Quarta-feira, 30 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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 Caravaggio (1595)

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Os cotovelos da Europa

 

 

… eram a Inglaterra e a Itália, decidiu o nosso Fernando Pessoa no começo do seu único livro de versos publicado em vida, « Mensagem », que apresentou a concurso organizado pelo Secretariado de Propaganda Nacional do governo do Dr. Salazar onde lhe deram menção honrosa (o 1° Prémio foi para « Romaria », do padre Vasco - do apelido esqueci-me - de quem toda a gente se esqueceu também). Um dos cotovelos era a Inglaterra, o outro era a Itália. Com tais cotovelos no estado em que estão hoje a Europa arriscar-se-ia a cair de caras o que seria mau para nós porque para o compincha de Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e mais rapaziada (não havia meninas) o rosto da Europa era Portugal.

 

A Inglaterra foi sempre pedra no sapato da Europa e o Brexit, quando veio, não espantou ninguém. Por outro lado, como a prosperidade dos ilhéus depende de relações mutuamente vantajosas com o resto da União, há cada vez mais gente a querer que, por fim, não haja saída ou que haja saída tão parecida com não a ter havido que ninguém dê por isso (que não se sinta diferença no tinir dos dobrões no bolso, diria o meu amigo Henrique). Se Putin continuar, sempre, a meter medo e Trump continuar a meter, às vezes, medo maior ainda, talvez a prudência leve a resultado que nos enriqueça a todos em vez de nos empobrecer.

 

O susto agora não vem desse cotovelo. Vem do outro, do italiano. A Itália, um dos seis países fundadores do que é agora a União Europeia (mas o único cujos chefes não podiam voltar de automóvel para dormirem em casa depois de jantarem todos em Bruxelas, por ser longe de mais), país rico com manhas de país pobre onde a vergonha é opcional, tem a maioria dos eleitores contra a Europa pela primeira vez desde as Comunidades Europeias. A leitora saberá de peripécias recentes: eleições puseram no topo A Liga, partido de direita dura, racista, xenófoba, nostálgica de Mussolini e o 5 Estrelas, partido meio virado para o infinito meio virado para bardamerda, ramalhete de fantasias irresponsáveis italianas que recebeu ainda mais votos do que o outro. Nada os une salvo ódio à Europa, ao euro, às elites políticas tradicionais do país, de Berlusconi a Renzi, e à estrangeirada – pretos e alemães à cabeça. O Presidente da República encarregou de formar governo nulidade aldrabona por eles indicada mas recusou-se a aceitar para ministro das finanças economista que advogara saída do euro. Impasse: a nulidade retirou-se, os dois partidos bateram a porta, o Presidente encarregou tecnocrata (tão amigo da austeridade que lhe chamam O Tesouras) para formar governo de gestão e daqui a poucos meses haverá novas eleições.

 

Bruxelas suspirou de alívio; Macron saudou a coragem do Presidente. Eu tenho dúvidas. No governo, a coligação depressa daria ditos por não ditos, exporia sua incompetência e se desfaria. Assim ganhou capital de queixa populista e será mais difícil de combater no futuro.

 

“Ai esta Europa, esta Europa…” diria a Avó Berta.

 

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Quarta-feira, 23 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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Oscar Wilde por Max Beerbohm

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Novos e velhos

 

 

Janus Onyszkiewicz, dissidente polaco virado ministro da defesa no intervalo feliz  entre o fim do comunismo e o regime beato e bruto que está a agarrar a Polónia e a tentar tornar a fazer dela uma penitenciária, disse-me que, nisto de novos e velhos, decidira há muito que todos os que tivessem a sua idade ou menos eram novos e todos os que tivessem mais idade do que ele eram velhos. (Velhos ou velhas; novos ou novas. Para não tornar este escrito uma sucessão de solavancos, tal fica subentendido para todo o texto – salvo evidentemente quando não faça sentido nenhum). À volta da meia-idade que ele tinha na altura esta partilha ajuda a genica de um homem. Uns anos mais tarde, se a cabeça continuar viva, faz dele um velho espirituoso. Mais uns anos ainda e é disparate a evitar por quem não goste que o julguem senil. (Seja como for, há casos impossíveis. Oscar Wilde dizia de Max Beerbohm, escritor e desenhador seu contemporâneo em Oxford, tinham os dois vinte anos, que os Deuses  haviam contemplado Max com ‘o dom da velhice perpétua’, ‘the gift of perpetual old age).

