Retornados
foto de Rui Ochôa
O fim ou o começo?
Valha-nos o Papa Francisco com manto de bondade universal que não tinha ombros a sustentá-lo desde a morte de Nelson Mandela. Muito de vez em quando, há homens e mulheres assim, Estrelas do Norte que levam tempo a iluminar – Principal dos jesuítas na Argentina dos Generais; comunista a britar pedra na Africa do Sul do Apartheid – mas que, depois de firmada a luz, nada e ninguém apaga.
Bem precisamos deles agora. Não só por causa do detestável Victor Orban e demagogos quejandos, vindos do lado de lá da Cortina de Ferro, deitada a baixo há 26 anos mas cujo mal levará muito mais tempo a desfazer do que se imaginou: gerações em que filhos desconfiaram de pais, pais desconfiaram de filhos, vizinhos de vizinhos, polícia dos outros cidadãos e os outros cidadãos da polícia, fizeram sumir a confiança e, como dizia a cantiga: sem confiança, não pode haver felicidade. Mas também por causa de demagogos do lado de cá, sobretudo em França que se arrisca a eleger Marine Le Pen presidente da república daqui a dois anos. Muitos franceses e amigos da França, criados nos mitos de “la Republique” e da resistência antinazi, acham impossível mas receio que se enganem. Não se deram conta de que a França de François Hollande é muito mais parecida com a França do Marechal Pétain do que a Alemanha de Angela Merkel é parecida com a Alemanha de Adolf Hitler, Volkswagen e tudo. Na União Europeia, a Alemanha é hoje o bastião mais sólido contra tentações ditatoriais e tentativas de abuso dos direitos civis e políticos das pessoas. (A virtuosos profissionais como os suecos e, em certa medida, os ingleses, falta o travão brutal e salutar que a memória histórica faz disparar nos alemães sempre que poem o pé em ramo verde).
A Europa Comunitária, inventada a seguir à guerra de 39-45 por Jean Monet & Cia., na esteira de muitos visionários, não herdou tradições de Império. Pelo contrário: entalada entre o Comintern e o excepcionalismo americano tentou desfazer-se das que alguns estados membros albergavam. Defendida do papão Estaline pelo arsenal militar americano e adubada por dólares do Plano Marshall, cresceu até ser União Europeia, espécie de gigantesca ONG que, entre nostalgia, culpa, cobardia e inveja, não encontrou ainda o seu lugar no mundo.
A catadupa de refugiados de hoje poderia acordá-la dessa espécie de sonambulismo mas, em quase todos os nossos países, políticos e comentadores ponderam as boas razões de Orban - disfarçadas de neofascismo, explicam, por ele querer, democraticamente, agradar aos eleitores - e escandalizam-se com excessos do Bem, esquecidos de que o Bem é sempre escandaloso. Assim não iremos lá.
Os factos são simples: a Europa precisa de imigrantes como de pão para a boca, e eles querem vir. Para os aproveitar os europeus têm de se organizar e coordenar. Parece evidente mas não o é e o tempo foge. Se nos enlearmos no medo dos mouros dos demagogos, o futuro ir-nos-á apanhando cada vez mais enfraquecidos e divididos.
Angela Merkel (Getty)
Deutschland über Alles (a bem)
Na Islândia - país com pouco mais de 300.000 habitantes que já quis candidatar-se à União Europeia e depois mudou de ideias - o governo anunciara estar pronto a receber 50 migrantes, dos milhares que este verão demandam a Europa, mas onda de indignação generosa organizou o povo on line enquanto o Diabo esfrega um olho e há lá agora 10.000 ofertas de acolhimento. Há também muitas da Noruega e, dentro da União, a Suécia, apesar de renitência vistosa da sua nova direita, vem logo a seguir à Alemanha em disponibilidade – a grande distância, devido à escala: a Alemanha é o país mais populoso da Europa; os suecos são menos do que os portugueses.
