Quarta-feira, 21 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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José Cutileiro

 

Os nomes das coisas

 

A cozinheira – que veio com a casa onde estamos este Agosto, ganhou na televisão um concurso da sua arte, recusara por razões pessoais meter-se em empreendimentos comercias de grande restauração e trabalha para famílias de Cascais e amigos delas – tinha-nos feito já uma vez farófias (îles flottantes dizem a minha mulher e a minha cunhada, colocando as da cozinheira premiada muito alto na sua experiência francesa de sobremesas) e eu pedira-as outra vez para o jantar de ontem.

 

Vizinha de mesa de quem gosto há quase meio século, tem geralmente conversa hilariante, é bom garfo e óptimo copo (de bons tintos) chamou às farófias nuvens porque assim aprendera em pequena dos manos mais velhos. De resto toda a gente lá em casa, senhores, senhoras, criados e criadas, dizia nuvem e para ela tal era o nome da coisa.

 

Ela é do Norte eu do Sul de Portugal e o doce em questão, à primeira vista da minha ignorância, tanto poderia ter  vindo de serralhos muçulmanos quanto poderia ter saído de conventos do catolicismo de Trento. (Tem em todo o caso característica rara: a grande maioria dos doces de ovos usam gemas, aproveitadas do fabrico de vinhos que precisam das claras. As farófias usam claras em castelo; os bolos mais conhecidos de de Bordéus, terra dos melhores vinhos tintos jamais feitos são os canneletscozinhados com gemas de ovos, cujas claras ajudaram a criar nectares sublimes e a boa Mariana Alcoforado que os franceses conhecem por la religieuse portugaise há de se ter consolado com trouxas de ovos – se realmente existiu que os estudiosos não deixam nada quieto e há quem pretenda que as suas famosas cartas foram escritas por um homem).

 

O resto da mesa falava de coisas diferentes – greve, mundo (Mundo, mundo, vasto mundo/Se eu me chamasse Raimundo/Seria uma rima e não uma solução escreveu Carlos Drummond de Andrade e continuamos a ver hoje diante de nós mais rimas do que soluções) férias em outros lugares, maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices, trocavam-se  os epigramas e os calembourgs  – e eu não quis interromper-lhes o fim do jantar com farófias.

 

Além disso as diferenças entre o Norte e o Sul são fundas e podem levar a proclamações extremas. Amigo tripeiro assistia a jogo de futebol entre Salgueiros e Boavista e o árbitro, que era de Lisboa, tomou decisão desagradável para uma das claques que começou a insultá-lo: «Ah mouro, se num fossemos nós inda andabas de lençol à cabeça!». Amigo alentejano sustentava que Portugal era o Alentejo, porque do Tejo para cima eram beirões e os algarvios beirões faladores. Sobre a rivalidade entre alfacinhas e tripeiros, porquê Mário, porquê Cesariny, por quê, ó meu Deus, de Vasconcelos, escreveu a linha definitiva: «Lisboa, capital do Porto».

 

Não chegaríamos a tanto e, entretanto, como acontece em jantares, a conversa perdeu-se noutras. Foi pena porque fiquei sem saber qual a guloseima a que ela, desde pequena, chamava pegamócolo porque era assim que os manos diziam lá em casa.

 

 

 

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Quarta-feira, 7 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Max Weber imagem aqui

 

José Cutileiro

 

As coisas são como são

 

Há uns vinte anos, em Princeton, li no jornal de um escândalo em Wall Street, pequeno por padrões a que a ganância, nesta época de financeiros desregulados e sindicatos enfraquecidos, nos tem levado a adoptar mas suficiente para entreter leitores do New York Times. Homem importante e tido por super honesto daquela praça financeira fora parar à cadeia, culpado do delito de informação privilegiada. Até aqui nada de especial mas li a seguir que o pai dele, urologista reformado com mais de 80 anos, a quem o filho informara e assim pudera vender a tempo a poupança de uma vida inteira e evitar a ruína, fora também condenado. E aí o caso mudou de figura porque o imaginei, leitora, em Portugal.

