Sala de Actos do Colégio do Espírito Santo, Évora
Aldeia da roupa branca
Amiga do coração, voltando de sessão solene universitária, passada algures em sala bonita na província deste maravilhoso país que tão generosamente me acolhe no seu seio – assim escreveria o meu chorado A.B. Kotter, da Várzea de Colares - saíra dela tão bem impressionada que me disse “[H]oje senti-me muito feliz e orgulhosa de Portugal”.
Conto isto aqui à leitora metendo A.B. Kotter pelo meio porque há muitas maneiras de se ser do país de onde se é e há também diferenças marcadas de país para país. Num dos Diários do Marcello Mathias, não me lembro qual deles e é de memória que arrisco, Marcello está de visita a uma catedral inglesa (Salisbury?) quando o espaço da igreja e inscrições várias nas suas paredes, algumas sobre mortos pela Pátria em guerras contra estrangeiros, o levam de repente a perceber que ser inglês is a full time job.
Ser português nem sempre parece tal. Nós somos menos intensos; dá-nos a coisa nalguns dias, noutros não tanto. Por exemplo, na derrocada de honra e de bom senso que, desde a noite do passado dia 4, no rescaldo das eleições legislativas, alguns insistem em nos apresentar como construção do futuro – de um futuro cheio de amanhãs que cantam – é só em oásis de tempo ou de espaço que muita gente portuguesa se poderá agora sentir bem com Portugal.
O avesso – como na roupa – da apregoada brandura dos nossos costumes, refractária a guerras civis, revoluções e motins por tudo e por nada, que, sem alarde ou vanglória, cometeu o maior feito histórico do país desde 25 de Abril de 1974 – a absorção pacífica de centenas de milhares de retornados de África, muitos dos quais nunca cá tinham posto pé - revela-se no bom modo com que o país sustentou quatro anos de austeridade sem tugir nem mugir. É o reverso da medalha.
Ora longos períodos de apatia cívica definham a fibra do respeito por si próprio, da mesma maneira que, mutatis mutandis, longos períodos de imobilidade física vão definhando as fibras do tecido muscular e chegam, por vezes, a fazer desaparecer os músculos. Assim enfraquecida, incapaz de perceber bem quem é, atordoada pelo rumor da vida a dar socos na porta cada vez mais ensurdecedor de há século e meio para cá, desde que telégrafo, e depois telefone, telefonia, televisão, internet, redes sociais e o mais que virá, se verá, ouvirá e sentirá, mudaram de alto abaixo a nossa residência na Terra – nos foram dilacerando da tribo sem nos armar em cidadãos do mundo – a gente tenta agarrar-se à aldeia, enterrar a cabeça como as avestruzes. Na aldeia de cada um às vezes tudo parece possível: o novo primeiro ministro do Canadá vai deixar de bombardear o Estado Islâmico; os trabalhistas britânicos escolheram Corbyn para chefe; em Portugal uma suposta ‘esquerda unida’, apesar de diferenças de crença que tornam tal união impossível, entende que o povo a quer para governo, apesar dos resultados do voto de 4 de Outubro não indicarem isso de todo. Terá a nossa aldeia perdido a vergonha?