Vasco Luís Futscher Pereira
3 de Fevereiro de 1922 — 20 de Agosto de 1984
Brasília, 10 de Agosto [1974]
Almoço com o Vasco Futscher no Clube Naval.
Rosto glabro e redondo e olhar de sapo por detrás duns óculos onde palpita viva e ágil a retina bombeada do míope. Grande falador de riso fácil e de uma extrema simpatia natural. Tudo lhe desperta curiosidade.
Ostenta um instintivo gosto pela vida alimentado, ao contrário de muitos, pela cultura e a inteligência. Uma ponta de obesidade confere-lhe uma certa inteireza física acentuando-lhe a espontânea jovialidade. Quando sorri, e sorri com frequência, as bochechas sobressaem à maneira dum boneco animado, arredondando-lhe a face e a expressão reboluda do olhar.
A primeira impressão é a de que não poderia ter havido melhor escolha. Calhado para o Brasil, como outros o são para a Finlândia ou a Indonésia. O Brasil, que não conhece, surge-lhe como uma experiência inteiramente nova que ainda o anima e seduz, pois é homem, se não me engano, de entusiasmos repentinos.
Diz-me, no entanto, ter ficado horrorizado com o que lhe contou o Castelinho1, com quem jantou há dias, acerca da intensidade e polivalência aqui da repressão política a cargo simultaneamente de diversos organismos, que agem por conta própria, cada um dispondo de sua gente e actuando por sua iniciativa.
[...]
Voltando ao Brasil, falei-lhe da relação essencialmente freudiana que ainda hoje liga - ou separa? - o Brasil e Portugal. Quem teimar em encarar este país com o olhar peregrino do portuga, e não perceber a ambiguidade de sentimentos que o brasileiro nutre para connosco, arrisca-se a cometer grossa asneira e a nada entender desta terra e desta gente.
Na verdade, nada mais ilusório do que partir do princípio de que a matriz lusíada, por si só, será suficiente para preservar os laços da tão apregoada comunidade luso-brasileira.
[...]
O embaixador limitou-se a ouvir-me e apenas citou, como prova do contrário, dois exemplos: o caso do Estado de São Paulo2 e a proliferação de clubes Eça de Queirós disseminados por todo o Brasil. «Veja só o imenso capital de simpatia que isso representa para connosco se o soubermos aproveitar com um mínimo de inteligência.»
Levantou-se — já não sei que horas eram... e quantos cafés havíamos ingurgitado — e com um sorriso paternal, pousando-me a mão no ombro: «Deixe lá, homem, não se preocupe, não seja tão pessimista, ainda há por aí muito caturra que gosta de nós.»
Marcello Duarte Mathias
© D. Quixote 2010
1.Carlos Castelo Branco, mais conhecido por Castelinho, ao tempo influente editorialista do Jornal do Brasil.
2. Nessa altura, o Estado de São Paulo um dos jornais mais prestigiados, inseria em substituição das partes censuradas, consoante a maior ou menor extensão das mesmas, extractos de Os Lusíadas, assinalando assim os cortes de que era objecto.
Foto: Francisco Silva Fernandes