 

Quem atiraria a primeira pedra ao filho que salvara o pai? Quem acharia que ele se deveria ter submetido às obrigações de uma moral universalista que trata igualmente, segundo regras gerais aplicadas a todos, o filho predilecto da leitora e os ciganos que devem com certeza ter roubado a trotinete eléctrica da filha do vizinho da sua mulher a dias? Quem o condenaria em tribunal? E, se fosse mesmo condenado, quantos tratariam de arranjar maneira de lhe encurtar a pena ou até de o amnistiar?

 

Na Idade Média, desenvolveu-se na ponta noroeste da Eurásia sistema de regras de convivência entre quem tinha a terra e quem a trabalhava ou tinha misteres correlativos a que se chamou feudalismo, que foi ensinando a toda a gente como se comportarem uns com os outros e irem vivendo em paz, sobreviveu às matanças das grandes guerras religiosas europeias e chegou ao nosso tempo sob a forma de democracias parlamentares e de monarquias que reinam mas não governam. Entretanto, fiéis ofendidos não só por alguns dogmas da Igreja Católica mas também pela depravação do Vaticano (em festa dada ao papa Alexandre Borgia, cinquenta cortesãs dançaram primeiro vestidas, depois nuas, apanhando no fim - com as vaginas - castanhas do chão de mármore), com Lutero e Calvino à frente, reformaram o cristianismo. Os fieis passaram a ler a Bíblia e a falar directamente com Deus. A moralidade tornou-se ingrediente indispensável da salvação, e integrou o progresso material. No começo do século XX, o sábio alemão Max Weber publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo que pareceu fazer sentido a muitos, enquanto este florescia, primeiro na ponta noroeste da Europa, depois nos Estados Unidos – e hoje no mundo inteiro, China à cabeça.

 

A ponta sudoeste da Europa onde nós estamos, não conheceu tais vivências. Enquanto a norte, em princípio, se acredita em estranho que nos fale e o poder que haja é legítimo, no sul desconfia-se do estranho e o poder que haja nunca é tão legítimo quanto isso. Com União Europeia ou sem ela, levará muito tempo e muitas dôres de cabeça legislativas acertar as peças que fechem este puzzle.

 

Entretanto, o afilhado da sobrinha do irmão do presidente da câmara que fez fornecimentos sem concurso pode continuar a dormir em sossego.

 

 

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Quarta-feira, 31 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Lope de Vega   1562-1635

 

 

José Cutileiro

 

Writer’s block

 

Quando se faça ofício de escrever, a vida é como o porco para o talhante: aproveita-se tudo. Mas há dias em que tal não chega e mesmo os mais pimpões às vezes desacertam o passo.

 

(Contei agora 315 caracteres, compreendendo espaços. A dimensão convencionada destes blocos que envio à Vera para ela depois os ilustrar é de 3.000 caracteres, compreendendo espaços. Já passei pois os 10%; e com mais folga, porque o que vai dentro deste parentesis conta também: pouco mais de 20%).

 

Que eu saiba, na literatura portuguesa o caso mais explicito destes apuros deve-se a Eça de Queiroz (espero que os mais novos ainda o leiam: ninguém melhor do que ele escreveu prosa portuguesa). Cito de memória, porque há dois anos, com mais de metade dos meus livros em caixas de cartão da Galamas e quase metade dispersa por três moradas diferentes, doei tudo a departamento simpático do estado, com o aliciante de irem para o que fora convento beneditino, com monges beneditinos lá dentro e tudo, por assim dizer ao jeito da agricultura bio. Entretanto, parece que os monges afinal não eram monges e foram mandados à vida mas consta-me que os livros lá continuam. O que é certo é que não os tenho comigo e cito de memória – e em matéria de respeito pelo que os comunistas chamavam verdade objectiva, a memória é pior do que as mulheres. Adiante.

 

Eça prometera artigo ao director do jornal, para o dia seguinte de manhã, o moço da tipografia, no pátio para o receber, tinha botas que rangiam, e Eça, sem se lembrar de outra coisa, acabara por desancar o Bey de Tunis, velho estimável que ainda por cima parece que acabara de morrer, mas tanto fazia: «Em Tunis há sempre um Bey!» e fora-se a ele. O episódio, se não se estudava em escolas de jornalismo como «o pé da Luizinha Carneiro à Boavista», ficara na conversa de todos os dias. Agora fala-se destas coisas em inglês, como se fala de tudo onde haja progressos técnicos. Writer’s block com explicações várias, da psicologia tradicional às variações psicanalíticas disponíveis, se contadas de viva voz com entusiásticos sotaques norte-americanos, incómodamente seguros de si.

