que os anestesistas para nos porem a dormir precisam só da quarta parte do líquido que nos injectam nos ditos hospitais, fizeram-me pequena intervenção. O cirurgião era grego, a anestesista polaca, a enfermeira uruguaia, eu português (a minha mulher, cujo telefone lhes dei, é francesa). Belga, só talvez a recepcionista que, nos cinco minutos que passei na sala espera, desembaraçava-se em francês e no holandês que se fala aqui – 60% no país,12% em Bruxelas. Na meia hora de chá preto e pain au chocolat que passei entre acordar e ir-me embora, a conversa terá sido mais variada e divertida do que teria sido na Mãe Pátria sobre mexeriquices de colegas, amigos, parentes e os altos e baixos do Desporto Rei. À uruguaia lembrei embaixador reformado inglês encontrado em Londres na casa de amigos ingleses, há mais de meio século, que em Montevideo fora raptado pelos «Tupamaros», terroristas urbanos, todos de boas famílias e educadíssimos que o trataram sempres bem e foi libertado incólume, aprendendo, todavia uma lição: nunca acreditar em quem prometa paraíso futuro onde só se possa chegar através de inferno intermédio (foi a enfermeira que me lembrou o nome dos guerrilheiros). A anestesista, que tem vergonha do actual governo polaco, fez-me pensar em Geremek, o grande medievalista e ministro dos negócios estrangeiros polaco da Solidarnosc, a contar-me, em Varsóvia, cena entre Walesa e Ieltsin,os dois bêbados, com o russo a garantir ao polaco que deixava a Polónia juntar-se à OTAN enquanto os seus colaboradores lhe repetiam que não podia ser, e o electricista de Gdansk perguntava, do outro lado: «Quem é que manda na Rússia ? És tu ou são eles ?». E ao cirurgião, que trouxera ele mesmo o pain au chocolat e me explicara não haver razões para preocupação, disse que ele conseguira criar, no coração de Bruxelas, uma espécie de Atenas sem corrupção. (Grego nosso conhecido impressionara-nos há dias com a aventura de conseguir internar e tratar bem a sua velha e lúcida mãe num hospital privado de Antenas: só mediante gorjetas e subornos tais que me indignaram, e eu sou d’Évora, não de Oslo nem de Helsinquia. No Peloponeso, assim se vive e se acha natural viver. Viva a Nova Iorque dos pobres!

 

II

John Bolton, como Conselheiro Nacional de Segurança de Trump, poderá ser benéfico. Um defeito de Trump é o espírito de contradição e desconfia tanto dos conselheiros que talvez agora, para mostrar que não depende de Bolton, passe a usar de bom senso. (Estariam ambos melhor em Rilhafolhes mas não se pode ter tudo…)

 

 

 

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Quarta-feira, 9 de Agosto de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Operator

 

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Gemeinschaft e Globalização

 

 

 

O sabonete fugira-me das mãos (os portugueses nunca deixam cair coisas – estas “fogem-lhes das mãos”, dizia o Alexandre O’Neill), baixei-me para o apanhar e dei comigo estatelado de costas no duche do hotel (com a água fechada). Chamei em vão pela Myriam; a construção de hotéis leva a peito o isolamento acústico. Quando, hora e meia depois, ela acordou e telefonou a pedir ajuda, mulher nova comandando homem também novo, empregados do hotel simpáticos e sorridentes, puseram-me de pé num instante com eficácia profissional.

 

Uma hora depois, telefonei a pedir informação sobre o horário do pequeno almoço. A recepcionista deu-ma e perguntou-me a seguir se o Senhor Embaixador estava melhor. Numa lufada de amor da Pátria chegou-me cena passada há quase 83 anos em Évora. Na noite em que eu nasci, em casa dos meus avós maternos, o Pai fez chamada para amigo em Lisboa a dar a notícia. Os telefonemas interurbanos nessa altura pediam-se a uma central (a que chamavam Troncas). Pouco depois de acabada a conversa o telefone tocou; era a menina de Troncas que fizera a chamada, para dar os parabéns ao Senhor Doutor.

 

Aconchegos difíceis de imaginar em lugares protestantes e puritanos, onde pecariam por inconfidências inadmissíveis. Presumo que seja a regularidades assim que alguns antropólogos chamam “vigências”, certezas que não mudam através do tempo apesar do resto mudar tanto à nossa volta.