No fundo da tabela da solidariedade estão alguns dos países dantes do lado da lá da Cortina de Ferro, dando a Hungria, proverbialmente xenófoba, mais nas vistas do que os outros por ter erguido muro de arame farpado na fronteira com a Sérvia e ter vedado nos últimos dias o acesso à estação central de caminho de ferro de Budapeste. Um mar de migrantes, famílias inteiras que, uma vez na Hungria, se preparavam para apanhar comboio para a Alemanha, pronta a receber quase um milhão e a não os devolver ao país pelo qual tenham entrado na União Europeia, confrontou a polícia na praça em frente da estação. Quando escrevo (terça-feira) por lá estão ainda. Imagens fortes nas televisões de todo o mundo, espelhando o egoísmo escandaloso dos europeus (Mauriac, mais uma vez: “Não conheço a alma dos criminosos mas conheço a das pessoas sérias e é um horror”), egoísmo confortado pelos que sustentam, pimpões, que os europeus não têm obrigação de tratar de todos os males do mundo. (Creio que o primeiro a dizê-lo foi Michel Rocard). Também acho que não mas o problema não é esse. O problema é que a União Europeia não é, nem deveria ser, uma O.N.G. caritativa – é, ou deveria ser, um poder político.
Entretanto, o silêncio de Angela Merkel começava a ser ensurdecedor (pediam-lhe que mandasse na Europa mas como mandar, a seguir ao castigo da Grécia, sem evocar passo de ganso, cruzes gamadas, saudação nazi? Como ser Führer sem ser Hitler? Pediam-lhe também que mandasse nos seus mas era preciso sentir muito bem o vento para saber navegar com ele ou bolinar). Finalmente a Senhora decidiu-se, com bom coração e com boa cabeça - para além do que pareceria possível, deu à Europa a noção de que havia nesta um chefe. À evocação dos valores europeus - que explicita ou implicitamente incluem estado de direito, direitos do homem, decência cívica, solidariedade – juntou lembrança dos benefícios materiais trazidos pelos imigrantes aos países onde chegam (no caso do Velho Continente, mão de obra jovem que permita pagar pensões aos reformados).
É projecto político sine qua non para a Europa prosperar no mundo globalizado, meter respeito à Rússia, derrotar o Estado Islâmico e a sua insidiosa quinta coluna.
E para tornar a meter Montesquieu na calha. Ou Antero: “Razão, irmã do amor e da justiça”.
Europa, filha do rei de Tyr, raptada por Zeus
Irmãs da namorada de Zeus
Há anos, no Itamaraty, perguntei a diplomata brasileiro como era o Paraguai. “É assim como o México” respondeu ele “mas, como não mudam de 7 em 7 anos, roubam menos”. Era o presidente que não mudava; pouco tempo depois o ditador Stroessner foi corrido – para exílio no Brasil – pelo que hão de ter passado a roubar mais. Mas o pior não é isso: há mês e meio, miúda de dez anos, grávida depois de violada pelo padrasto, foi levada ao hospital pela mãe pedindo que a fizessem abortar. As autoridades, espaldeadas pela igreja católica, disseram que não (prendendo a mãe como cúmplice). Em vários outros países da América Latina, as gravidezes juvenis também são muito mais frequentes do que na Europa e mais difíceis de prevenir por uma mistura de ignorância, machismo e doutrina católica.
Passando para outra das irmãs da namorada de Zeus e para outros desmandos: na sexta-feira passada, federações nacionais de futebol, sobretudo de África, votaram sem hesitação para renovar o mandato de Sepp Blatter à frente da FIFA, apesar de indignação de muitos entendidos e de outras federações. (Michel Platini, presidente da europeia, exortou publicamente Blatter a não se recandidatar). Como a investigação de crimes graves veio do FBI, esboça-se movimento para caracterizar o caso como expressão de imperialismo americano atrabiliário contra costumes, diferentes mas honrados, de gente menos rica e menos forte por esse mundo fora.
Um que logo se manifestou nesse sentido, alto e bom som, foi Vladimir Putin que, de súcia com o alto clero da igreja ortodoxa, continua a restringir cada vez mais as liberdades na Rússia – no rosário de repressões: há dias fundações que recebam dinheiro do estrangeiro foram consideradas inimigas da nação e do estado – para consolidar a sua cleptocracia; deverá saber ou suspeitar de trafulhices na escolha do seu país para acolher mundial de futebol e verá também oportunidade de reforçar a sua excelente imagem interna, fomentada por controle quase total de jornais, telefonias e televisões e por serviço de segurança levado ao nível do KGB.