 

(Contei agora 2.331 caracteres, compreendendo espaços. Estou a aproximar-me do fim, beneficiando ainda deste parêntesis).

 

Eça contou depois a do Bey de Tunis, se é que não a inventou. No género – não é bem a mesma cosa, mas no género, a melhor para mim é de Lope de Vega: Un soneto me manda hacer Violante/ Qui en mi vida me he visto en tanto aprieto./Catorce versos dicen qui es soneto/Burla, burlando van los tres delante./Yo pensé que no hallara consonante/Y voy a la mitad de otro cuarteto/Mas se me veo en el primer terceto/No hay cosa en los cuartetos que me espante./Por el primer terceto voy entrando/Y me parece que entré con pie derecho/Pues fin con este verso le voy dando./En el segundo estoy y aun sospecho/ Que voy los trece versos acabando. Contad si son catorce y está hecho.Mais uma vez, citei sem livro à mão nem tempo para cotejar no Google.

 

 

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Quarta-feira, 24 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

LumumbaPatrice Lumumba e o Rei Balduíno, Congo 1961

 

José Cutileiro

 

Calor

 

Num país como a Bélgica, dividido entre duas nações que se detestam, Bruxelas é uma ilha de tranquilidade, variedade e decência – uma espécie de Nova Iorque dos pobres, se a leitora entende o que eu quero dizer. Talvez por haver aqui muitos estrangeiros, o ódio recíproco de valões e flamengos esbate-se num universo muito mais vasto. (Não estou a exagerar quanto a esse ódio. Muitos anos antes de eu pôr os pés na Bélgica, tive colega belga, embaixador como eu no Conselho da Europa em Estrasburgo, quase na idade da reforma, jovial e rubicundo, que um dia, a propósito de coisa nenhuma me perguntou: Tu sais ce que c’est que la pollution? E respondeu ele próprio: Un Wallon dans la Meuse ! Et tu sais ce que c’est que la solution? Tornou a responder: Tout les Wallons dans la Meuse!! O homem não era só belga: era embaixador da Bélgica, e deveria ter por obrigação defender os interesses de todos os belgas, mas tal não lhe passava pela cabeça.

 

Em tempo de paz, o ódio esbate-se melhor. Nas grandes guerras dos europeus do século XX,  essa sanha recíproca, pelo contrário, arranjou pano para mais mangas ainda. Embora, em 1914, um dos primeiros actos de guerra alemães tivesse sido a queima brutal e viciosa da biblioteca da Universidade de Louvain, barbaridade equânime pois aquela estava cheia de livros preciosos franceses e   holandeses, durante a  guerra os flamengos colaboraram muito com os alemães, enquanto os valões penderam para os franceses e os ingleses e os ajudaram. Na segunda guerra, tudo isso se repetiu, mas com mais violência e crueldade, porque, bem vistas as coisas, ser pro-nazi era feito muito diferente do que ser pro-alemão. Neste país, algumas das cicatrizes de 39-45 estão mal fechadas e deixam ainda sair pus e sangue.

 

Neste mês de Julho em Bruxelas, porém, não se dá por isso. Perfilou-se mal maior: o calor, para o qual Bruxelas está ainda mais mal apetrechada do que Lisboa está para o frio. (As duas cidades onde vivi mais convencidas de terem um bom clima, foram Lisboa e a Cidade do Cabo, tão convencidas, a despropósito, que se rapava nelas no inverno frio de rachar. Quando eu era novo, em Lisboa, não percebia porque é que os vestiários para sobretudos estavam dentro de casa. Deviam estar fora, porque era dentro de casa que se tinha mais frio.)

 

«Pior que Kinshasa» ouvi em francês belga, de mesa ao lado da minha numa esplanada. Cada um tem as suas referências africanas e as belgas são diferentes das nossas  e menos frequentes. Não houve colonialismo mais bruto e desumano e a juventude belga de hoje condena-o muitas vezes. Mas a grande maldade dos dias que vivemos é o calor: 44 graus Celsius previstos para quinta-feira. Talvez desde as matanças mandadas fazer pelo Duque d’Alba não tenha havido tanto incómodo.