 

Mas antes, de papo para o ar no chão entre as 6 e as 7 e meia da manhã, tinha-me lembrado de outra coisa. Há poucos anos, prémio Nobel (1974) da medicina belga com 95 anos, viúvo, que fazia ainda 40 piscinas de 20 metros por dia, sentiu-se mal em casa, caiu e, até a mulher-a-dias chegar 14 horas depois, não foi capaz de se levantar. Ficou furioso, indignou-se com limitações postas na Bélgica à eutanásia que lá é legal mas tem de ser autorizada e tanto barafustou (e tão grande era o seu prestígio) que depressa lhe deram licença e pôde ir-se embora em paz, cercado por família que muito lhe queria. Acreditava – como eu acredito – que, depois de morto, nada dele sobreviveria.

 

Entretanto vou tendo notícia de outras coisas: numa aldeia do Paquistão, conselho dos anciãos decidiu que menina de 17 anos, cujo irmão tinha violado outra menina de 17 anos, fosse ela própria violada, não dizendo a notícia por quem. Em Canton, Mississippi, numa fábrica da Nissan, 3.500 operários, homens e mulheres, quase todos negros, votaram quinta e sexta-feira passada e rejeitaram, por maioria de 60%, a sindicalização. O sindicato em questão – United Automobile Workers - acusou Nissan de ameaçar e intimidar os operários; alguns destes evocaram caso de corrupção de chefe sindicalista. O Sul dos Estados Unidos continua ainda menos sindicalizado do que o resto do país.

 

O mundo é vário – e áspero demais em muitos lugares. Continuo a preferir a decência europeia que inclui hoje muitas vezes a liberdade de casar com quem se queira e o direito de morrer em paz.

 

 

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Quarta-feira, 26 de Outubro de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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In real time e sem anestesia

 

 

 

Às vezes parece estarmos a assistir assim ao fim do projecto europeu. Na sexta-feira passada, em lágrimas, a ministra do comércio externo canadiana, saindo de encontro com o presidente do governo valão (região do sul da Bélgica cujos habitantes falam francês), governo que à última hora decidiu bloquear acordo comercial de grande alcance, começado a negociar há 6 anos entre a União Europeia e o Canadá, fez a declaração seguinte (cito-a em francês como ela falou):

 

« Au cours des derniers mois nous avons travaillé très fort avec la Commission européenne et avec beaucoup des pays des membres-états de l’Union européenne, y compris l’Allemagne, la France, Autriche, la Bulgarie, la Roumanie. Le Canada a travaillé vraiment et moi personnellement j’ai travaillé très fort.

 

Mais il semble évident pour moi, pour le Canada, que l’Union européenne n’est pas capable maintenant d’avoir un accord international même avec un pays qui a des valeurs si européennes comme le Canada, et même avec un pays si gentil et avec beaucoup de patience comme le Canada.

 

Le Canada est déçu. Moi personnellement je suis très déçue. J’ai travaillé très fort. Mais je pense que c’est impossible. Nous avons décidé de retourner chez nous et je suis très, très triste et c’est une chose emotionelle pour moi. La seule bonne chose que je peux dire c’est que demain matin je serai chez moi avec mes trois enfants ».

 

É bonito - e triste - mas afinal, sábado de manhã (altura em que escrevo estas linhas: por razões longas de enumerar devo acabar hoje o texto que irá para o ar – ou o éter ou a web, não sei como dizer – na próxima quarta-feira) a senhora está ainda em Bruxelas a negociar com o presidente do Parlamento Europeu antes de voltar para casa ainda hoje e talvez, depois desta peripécia, tudo fique pronto a tempo do jovem Trudeau (filho do velho Trudeau que já morreu e também foi primeiro ministro do Canadá) assinar na quinta-feira em Bruxelas, como previsto, o novo acordo. Esperemos que sim – mas o episódio é característico da doença que mina a Europa desde que a URSS acabou. O medo dela dava pulsões centrípetas aos países das Comunidades Europeias que iam ajudando a União a fazer-se. Agora cada um trata de si e liga pouco aos outros, como era costume dantes. O poder comercial da Europa vem da Comissão negociar com terceiros em nome dos países membros. Este verão, sob enorme pressão da Alemanha e doutros, contra a opinião dos seus serviços jurídicos, a Comissão deixou que nações pudessem negociar também. Levou mais tempo e estava quase feito quando a estrutura constitucional belga permitiu que os valões se metessem a desmancha-prazeres. O precedente vai enfraquecer a Europa.

