Apagaste-la candeia
Que estava no velador;
Agora vai-te deitar,
Às escuras, meu amor.
A candeia, por estar alta,
Não deixa de alumiar;
O amor, por estar longe,
Não deixa de não lembrar. *
[...] O archote, o candelabro e a vela, ou brandão, iluminaram, sob as abóbadas dos castelos e solares da Meia-Idade, as cenas familiares, as seroadas e os tumultuosos festins de outrora. Paralelamente, nos míseros casebres dos mesteirais e servos da gleba, se alumiavam estes com grosseiras alâmpadas de ferro ou escudelas de barro embicadas, temperadas de azeite, sebo e combustíveis, obtidos pela fusão de gorduras animais, no interior do país, e de peixe, nas populações da beira-mar. Nalguns pontos mais desconversáveis de cerros nortenhos e em barracas de pescadores da orla marítima, observam-se ambos estes arcaicos processos. A estas lâmpadas, das quais Rocha Peixoto se ocupou**, dá o insigne etnógrafo mui antiga filiação, cotejando-as com exemplares encontrados em escavações e necrópoles de extintas civilizações mediterrâneas. Com o andar do tempo veio a adaptação do gancho e da argola, para suspensão, aos recipientes luminosos. Daqui nasceu a candeia, o mais generalizado de todos os utensílios de iluminação, e o candeeiro de metal, de argola, para poiso ou suspensão. A candeia, a tão simpática candeia, não é mais do que um avatar da velha lucerna romana. Larga e carinhosa referência lhe é feita em muitos passos do pátrio folclore; ela é a companheira, a amiga, a auxiliar do cavador, do pescador, do artífice, do pastor e até do mendigo a quem almas caridosas deram poisada nocturna nalguma arribana ou dependência de moradia pobre. Quem há aí que nunca repousasse a vista na sua luz suave, essa luz que, no dizer da popularíssima adivinha — é do tamanho duma abelha e enche a casa até à telha?
Cardoso Marta
in Vida e Arte do Povo Português pp.162-163
Secretariado da Propaganda Nacional, Edição da Secção de Propaganda e Recepção da Comissão Nacional dos Centenários, Lisboa, 1940
Notas:
* quadras populares
**Illuminação Popular, in rev. "Portugália", fasc I do tomo II, Porto, 1905
Imagem: desenho de Paulo Ferreira (1940)
Artigo "Os Etnógrafos Locais e o Secretariado de Propaganda Nacional (um estudo de caso)" aqui