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Os nomes das coisas
A cozinheira – que veio com a casa onde estamos este Agosto, ganhou na televisão um concurso da sua arte, recusara por razões pessoais meter-se em empreendimentos comercias de grande restauração e trabalha para famílias de Cascais e amigos delas – tinha-nos feito já uma vez farófias (îles flottantes dizem a minha mulher e a minha cunhada, colocando as da cozinheira premiada muito alto na sua experiência francesa de sobremesas) e eu pedira-as outra vez para o jantar de ontem.
Vizinha de mesa de quem gosto há quase meio século, tem geralmente conversa hilariante, é bom garfo e óptimo copo (de bons tintos) chamou às farófias nuvens porque assim aprendera em pequena dos manos mais velhos. De resto toda a gente lá em casa, senhores, senhoras, criados e criadas, dizia nuvem e para ela tal era o nome da coisa.
Ela é do Norte eu do Sul de Portugal e o doce em questão, à primeira vista da minha ignorância, tanto poderia ter vindo de serralhos muçulmanos quanto poderia ter saído de conventos do catolicismo de Trento. (Tem em todo o caso característica rara: a grande maioria dos doces de ovos usam gemas, aproveitadas do fabrico de vinhos que precisam das claras. As farófias usam claras em castelo; os bolos mais conhecidos de de Bordéus, terra dos melhores vinhos tintos jamais feitos são os canneletscozinhados com gemas de ovos, cujas claras ajudaram a criar nectares sublimes e a boa Mariana Alcoforado que os franceses conhecem por la religieuse portugaise há de se ter consolado com trouxas de ovos – se realmente existiu que os estudiosos não deixam nada quieto e há quem pretenda que as suas famosas cartas foram escritas por um homem).
O resto da mesa falava de coisas diferentes – greve, mundo (Mundo, mundo, vasto mundo/Se eu me chamasse Raimundo/Seria uma rima e não uma solução escreveu Carlos Drummond de Andrade e continuamos a ver hoje diante de nós mais rimas do que soluções) férias em outros lugares, maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices, trocavam-se os epigramas e os calembourgs – e eu não quis interromper-lhes o fim do jantar com farófias.
Além disso as diferenças entre o Norte e o Sul são fundas e podem levar a proclamações extremas. Amigo tripeiro assistia a jogo de futebol entre Salgueiros e Boavista e o árbitro, que era de Lisboa, tomou decisão desagradável para uma das claques que começou a insultá-lo: «Ah mouro, se num fossemos nós inda andabas de lençol à cabeça!». Amigo alentejano sustentava que Portugal era o Alentejo, porque do Tejo para cima eram beirões e os algarvios beirões faladores. Sobre a rivalidade entre alfacinhas e tripeiros, porquê Mário, porquê Cesariny, por quê, ó meu Deus, de Vasconcelos, escreveu a linha definitiva: «Lisboa, capital do Porto».
Não chegaríamos a tanto e, entretanto, como acontece em jantares, a conversa perdeu-se noutras. Foi pena porque fiquei sem saber qual a guloseima a que ela, desde pequena, chamava pegamócolo porque era assim que os manos diziam lá em casa.