 

E dá mais uma história belga. Má. A maioria flamenga, de economia mais rica, está furiosa e eu lembrei-me do meu colega belga de Estrasburgo, em 1979. « Tu sais ce que c’est que la pollution ? Un wallon dans la Meuse. Et la solution ? Tous les wallons dans la Meuse! ».

 

 

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Quarta-feira, 13 de Abril de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

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Em April, águas mil.

 

 

 

Gente mais lida do que o comum dos mortais deste maravilhoso país que tão generosamente acolhia no seu seio o meu chorado A. B. Kotter (Ei Bi para os amigos), inglês da Várzea de Colares - mais lida e mais provinciana (os piores sãos que acham que o não são, como disparou um dia a Teresa Gouveia, irritada já não me lembro com qual deles) quando, diante dos incómodos e contradições pós-equinociais do quarto mês do ano, gosta mais de dizer “Abril é o mês mais cruel” e, de preferência, dizê-lo em inglês - April is the cruellest month - papagueando a primeira e mais célebre linha do mais célebre poema moderno do século XX na língua do Bardo, The Waste Land, publicado em Londres em 1922, escrito por americano de Missouri com tal mania de ser inglês que se naturalizou, protestante, na Church of England mais precisamente depois da vinda para Inglaterra, e com tanta vontade de ser Católico Apostólico Romano que só a liturgia da High Church o contentava, educado em Harvard e vindo continuar os seus estudos de lógica formal em Merton College, Oxford, visitando também muito Bertrand Russell em Londres, que não só lhe ensinou lógica mas também lhe seduziu a mulher, muito neurótica, a quem aventuras como essa infelizmente não salvaram nem o casamento nem a saúde e acabou sozinha num hospício, enquanto o marido se foi inclinando cada vez mais para o vers libre (a mãe, numa carta a Russell, contava não dar nada por essa fantasia e esperava que ela passasse deixando o terreno à reflexão filosófica: quando T.S. Eliot veio a receber o prémio Nobel da literatura em 1948 já a Senhora tinha morrido) acompanhando muito com outro americano, Ezra Pound - que viraria fascista antes da Segunda Guerra Mundial havendo sido internado – cuja mestria poética é universalmente reconhecida, reviu e emendou The Waste Land que Eliot lhe dedicou chamando-lhe Il miglior fabbro.

 

Chuva e sol no dia de ontem levaram às ruminações acima, com 8 horas passadas no aeroporto de Lisboa, chamado singelamente da Portela (o meu nome preferido é Figo Maduro, mais aerogare do que aeroporto porque as pistas são as da Portela). Chegara a Lisboa na véspera com saída de Zaventem, aeroporto de Bruxelas, por corredores e salas improvisadas e erigidas muito depressa depois das atrocidades de 22 de Março, com pessoal dedicadíssimo que ia tratando uma a um, com vigilância atenciosa, quem rumava aos aviões. Menos de um quinto das descolagens diárias normais estão programadas e pôr a zona de embarques novamente como nova poderá levar nove meses. Depois do que se soubera de ineficácias belgas, a caminho e logo a seguir aos ataques terroristas, entrei no Airbus da TAP com admiração respeitosa e grata por aquela gente.

 

Ontem, à volta, balde de água fria. Sobre a diligência do resto do pessoal e perante indignação geral no país, os controladores aéreos belgas meteram-se a greves intermitentes que já estavam programadas. A espécie humana dá uma no cravo, outra na ferradura.

 

 

 

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Quarta-feira, 30 de Março de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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 Aeroporto de Zaventem, Bruxelas, 2016

 

 

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Avé Marias e pelouros

 

 

 

“E com muitas Avé Marias e pelouros nos fomos a eles e os matámos todos num Credo” conta Fernão Mendes Pinto do combate da sua nau contra o junco do pirata Cimilau, no mar da China. Embora o homem da Peregrinação tivesse veia mitómana à Luis Stau Monteiro – chamavam-lhe mesmo Fernão, mentes? Minto! – esta tem pinta verídica (com os nossos que lá ficaram convencidos de que iriam dali para o Céu).

 

Convicções semelhantes nutre rapaziada (e, em muito menor número - mas não querem valer menos que os homens - raparigada) que ultimamente, ao grito de Alá é grande!, se faz explodir, a si própria e a muita gente à sua volta, em vários lugares da Europa: o último tendo sido Bruxelas. Europa onde quase todos eles (e elas) nasceram, e em cujos reformatórios e prisões, a que delitos comuns mais ou menos violentos os haviam levado, foram convertidos ao Islão radical. São a carne de canhão do Estado Islâmico, mandados para o matadouro por teólogos e por tecnocratas que, esses, não se suicidam para ganharem atalho directo ao Paraíso.