 

Mas nisto de calor, a palma d’ouro vai para Federico Garcia Lorca. Em Granada, dizia ele, no verão o calor é tanto que não se passa nada. «Dos y dos nunca llegan a ser quatro. Quedan siempre y solamente dos y dos».

 

 

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Quarta-feira, 10 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

pastéisPastéis de Belém, Lisboa. foto: alamy

 

José Cutileiro

 

Antes do grande sobressalto

 

 

O Deutsche Bank vai despedir 20.000 pessoas, sobretudo em Wall Street e Londres. O responsável pela política de investimentos, mal orientada e mal executada, causa principal dos desaires recentes, deixa também o banco, mas com 11 milhões de dólares de gratificação - li eu aqui em Bruxelas na primeira página do último FT Weekend. Se a gente juntar esta informação ao facto de na crise começada em 2008, parte importante do dinheiro emprestado à Grécia pelo FMI serviu prioritáriamente para pagar a bancos alemães, cúmplices da extravagância meridional, e também ao facto de nenhum responsável de banco ou outra instituição financeira privada europeus ter ido parar à cadeia por causa da dita crise, (um ou outro matou-se: ainda há homens de honra mas já não há moral pública) não espantará que alguns de nós suspeitem que as coisas vão ter de mudar. E como ‘patrician reformers’ dedicados a mudá-las a bem e de cima para baixo, parecem ter desaparecido (enquanto a filosofia dos actors principais do poder actual pode ser encapsulada no lema assustador atribuido a outra estrela do Deutsche, morto em desastre de avião em 2.000 : «Se não tens $100  milhões de dólares aos 40 anos és um falhado»), outros, menos bem educados e crentes convictos no valor curativo das revoluções, tentarão fazer a mudança a mal e a contrapelo. Não digo debaixo para cima porque o bom povo, antes de se meter ao barulho e marcado pela Comuna de Paris de 1871, pelos bolcheviques russos de 1917, e por desmandos ainda piores na Ásia e nas Américas esperará para ver qual dos lados o tratará menos mal antes de tomar partido. Acredite a leitora que vem aí uma broncalina do camandro ou uma Bernardette do caboz e que seja qual delas for a escolha não será sua.

 

«É muito grave deixar a Europa» diz o riquíssimo Jacinto ao seu amigo José Fernandes quando o comboio saído de Paris que os levava a Lisboa ia a passar os Pireneus. Hoje já há pouca gente que pense assim: Espanha e Portugal são refúgios quase bucólicos e os franceses em particular são gulosos deste recanto onde a terra se acaba e o mar começa que tão generosamente os acolhe no seu seio como de croissants ou baguettes ao pequeno almoço mas sem nunca esquecerem que a França é o centro do mundo. Apesar de avanços da extrema direita (em Portugal não a há, em parte porque o 25 de Abril deitou abaixo 48 anos dela e em parte porque, ao conquistar a sua primeira maioria absoluta Cavaco Silva foi mata-borrão que absorveu toda a direita, da mais centrista à mais extrema) grande maioria deles é a favor da União Europeia mas não à nossa maneira. Portugal quer estar na União para ficar mais europeu; a França que estar na União para que esta fique mais francesa. Vivi em França de 1977 a 1980 e achei que os franceses eram portugueses bem sucedidos e, portanto, mais arrogantes e menos simpáticos do que nós. Só vão ao sítio se tratados mal, o que será incompatível com regras básicas de turismo. A ver vamos.

 

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Quarta-feira, 3 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

nuno bragançaNuno Bragança (foto aqui )

 

 

José Cutileiro

 

Coisas de cá e lá fora

 

Não vi o Expresso de há duas semanas mas li o Vasco Pulido Valente segunda-feira no Público e encontrei lá o Nuno Bragança. Ao contrário do Vasco eu gostava do Nuno e do que ele escrevia; acho que a primeira linha de A Noite e o Riso– « Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me desembaracei na arte de estender os braços.» – ficará pequenina pérola da nossa literatura. E achei bons esse seu primeiro romance e o terceiro, Square Tolstoi; o do meio tinha tanto em directo, chamava-se Directa,da vida do Nuno (e da Leonor) que decidi a certa altura parar de o ler e não sei avaliá-lo.

