Inauguração do Estádio Nacional, 1944
Fotos: João D'Korth
Vergonha na cara
Nuno Bragança tinha tido uma nanny de maneira que quando foi a Londres pela primeira vez, já com mais de trinta anos, os nativos com quem falava não percebiam que ele era estrangeiro. Passou lá um mês; a jantarmos na véspera de se ir embora perguntei-lhe o que achara. “Levaria muito tempo a habituar-me a viver aqui mas a Portugal sei que nunca hei de me habituar.”
Com efeito assim foi e o problema não era só do Nuno; o sentimento também assalta muitos que não acabam matando-se. Para Alexandre O’Neill era uma moinha permanente: “Portugal, questão que tenho comigo mesmo”. No meu caso, o incómodo deve vir do Pai que tive. Nos meus primeiros anos de liceu, era director do Centro de Saúde de Lisboa; todas as manhãs um automóvel o vinha buscar, que o trazia à noite (e muitos dias também para almoço que nessa altura comia-se mais em casa do que hoje). A Escola Valsassina, onde o João e eu andávamos, era a caminho do Centro mas nunca pusemos o rabo naquele carro porque um carro de serviço não servia para levar meninos ao liceu. O civismo ia mais longe. A CUF convidou o Pai para dirigir a parte de saúde pública dos seus serviços médicos. Era um lugar novo e aliciante mas havia uma condição: que ele prescindisse de intervenções políticas (não tinham passado da assinatura de alguns abaixo assinados contra o regime; nem sequer era comunista). Quando ele recusou, o médico que lhe transmitira o convite tentou demovê-lo, perguntando-lhe se ele não se lembrava de que tinha filhos. “É exactamente por me lembrar de que tenho filhos” respondeu o Pai.
Só comecei a dar-me conta daquilo a que alguns gostam de chamar o “país real” e outros o “Portugal profundo” já na universidade, alguns anos depois do Pai ter morrido. Mandara fazer um sobretudo e o alfaiate teve de mudar a data de uma prova para ir ao Minho testemunhar num julgamento. Contou-me depois: “O Senhor Doutor está a ver, o Juiz queria que eu dissesse a verdade mas eu…”.
Outros anos passaram. Virei antropólogo, veio o 25 de Abril, o PREC, a descolonização mas um ano depois disso tudo já se tinha percebido que o país mais parecido com Portugal antes do 25 de Abril era Portugal depois do 25 de Abril. Um dia disse ao Vitor Cunha Rego que meu pai me ensinara serem os portugueses um povo maravilhoso, oprimido por uma cáfila na qual o bandido-mor era Salazar. “Pois é” respondeu o Vitor “eu também tive um pai assim. E é grave um homem aos cinquenta anos descobrir que o pai era parvo”.
A identidade entre o país da Exposição do Mundo Português e o país da CPLP parece hoje quase completa. Pelo menos do ponto de vista moral. Em 1944, quando foi inaugurado o Estádio Nacional, avionette lançou sobre o público milhares de panfletos dizendo “O que nós queremos é futebol!” e explicando porquê.
Havia censura prévia e a imprensa – jornais e rádio – não podia contar de viagens duvidosas de secretários de estado. Agora pode e conta mas ganhamos as mesmas. Já ninguém terá vergonha na cara?
Recolher, preservar e divulgar as memórias de gente comum, reconhecendo que esses testemunhos de vida contribuem para o conhecimento da história e da identidade nacionais, é a missão do Arquivo dos Diários, associação cultural criada há dois anos, que lançou o concurso “Conta-nos e Conta Connosco”, destinado a enriquecer o seu acervo.
Agora que dispõe de uma equipa e de um espaço na Biblioteca de São Lázaro, graças a uma parceria com a Junta de Freguesia de Arroios, a associação está em condições de começar a reunir cartas e diários através dos quais os portugueses poderão contar a sua história. Diários, cartas, fotografias e filmes caseiros ou simples evocações feitas pelas pessoas são uma parte importante na construção da memória de cada um. Mas esses documentos servem também para ajudar a construir a narrativa de uma comunidade. A ideia é catalogar por temas tudo o que for recebido e, no futuro, disponibilizar o acervo num meio digital.
Existem já em vários países europeus arquivos dedicados a recolher a memória popular, designadamente o Archivio Diarístico Nazionale, em Itália, que serviu de referência a Clara Barbacini e Roberto Falanga, fundadores deste projecto.
