ENONE
Senhora, que fazeis? E que mortal pesar
contra aquilo que sois vos vem hoje animar?
FEDRA
Se Vénus assim quer, da triste estirpe minha
sou última a morrer, mais mísera e mesquinha.
ENONE
Mas amais?
FEDRA
É do amor que tenho tais furores.
ENONE
E por quem?
FEDRA
Vais ouvir um cúmulo de horrores.
Amo... E tremo de frio a nome assim fatal.
Amo...
ENONE
Quem?
FEDRA
Da Amazona o filho, sabes qual,
o príncipe a quem sou, tanto há, de aversão cheia?
ENONE
Hipólito! Ó Céus!
FEDRA
És tu quem o nomeia.
ENONE
Gela-me o sangue, ó Céus!, nas veias já não passa.
Ó desespero! Ó crime! Ó deplorável raça!
Ó viagem de azar! Ó margens lamentosas,
preciso era chegar-te às costas perigosas?
FEDRA
Vem de mais longe o mal. Quando ao filho de Egeu
pouco havia me unira a lei do himeneu,
e tudo em paz feliz dir-se-ia me ficou,
meu soberbo inimigo Atenas me mostrou.
Vi-o, corei, perdi a cor e de repente:
e a turvação subiu em mim perdidamente;
meus olhos já sem ver, eu sem falar poder;
todo o corpo senti como transido a arder.
Vénus reconheci e seu fogo implacável,
ao sangue que ela odiar tormento inevitável.
Assíduos votos fiz, cuidei que os desviava:
Um templo a ela ergui e eu mesma o enfeitava;
com vítimas em volta eu mesma guarnecida,
nos seus flancos busquei minha razão perdida,
para amor sem ter cura uma incapaz poção!
E a minha mão no altar queimou incenso em vão:
Quando a Deusa implorando a boca eu já movia,
Hipólito adorava; e ele era quem eu via
mesmo ao pé desse altar onde eu turibulava
e sem ousar nomeá-lo a um Deus tudo ofertava.
E sempre o evitei. Triste miséria, ai!,
revê-lo o meu olhar nos traços de seu pai.
Contra mim mesma enfim me pude decidir:
E a mim me encorajei a sempre o perseguir.
Inimigo a banir da idolatria à custa,
o desgosto afectei de uma madrasta injusta;
seu exílio exigi e meus gritos eternos
o arrancaram do seio e dos braços paternos.
E eu respirava, Enone, e desde a sua ausência,
dias menos febris corriam na inocência.
Submetida a Teseu, mas escondendo os lutos,
do himeneu fatal eu cultivava os frutos.
Vãs precauções! Cruéis em mim destino e vida!
Por meu próprio marido a Trezénia trazida,
o inimigo revi que eu soubera afastar:
Ficam-me em carne viva as feridas a sangrar,
Não é mais um ardor que em minhas veias erra.
É Vénus, ela só, que a sua presa aferra.
Concebi por meu crime um bem justo terror;
odiei vida e chama e vi-as com horror.
Morrendo eu quis cuidar de ter glória futura,
quis o dia livrar de flama tão escura:
mas choro e insistência em ti ver não podendo,
tudo te confessei, e já não me arrependo,
desde que desta morte acates a chegada
e não me aflijas mais nem me censures nada,
e que em socorro vão deixes de convocar
um resto de calor prestes a se exalar.
Fedra de Jean Racine ( Acto I - Cena III )
tradução de Vasco Graça Moura
© Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, 2005
Fedra encenada por Patrice Chéreau em DVD