 

As graças dele divertiam-me, embora conceda que eram de humor especial, o qual nem sempre agradava aos ouvintes ou sequer era por estes entendido como humor. Recebi um dia em Oxford postal dele da antiga Jugoslávia – técnico salvo erro do ministério das corporações o Nuno fazia muitas viagens de trabalho – datado de Liubliana, que rezava assim: «Vi ontem à noite numa taberna de Liubliana um bêbado igual ao Vasco Pulido Valente que fazia o elogio de Estaline. E fiquei a saber quem é o Vasco: um bêbado numa taverna de Liubliana fazendo o elogio de Estaline».

 

Uma quinzena em Londres falámos várias vezes. Ele viera pelo ministério para estágio onde não ia, e as suas ajudas de custo davam só para quarto de hotel incómodo e exíguo. Eu viera de Oxford ler na British Library e ficava num dos quartos simpáticos que a Gulbenkian punha à disposição de bolseiros na província que tivessem de vir a Londres. Quando eu saía de manhã o Nuno entrava para escrever o que viria a ser A Noite e o Riso na mesa do meu quarto. Jantamos várias vezes juntos e na véspera de ele voltar a Lisboa perguntei-lhe o que achara de Londres. (Era a sua primeira visita a Inglaterra mas havia toque especial: ele tivera uma nanny em pequeno e falava inglês como um nativo). Respondeu-me assim: « Sei que levaria muito tempo a adaptar-me a viver aqui. Mas sei também que em Portugal não me vou adaptar nunca». Viveu mais de vinte anos depois dessa conversa mas acabou por se matar numa casa de saúde para maluquinhos, perto de Lisboa.

 

Lá fora. Escrevo terça-feira na Marinha de Cascais e à hora de aqui deixar estas linhas não há ainda resultado de reunião do Conselho Europeu começada ontem para escolher os mandachuvas da União para os próximos 5 anos: o dito Conselho, a Comissão Europeia, o pseudo ministério dos Negócios Estrangeiros europeu e o nosso Banco Central. Há dias que as discussões prosseguem (entre 27 países) e o que se vai sabendo das conversas não é edificante mas não é isso que me agasta: Bismark dizia que nunca se deve visitar uma fábrica de salsichas. O que zanga é, por um lado, ver Merkel ser agora maltratada por anões políticos e, por outro, ver Timmermans, defensor activo dos valores europeus ser posto de parte para satisfazer exactamente os chefes nacionais – húngaro, polaco - que mais desrespeitam esses valores. Casos destes enchem a gente de fé.

 

 

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Quarta-feira, 26 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

míssil hipersónico USAmíssil hipersónico norte-americano

 

José Cutileiro

Guerras

 

Leio no jornal que americanos, russos e chineses trabalham em mísseis hipersónicos capazes de viajar a mais de 15 vezes a velocidade do som, de atingir num quarto de hora alvos russos ou chineses se forem americanos (ou americanos se forem russos ou chineses), levando cargas explosivas e podendo perfurar as paredes mais resistentes de abrigos atómicos subterrâneos ou as couraças de porta-aviões americanos. Leio também que, ao contrário do que acontecera a partir de certa altura durante a guerra fria, não há conversas entre os protagonistas para criar regras de protecção mútua que ajudassem a lidar com acidentes ou mal-entendidos. Nesse como em qualquer género de  armamento, os americanos de Trump não estão interessados em nada que cheire a prevenção e os outros tampouco insistem.

 

«Messieurs les anglais tirez les premiers» disse o tenente Conde de Auteroche na manhã de 11 de Maio de 1745, durante a guerra da sucessão da Áustria quando franceses e ingleses, com aliados vários, (ao todo 47.000 homens de um lado e 51.000 do outro) apoiavam pretendentes diferentes, assim dando começo à batalha de Fontenoy, no que eram então os Países Baixos austríacos e é hoje a Valónia, na Bélgica.  Nessa altura e até à Revolução Francesa (e, a seguir, à explosão dos nacionalismos) as guerras eram o grande desporto da fidalguia. Auteroche convidou os ingleses a atirarem primeiro como quem, num jogo de ténis entre amadores, convide a bolar primeiro quem o defronte do outro lado da rede. Escrevendo poucas décadas depois, o Príncipe de Ligne diz que o seu maior desgosto fora a morte do filho, decapitado por tiro de canhão do exército revolucionário francês. Conta da relação estreitada por terem combatido juntos, de como chegara a pensar que seria bom serem feridos ao mesmo tempo. Já no começo do fim desse mundo, Napoleão Bonaparte lembrou que a coragem (física) é a única virtude que não se pode imitar. As ruas das cidades europeias estão cheias de nomes de batalhas ganhas - e de quem as ganhou – para não as deixar sair da memória colectiva.

