Quarta-feira, 7 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

max weber 6

Max Weber imagem aqui

 

José Cutileiro

 

As coisas são como são

 

Há uns vinte anos, em Princeton, li no jornal de um escândalo em Wall Street, pequeno por padrões a que a ganância, nesta época de financeiros desregulados e sindicatos enfraquecidos, nos tem levado a adoptar mas suficiente para entreter leitores do New York Times. Homem importante e tido por super honesto daquela praça financeira fora parar à cadeia, culpado do delito de informação privilegiada. Até aqui nada de especial mas li a seguir que o pai dele, urologista reformado com mais de 80 anos, a quem o filho informara e assim pudera vender a tempo a poupança de uma vida inteira e evitar a ruína, fora também condenado. E aí o caso mudou de figura porque o imaginei, leitora, em Portugal.

 

Quem atiraria a primeira pedra ao filho que salvara o pai? Quem acharia que ele se deveria ter submetido às obrigações de uma moral universalista que trata igualmente, segundo regras gerais aplicadas a todos, o filho predilecto da leitora e os ciganos que devem com certeza ter roubado a trotinete eléctrica da filha do vizinho da sua mulher a dias? Quem o condenaria em tribunal? E, se fosse mesmo condenado, quantos tratariam de arranjar maneira de lhe encurtar a pena ou até de o amnistiar?

 

Na Idade Média, desenvolveu-se na ponta noroeste da Eurásia sistema de regras de convivência entre quem tinha a terra e quem a trabalhava ou tinha misteres correlativos a que se chamou feudalismo, que foi ensinando a toda a gente como se comportarem uns com os outros e irem vivendo em paz, sobreviveu às matanças das grandes guerras religiosas europeias e chegou ao nosso tempo sob a forma de democracias parlamentares e de monarquias que reinam mas não governam. Entretanto, fiéis ofendidos não só por alguns dogmas da Igreja Católica mas também pela depravação do Vaticano (em festa dada ao papa Alexandre Borgia, cinquenta cortesãs dançaram primeiro vestidas, depois nuas, apanhando no fim - com as vaginas - castanhas do chão de mármore), com Lutero e Calvino à frente, reformaram o cristianismo. Os fieis passaram a ler a Bíblia e a falar directamente com Deus. A moralidade tornou-se ingrediente indispensável da salvação, e integrou o progresso material. No começo do século XX, o sábio alemão Max Weber publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo que pareceu fazer sentido a muitos, enquanto este florescia, primeiro na ponta noroeste da Europa, depois nos Estados Unidos – e hoje no mundo inteiro, China à cabeça.

 

A ponta sudoeste da Europa onde nós estamos, não conheceu tais vivências. Enquanto a norte, em princípio, se acredita em estranho que nos fale e o poder que haja é legítimo, no sul desconfia-se do estranho e o poder que haja nunca é tão legítimo quanto isso. Com União Europeia ou sem ela, levará muito tempo e muitas dôres de cabeça legislativas acertar as peças que fechem este puzzle.

 

Entretanto, o afilhado da sobrinha do irmão do presidente da câmara que fez fornecimentos sem concurso pode continuar a dormir em sossego.

 

 

publicado por VF às 09:00
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