 

Em suma, estão em guerra contra nós. Não só contra nós: o Estado Islâmico é, primeiro que tudo, um ariete sunita contra chitas e outros hereges muçulmanos, a seguir contra judeus mas, por variadas razões, a sua sanha contra europeus e norte americanos tomou posição de proa. Havia 15 sauditas entre os 19 kamikazes do 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e em Washington; agora a primeira explosão na aerogare de Bruxelas foi na bicha da American Airlines, a segunda, logo a seguir, num Starbucks a 50 metros. Estados Unidos e União Europeia - aquilo a que se costumava chamar o Ocidente – são alvo predilecto dessa guerra. E aí temos um problema.

 

Entendidos falarão logo de guerras assimétricas: nisso, terroristas calham pior ainda do que guerrilheiros; a OTAN, joia da nossa coroa, foi inventada para nos proteger de ataque convencional da Rússia, a começar na Alemanha. Tal investida nunca chegou: ganhámos a Guerra Fria sem ninguém dar um tiro; houve quem quisesse acabar com a OTAN nessa altura, o bom senso prevaleceu, depressa precisámos dela para peacekeeping robusto (na Bósnia e no Kosovo), está bem preparada para meter o devido respeito à Rússia belicosa de Putin. Os Aliados que a integram sabem que têm também de acudir aos perigos do Sul e estão a meter mãos à obra.

 

O problema é outro. Quanto a armas químicas, o Presidente dos Estados Unidos traçou uma linha vermelha para além da qual o governo sírio não poderia passar. Este passou mesmo e não lhe aconteceu nada. Os aliados dos Estados Unidos estremeceram, Putin rejubilou e Obama insiste em dizer que assim é que deve ser. A ministra dos negócios estrangeiros da Europa - em tudo menos em título - durante uma visita oficial a Amã, quando soube das atrocidades de Bruxelas desatou a chorar diante de jornalistas. “Um fraco rei faz fraca a forte gente” escreveu o Vate que sabia destas coisas e perdera um olho a guerrear contra os mouros.

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 6 de Janeiro de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Museu Nacional Arte Antiga.jpg

 

 

 

 

 

 

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Vontade nacional

 

 

 

“… parecer-me-ia muito interessante que escrevesse sobre um dos mais difíceis factores mensuráveis (?) do poder de um Estado - a vontade nacional. Onde está a nossa vontade nacional? Existe? Para onde caminha? O que se espera da nação? Ainda somos um estado-nação?”

 

Bom conselho de politóloga, se nos quisermos pôr a pau perante o que são Mundo, Europa, euro, democracia, desemprego, temperaturas, Maomé, Cristo, Buda, terroristas, velhos, refugiados, mulheres veladas e sem véu, passado, futuro. Embora eu olhe para o assunto de outro jeito por achar que a ciência política não ajuda muito a entendê-lo (nem a entendermo-nos a nós por via dele). Já a História ajuda, se for bem contada como foi, por exemplo, a da guerra do Peloponeso; histórias ajudam também, tal a de Anna Karenina ou as de outras infelicidades; versos; frescos; estátuas; música – e fica um ror sem fim por entender. Não é só coisa de hoje e de aqui. “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução” escreveu o brasileiro Carlos Drummond de Andrade no dia de Natal de 1928.

 

Seremos ainda um estado-nação? Duas vezes na vida julguei entender do que é que essa questão trata. Primeira. Quando fui embaixador em Moçambique, cinco anos depois da independência, tinha na residência três criados moçambicanos. Lourenço, Jacinto e Salomão garantiam-me o serviço da casa; eu mantinha-os livres da sua liberdade. Um estado fizera reverência à boca de cena e retirara-se para deixar outro estado tomar conta do palco. Uma nação esboroara-se. Mas, quanto a nós os quatro, o ritual que nos regia continuava a ordenar o nosso mundo. (But to the four of us the center/ Holds escrevi eu então, a rematar versos de circunstância).

 

Segunda. O massacre islamita de 13 de Novembro passado, em Paris, foi planeado ao pormenor por residentes, alguns deles franco-árabes, do bairro bruxelense de Molenbeeck, lugar com tradição jiadista antiga – de lá saíram os assassinos do comandante Massoud do Afeganistão em 2001 – e ruas onde a polícia há décadas não põe pé. As polícias secretas europeias passam constantemente informações umas às outras e a investigação do massacre de Novembro mostrou que as autoridades belgas não tinham usado, ou tinham usado pateticamente mal, informação recebida; bem aproveitada poderia provavelmente ter impedido o massacre. Porque não há na Bélgica vontade nacional: flamengos e valões detestam-se; de alto abaixo, múltiplos níveis de decisão comunicam pouco e mal entre si; a disfunção do estado é permanente.