 

A guerra é tão antiga quanto a humanidade (recente, e não sei se duradoura, é a paz); houve, na Europa e alhures, além da fidalga e da nuclear, outras maneiras de a fazer, e haverá mais no futuro sob formas que talvez nem imaginemos. Vivemos, seja como for, em tempo muito especial: toda a gente fala da brecha aberta entre as elites e o resto. Salvo em páginas de Madame de Staël que deu por divórcio assim em Paris, no começo da Revolução Francesa, não há memória de coisa parecida na história que conhecemos. Talvez a razão seja a mesma: explosões gigantescas de liberdade, a exigirem outros costumes. (Em 1917 na Rússia não chegou a haver liberdade: Os lagartos mudam de pele/Para salvar o coração./Nós mudamos de coração/Para salvar a pele escreveu poeta local coevo, prontamente executado).

 

Dito isto: 1 Não há nada mais parecido com a França de Versailles do que a França do Eliseu. 2 E os mísseis hipersónicos?

 

 

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Quinta-feira, 13 de Junho de 2019

Santo António de Lisboa

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Tronos 19

Livraria Sá da Costa, Montra da Rua Serpa Pinto, Lisboa

Esta iniciativa integra-se na exposição de rua “Tronos de Santo António´19”, organizada pela EGEAC, com o objectivo de estimular a participação de todos no espaço público da cidade de Lisboa durante o mês das festas da cidade.

 

 

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Quarta-feira, 5 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Vicentes CarnavalCandeeiros (Os dias dos nossos carnavais) - Museu Vicentes, Madeira

 

 

 

José Cutileiro

 

Gemeinschaftzinho

 

 

«Vossas Excelências não têm nada a declarar? Não há malinhas de mão ?»

 

Assim pergunta de cais de estação de caminho de ferro florida, numa manhã cheia de sol, ‘fardeta agaloada’ e, dentro da carruagem, Zé Fernandes que acompanha o seu amigo Jacinto na primeira visita à terra dos antepassados deste, percebe que, havendo deixado para trás a rudeza da noite castelhana, tinham acordado em Portugal.

 

Malinhas, não malas, disse a fardeta na raia seca. «Já acabei de limpar a metralhadorazinha» diria algures em Angola, quase setenta anos depois, soldado raso a tenente miliciano do exército português. Este outro caso fora contado pelo miliciano em questão, depois de regressado à metrópole e desmobilizado, ao Gérard Castello Lopes que o contara ao Antonio Tabucchi que mo contara a mim. Gérard tinha uma teoria sobre o uso português dos diminutivos, não sei se verdadeira se falsa, mas que acho valer a pena expor à leitora. Segundo ela, nós usamos diminutivos para mostrarmos ser bem educados e darmos primazia ao nosso interlocutor. Da mesma maneira que em muitas pinturas medievais em que se vejam várias pessoas o tamanho de cada uma delas não varia segundo regras de perspectiva (quanto mais longe mais pequenas) mas segundo regras de hierarquia social (quanto mais importantes maiores) assim nas nossas trocas de palavras. Ao usarmos diminutivos, colocamo-nos em posição respeitosa perante a pessoa com quem falamos. Tal fizera, com efeito, a fardeta agaloada ao chamar malinhas de mão à bagagem dos viajantes sem sequer a ter visto. De caminho vinha sugestão de hospitalidade e bonomia, de rejeição de hostilidade, mais importantes ainda numa fronteira do que longe dela. (Mesmo antes de alguns horrores fronteiriços norte-americanos e europeus recentes devidos a questões de emigração terem chocado muita gente, fronteiras eram amiúde lugares onde a viajante – ou o viajante - se sentia insegura e indefesa. Lembro-me de malas abertas e roupa espalhada na alfandega paquistanesa em Lahore, lidando com passageiros vindos de avião de Nova Deli, cinco anos após as independências da Índia e do Paquistão a partir da Índia colonial governada por Vice-Rei mandado de Londres - os ingleses, neste caso, não dividiram para reinar; dividiram para se irem embora).