© Soraia Martins
O principal obstáculo, admitem, é chegar às pessoas e mostrar-lhes que as suas memórias e objectos pessoais podem ajudar a desenvolver outros projectos interessantes, do cinema ao teatro, da ficção à investigação, ou simplesmente servir para consulta de quem tem curiosidade por histórias de outros tempos.
“Espero que os portugueses desmintam o pudor como traço da sua cultura”, diz Roberto. “Sei que vai ser complicado, mas desafiante. E acho que só o facto de alguém se questionar se deve ou não entregar [os diários e cartas da sua família] já é bom. Estimula o pensamento. Nesse tempo de reflexão o tema esteve ali, a ser considerado.”
Também sabem que poderá haver resistências à entrega de materiais e à publicação. “Sabemos que estamos a tocar assuntos muito delicados”, asseguram. Recordam o caso de uma mulher, vítima de violência doméstica, que ganhou em Itália um concurso semelhante ao agora lançado em Portugal e só anos mais tarde recebeu o prémio, depois de o marido morrer. Há também questões legais que podem colocar-se, por exemplo, no caso de pessoas que encontram ou compram materiais que não se importam de doar mas que dizem respeito a terceiros.
Tal como em Itália, está prevista a publicação anual de pelo menos um diário: quem entrega os seus materiais pode escolher participar num concurso aberto até 1 de Março próximo. Depois, um painel de dois júris – um popular e um técnico – escolherá um vencedor. Será publicado pela Penguin – Companhia das Letras.
As entregas podem ser feitas na Biblioteca de São Lázaro todos os sábados das 11h às 13h ou enviadas por correio e a associação tem um site com toda a informação em www.arquivodosdiarios.pt. Tem também uma página de Facebook aqui.
Arquivo dos Diários
Biblioteca de São Lázaro
Rua do Saco, 1 Lisboa 1169-107 (Freguesia de Arroios)
Agradecimentos:
artigo de Vanessa Rato no jornal Público, artigo de Samuel Alemão em “O Corvo” e textos reunidos no site Arquivo dos Diários.
Fotos gentilmente cedidas por Arquivo dos Diários e Soraia Martins
Samuel van Hoogstraten (1664)
Queridos Leitores,
o blog faz hoje sete anos, os últimos dois com a presença semanal do Bloco-Notas de José Cutileiro. São já mais de cem crónicas com o respectivo boneco, como ele diz. São textos que me orgulho de publicar e estou-lhe muitíssimo grata por isso. Grata ainda pela ajuda que tem dado a manter vivo este espaço e por me deixar exercer funções de iconógrafa – mot savant que ouvi há uns anos numa conferência no Instituto Francês e a que logo me identifiquei.
Este ano o Retrovisor recebeu outras contribuições valiosas: as fotografias de João D’Korth, cerca de 300 imagens dos anos 30 e 40, que Henrique D’Korth Brandão pôs à minha disposição e ajudou a digitalizar, e a série My Years in Angola (1950-1970) graças à colaboração de Elizabeth Davies. Agradeço ainda a Jorge Colaço, amigo e colaborador deste blog desde o princípio.
Ao longo destes anos tenho acompanhado com interesse a expansão dos conteúdos em português na rede, muito graças à blogosfera, e detectado lacunas também. Ainda há personalidades do século XX em Portugal com pouca ou nenhuma presença na net. A fotografia vernacular começa a despertar mais interesse – neste momento estão patentes em Lisboa fotografias dos álbuns da Raínha D. Amélia e dos Retornados das ex-colónias – mas quanta coisa não se terá já perdido ou continua a desbotar no fundo duma gaveta?
Há pouco tempo, para ilustrar um artigo sobre o poeta Tomaz Kim, o Jornal de Letras usou uma fotografia deste blog (muito bonita apesar de um pouco estragada). No verão passado o jornal Observador usou imagens que tenho coleccionado das praias de antigamente, algumas das quais eu própria descobri na rede. As fotografias de João D’Korth da Exposição do Mundo Português contêm surpresas apesar de tratar-se de um evento tão amplamente registado. Espero continuar a mostrar aqui curiosidades do mesmo género, que no entanto não vêm ter comigo ao ritmo a que eu desejaria.
Aos leitores que visitam pela primeira vez, ou que do Retrovisor conhecem pouco mais que o Bloco-Notas de José Cutileiro, convido à leitura de anteriores posts de aniversário.
Muito obrigada pela visita!
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