O que me levou a outra irmã da Europa, a Ásia, de que a Rússia também faz parte embora não esgote, muito longe disso, as malevolências dela. Igualmente em notícias dos últimos dias, encontramos emigrantes, refugiados de tentativas de genocídio, postos à deriva no alto-mar com promessas de nova vida sem que países que os poderiam ajudar mexam um dedo para tal fazer, da Tailândia à Austrália (esta já na Oceânia, última irmã de Europa). Assim escancarada, a indiferença pelo próximo nesses países não encontra termos de comparação na Europa de hoje. Entretanto, sobre a terra e sobre o mar dessa parte do mundo, acena a presença totalitária e impiedosa da China.
No começo e no fim do dia, lembremo-nos da sorte que tivemos em nos ter calhado a filha do Rei de Tyr, raptada por Zeus (disfarçado de touro para escapar à vigilância ciumenta da mulher – o Mediterrâneo mudou pouco).
Imagem aqui
Oh Senhor, é bom ser burro mas não tanto…
Assim desabafava, antes de nos dar zero, o major David dos Santos que tinha feito a Guerra de 14 na Flandres e nos ensinava matemática na Valsassina quando um de nós, chamado ao quadro, era incapaz de resolver o problema posto.
Gostava de ser um major David dos Santos gigante que tivesse por alunos os chefes políticos europeus de hoje e os chamasse ao quadro. Os problemas por resolver começam a ser demais e é incómodo em democracia que, como somos nós a escolher ou não quem manda em nós, ao fim de anos de mais do mesmo, a culpa é nossa também.
Deixo para o fim os naufragados do Mediterrâneo e começo pelo menos desculpável dos desmandos da turma de irresponsáveis: a austeridade, aplicada aos povos do sul da Europa (e aos irlandeses, sulistas deshonorários) depois da crise financeira de 2008. No clima de desregulação herdado de Reagan e de Thatcher, ganância financeira - desculpabilizada de vez pelo fim de medo da União Soviética - fez estalar a crise nos Estados Unidos, causando lá estragos inéditos desde 1929 pelo nome de crise das subprimes, e passou depois à Europa cujos governos, sob égide incontestada da Alemanha, a trataram com inépcia tal que passou a ser crise de dívidas soberanas. Inspirados por estudos entretanto desqualificados, contra teoria económica e bom-senso político elementar, julgaram que cortar salários e aumentar impostos iria estimular a economia. A história dessa austeridade é nossa conhecida: dívida maior agora do que antes do tratamento, crescimento nulo ou mínimo, desemprego desmoralizante, fim provável do projecto de União que reforçaria prosperidade e segurança europeias (foi bilhete de ida e volta…). Os Estados Unidos reagiram ao contrário e saíram da crise, nós persistimos no erro, com o ministro das finanças alemão a reger a banda, como se vivêssemos no melhor dos mundos possíveis sem ninguém dizer que o rei vai nu, enquanto demónios antigos regressam a galope - os do Sul não trabalham; os alemães são nazis; estrangeiros é má gente que nos rouba empregos e nos viola as filhas. (Certo: o paraíso não é deste mundo – por exemplo, nas últimas semanas moçambicanos foram assassinados na África do Sul, só por não serem de lá. Mas, para quem se pretende modelo social e pilar da protecção dos direitos humanos, é duro).
Como se não bastasse, a Europa, embora com força para pôr Google em tribunal (o que não tem qualquer dos estados que a constituem) não seria capaz de se defender sem ajuda dos Estados Unidos de quem a atacasse militarmente e não tem, até hoje, política externa que metesse respeito ao mundo e tornasse tal ataque menos provável.
E os mortos no Mediterrâneo – agora à razão de centenas por dia? Khadafi tinha-nos prevenido: sem ele a Líbia seria o caos - mas Sarkozy e Cameron quiseram dar uma de homem e deixaram-no linchar. E agora? Abrir os portos europeus a toda a gente? Invadir a Líbia e fechar os portos?
Há de vir o Diabo e de escolher.