 

Em Maputo percebi que, em transições, anseio de ordem protegida encontrará maneira de se satisfazer, mesmo à custa de incongruências, porque de dentro para fora - do lugar onde dói – estas contam pouco.

 

Em Bruxelas percebi que boa-vai-ela tolerante de antijacobinos como eu não sabe defender-se de quem queira dar cabo dela. Caricatura premonitória de Europa sem estados-nação?

 

Entretanto, e como dantes, nós por cá todos bem.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 18 de Novembro de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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José Cutileiro.jpg

 

 

Uma invenção recente

 

 

“A guerra é tão antiga quanto a humanidade” disse jurisconsulto inglês em meados do século passado: “A paz é uma invenção recente”. Ilustrando a razão dessa sentença deflagraram, já no século XX, as duas maiores guerras de sempre – até agora. Nós, na União Europeia, nascida como Fénix de brasidos deixados pelo fim da segunda depois da rendição incondicional da Alemanha nazi, parecíamos convencidos de que desta vez a paz era a valer e, sobretudo desde o colapso da União Soviética, achámos que não valia a pena gastar dinheiro em defesa, preferindo sacrificar esta a aumentos na saúde e noutros mimos, possíveis em tempo de paz. (Como escreveu outro inglês, Duff Cooper, ministro no governo de guerra de Churchill, autor de óptima biografia de Talleyrand e embaixador britânico em Paris em 1945 que saiu um dia abruptamente de restaurante explicando que a vida era curta demais para um mau almoço: “A ideia de que cortar nas despesas militares diminuirá os riscos de guerra é tão absurda como pensar que para reduzir o número de roubos se devam fechar as esquadras de polícia”). 

 

A inércia do bem-estar é muito forte. Em matéria de defesa - e de política externa, sem a qual não se saberia ao certo quem defenderia o quê de quem – nada parecia alarmar os nossos povos ou os nossos governos: nem Putin na Ucrânia, nem o Estado Islâmico no Iraque e na Síria, nem o caos na Líbia depois de lá termos borrado a pintura. (Há alguns meses, antigos países de Leste e antigas Repúblicas bálticas da U.R.S.S., com memórias ainda vivas do bafo do urso no pescoço, conseguiram que a OTAN mostrasse os dentes lembrando que existia - sensatez milagrosa manteve a OTAN pronta a servir, agora com Secretário-Geral à altura - mas, no geral da União, não se pensava nestas coisas ou pensava-se nelas com pouco zelo). 

 

No fim da semana passada, da noite para o dia, as coisas mudaram com os ataques terroristas em Paris, comandados de Racca no Estado Islâmico do Iraque e da Síria e planeados no bairro bruxelense de Molenbeek, à esquerda de quem vá do Jardim Botânico para a Basílica, depois do canal, bairro que já pertencerá ao imaginário do Islão radical - também foram lá planeados o assassinato do comandante afegão antitaliban Massud, 2001, e os quase 200 assassinatos da gare de Atocha em Madrid, 2004 - em partes do qual a policia belga não se atreve a entrar.

 

François Hollande declarou que a França estava em guerra; Angela Merkel acrescentou que o acolhimento aos refugiados deveria continuar como antes. Por uma vez, desde há muito tempo, o eixo franco-alemão falou de cima, com razão e com coragem. Para continuar a existir a Europa precisa de absorver centenas de milhares de jovens que não tem na sua força de trabalho e precisa de saber defender-se de quem a atacar.

 

Vozes já se levantaram – também em Portugal - clamando que uso de força contra o Estado Islâmico não se deve permitir. Há gente que nunca aprende e gente que esquece o que tinha aprendido.

 

 

 

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Domingo, 1 de Novembro de 2015

La Blessure (Doclisboa 2015)

 

 

La Blessure 3.jpg

 La Blessure (2004 França/Bélgica)

de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval

 

 

O melhor filme que vi nesta edição do Doclisboa é uma recriação notável das condições de acolhimento e de vida de imigrantes africanos em França.

Um texto sobre o filme e mais fotografias na revista Courte-Focale aqui.

 

A crítica de Jacques Mandebaum no Le Monde aqui

A text in English here.

 

 

 

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