Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Davos, Suíça

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Ricos e pobres no mundo inteiro

 

 

 

Quando eu era antropologista praticante publiquei um livro em inglês, sisudo como o título sugeria: A Portuguese Rural Society. Estávamos em 1971 e eu pensara poder inventar nome menos aborrecido para lhe chamar mas quando já havia provas revistas, as fotografias do Mano João e do meu chorado Gérard tinham sido escolhidas, tudo pronto para a feitura física dos volumes da edição, eu não encontrara ainda nome que armasse ao pingarelho quantum satis. No meu gabinete, nos escritórios da Oxford University Press, na oficina da tipografia escolhida para a impressão, o nome continuava a ser o da tese de doutoramento na qual o livro se baseara.

 

A certa altura ocorrera-me chamar-lhe Before the Revolution (explicando no prefácio que, apesar do ambiente e das condições de vida daquelas aldeias tal poder sugerir a algumas cabeças jovens e entusiásticas da burguesia urbana, não iria haver revolução nenhuma) mas desisti por me parecer pretensioso (três anos depois teria ajudado às vendas, mas fosse lá alguém saber). Em última tentativa, passei um dia inteiro numa pequena biblioteca da Universidade com uma “Concordance” de Shakespeare, a ver se havia qualquer verso, dito, frase do Bardo que incluísse as palavras peasant ou peasants e me desse de bandeja o título de que eu precisava. Qual o quê: no tempo de Shakespeare, bem antes de ilusões sobre as virtudes e belezas dos camponeses terem animado almas românticas (e, mais tarde, de pungências sobre o seu sofrimento terem animado almas neo-realistas – No impressionismo, pinta-se o que se vê; no expressionismo pinta-se o que se sente; no neo-realismo pinta-se o que se ouve contou-me o Luís de Sousa que já não sei que professor ensinava por essa altura numa das universidades de Londres), não se escrevia nada de simpático sobre peasants, gente rude, sem maneiras nem conversa, mais própria para se roçar por bestas do que para convívios humanos. Vão tal esforço derradeiro, foi A Portuguese Rural Society que apareceu nas livrarias.

 

Depois da Revolução, que afinal sempre viera, podia por fim aparecer edição portuguesa que a Sá da Costa me propôs e a questão do título levantou-se de novo. Não me lembro se por sugestão minha, ou do João Sá da Costa ou da mulher dele, Ricos e Pobres no Alentejo foi escolhido e (salvo o Iá, Deus lhe tenha a alma em descanso, que com sentido moral exigente me disse, contristado, achar o título demagógico) toda a gente achou bem: o Alentejo tinha fama de grandes diferenças – lavrador abastado dissera um dia de trabalhador despedido que lhe queimara a seara: “Custou-lhe mais o fósforo do que a mim o trigo”.

 

Eram outros tempos e temos a mania das grandezas. Números divulgados este mês mostram que 82% da riqueza mundial gerada o ano passado couberam a 1% dos habitantes, enquanto os 50% mais pobres - 3,6 mil milhões de pessoas - não viram qualquer melhoria. As fortunas de 8 homens somam o mesmo que a totalidade dos bens desses 3,6 mil milhões.

 

 

 

 

publicado por VF às 09:00
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