 

Talvez o Gérard tivesse razão – mas tal não explica a exuberância e a frequência actual de diminutivos, a torto e a direito – além do clássico um beijinho grande, o pezinho, o bracinho, o enfartezinho (do miocárdio), a escadinha (Magirus); presumo que por correcção política deixei de ouvir dois, correntes na minha infância: pretinho e pobrezinho. Numa espécie de primavera que se apossou ultimamente dos portugueses, talvez toda a gente queira estar bem com toda a gente e atiremos diminutivos uns aos outros como dantes, no Carnaval, se atiravam serpentinas.

 

Gérard, António – só me vem à cabeça o medievo Villon a lembrar-se de amigos idos: Repos aïent au Paradis/Et Dieu garde les demeurants.

 

 

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Quarta-feira, 29 de Maio de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

torre de Belém

 

 

José Cutileiro

 

Português e vivo

 

Português e vivo/É diminutivo./Só fazemos bem/Torres de Belém.

 

Esta quadra popular de Carlos Queiroz, a quem ficámos a dever algumas magníficas, não é das melhores que ele escreveu. Nos dois últimos versos dá ideia de não ter percebido a visão e a força precisas para construir a Torre de Belém quanto mais várias. Tomáramos nós!

 

Antes dessa tontice, porém, os dois primeiros versos exprimem aquilo que desde que me lembre – e desde pelo menos Os vencidos da vida– os portugueses que pensavam e julgavam conhecer o seu país achavam e diziam. Assim Oliveira Martins – um dos vencidos– a propósito de Os Lusíadas: « Há países para quem a epopeia é, ao mesmo tempo, o epitáfio» - ou palavras no mesmo sentido; cito de memória conversa ouvida em casa dos meus pais, quando era pequeno. Salvo em propósitos de propaganda, na monarquia liberal, na primeira república, no estado novo, no Portugal democrático, era o que se ouvia – e a culpa caía sempre nos inimigos políticos de estimação de quem estivesse a falar: os Braganças, a República, Salazar, os comunistas, a reacção; ultimamente (desde que ao Beato Obama sucedeu o Mafarrico Trump), até a América, isto é, os Estados Unidos. No começo do século XX, até ao arrumo do jacobinismo oficial em 1926, a igreja católica foi o bombo da festa. Em 1911, folheto anticlerical esclarecia na primeira página: A palavra padre é aqui empregue no seu sentido o mais pejorativo.A seguir ao 25 de Abril não houve nada disso. Os católicos progressistas – «pessoas que tinham a coragem de dizer aquilo que já não era preciso ter coragem para dizer» na formulação de Luis Sttau Monteiro – eram bem acolhidos pela oposição histórica ao regime; anticomunismo popular veemente no Norte de Portugal foi apoiadíssimo pelos curas locais; o Dr. Mário Soares, que tinha mais jeito para a política do qualquer dos seus compatriotas contemporâneos, fez gala em aparecer a almoçar e jantar com bispos nas televisões e em fotografias de capas de jornais. (O estado novo dizia mal de democracia e de comunismo, metendo-os no mesmo saco, o que facilitou a tarefa da oposição mas foi preciso esclarecer depois do 25 de Abril).

E os portugueses continuavam tristes. Pobres e tristes: Les portugueux sont toujours gueux, escreveu Alexandre O’Neill. Tenho experiência de voltar a Portugal desde 1952, umas centenas de vezes; falei com muitos estrangeiros que cá vieram. Havia, como dizem agora, um consenso: os portugueses eram tristes.

Uso o pretérito porque parecem ter deixado de o ser. Neste último regresso, desde a tripulação da TAP a encontros em lojas e transportes, às pessoas que lidam profissionalmente comigo, é como se toda a gente se tivesse livrado de fardo que levara às costas. E estão alegres (!). Não sei por quanto tempo mas julgo saber porquê. António Costa (cuja maneira de chegar a PM muito me irritou na altura) nasceu com talento redondo para o que está a fazer e dá aos portugueses conforto de que nós precisávamos.

 

 

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