 

Conheci senhor português de mais de 70 anos que chorou de emoção perante tanto progresso científico e técnico quando o sputnik de Yuri Gagarin deu lá em cima um par de voltas à terra e toda a gente cá em baixo soube disso in real time. E um bom meio milénio antes, o navegador Juan Ponce de Leon que, no dia de S. João, morreu à vista de terra a que nenhum europeu chegara antes e que hoje chamamos Florida, entrou na história pelas palavras que então pronunciou: « Gracias te seam mi San Juan bendito, que he mirado algo nuevo ! »

 

Se deste lado da curva de Gauss saltitam velhos vivos da costa, do outro lado dela jazem a espreguiçar-se novos com alma de velho – que podem revelar-se de maneira divertida. Há anos sem fim, estava eu a jantar num restaurante de caça em Hampstead com a minha mulher e casal amigo, todos nós ainda novos (todos portugueses), e falou-se do Brasil, talvez por eu ter estado dias antes em festa londrina de brasileiros e portugueses da qual guardara - e guardo ainda – duas sentenças lapidares. Primeira: uma brasileira disse-me “Vocês si detestam!” (‘Vocês’ eram os portugueses; não só os que estavam ali, todos, em geral). Segunda: tendo eu dito de alguém “É o último dos imbecis”, brasileiro ao meu lado sugeriu “Não diga último; diga penúltimo. Deixe sempre lugar para um cara.” Rimo-nos todos à mesa quando contei dessa festa, o meu amigo sentiu pulsão interior e exclamou: “Gostava de ir ao Brasil!”. Depois parou, calou-se um instante, reflectiu e acrescentou “Não. O que eu gostava era de já ter ido e de ter gostado.”

 

Achei a formulação excelente, contei-a a várias pessoas e agora, meio século depois, de repente, ocorre-me que é sinal de velhice,  confortada por vida bem vivida, mas velhice. Emoção simétrica à de Fernando Pessoa quando se lembra de momento bom da infância e acrescenta: “Era eu feliz então? Não sei. Fui-o outrora agora.”

 

 

 

 

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Quarta-feira, 16 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Balthus - La partie de cartes, 1948- 1950, Thyssen

 Balthus, 1948/50

 

 

 

José Cutileiro

 

 

A nudez forte da verdade

 

 

                 A verdade, Zé, é uma água muito quente onde eu de vez em quando meto um dedo para ver se ainda queima – e ainda!                                               Luís de Sttau Monteiro, em conversa, circa 1960.

 

« Conhecemos bem esse Portugal dos favores, cunhas e notas por debaixo da mesa. Era prática ‘institucional’ que todos condenavam indignadamente mas a que todos recorriam alegremente. Mudar o statu quo de uma penada está a ser dificil » escreve-me sobre o Bloco da semana passada leitora fiel e avisada que usa o pretérito para as malfeitorias e o presente para o começo da mudança.

 

Oxalá tenha razão nos tempos dos verbos. Que neste ano da Graça de 2018 haja começado outro Grande Salto em Frente lusitano, mais de meio milénio depois do primeiro calar tudo o que a musa antiga cantava. Oxalá - mas não estou seguro. Costumes antigos, como burros velhos, não aprendem línguas. E algures entre o roteiro de Álvaro Velho relatando a viagem de Vasco da Gama à Índia (1498) e a carta de Fradique Mendes à madrinha relatando chegada a Lisboa, a Santa Apolónia e de lá para o Hotel Bragança, numa noite de temporal (1885), dera-se grande mudança. Com o criado inglês e a bagagem já no hotel, Fradique confronta o cocheiro que, debaixo de chuva torrencial e sem outro fiacre à vista, antes de começar a corrida impusera preço exorbitante.

 

« Com que então são três mil reis ?’

‘Eu disse aquilo por dizer. Não tinha conhecido o Senhor D. Fradique. Para o Senhor D. Fradique é o que o Senhor D. Fradique quiser.’

Dei uma libra àquele bandido. »

 

A indignação contra a corrupção que borbulha agora é circunstancial e raramente vem do fundo da alma. A retórica das manifestações de desagravo é oportunista. Sem protestantes e sem judeus desde o Concílio de Trento, nós, portugueses, não temos medo essencial de Deus (não o confrontamos directamente; contamos com os Santos que são os Senhores Doutores do Céu  para nos defenderem), temos medo acessório da polícia – e os mais ginasticados viram a casaca enquanto o Diabo esfrega um olho. A seguir à convenção de Évora-Monte, a Câmara de Monsaraz, miguelista durante toda a guerra civil, escreveu a D. Maria II protestando amor e fidelidade « que o jugo do usurpador há muito fizera calar em seus peitos fiéis». Vamos ver agora muito disso.

 

Vão ser tempos difíceis. Ou desistimos de morigerar o país, rapaziada esperta passará a desembaraçar-se como no sul de Itália ou na Córsega, controle e riqueza serão partilhados à força com bandidos mafiosos e não haverá turismo ou Europa que nos salve dessas servidões, o que seria uma pena. Ou apesar de tudo como Camus talvez tivesse razão e haja no homem mais de bom do que de mau, insistiremos em querer passar pela porta estreita, seguir pela via direita, portarmo-nos como gente de bem e antes de chegarmos à decência colectiva viveremos tempos dolorosos. A nudez forte da verdade ficará às vezes coberta de nódoas negras.

                                                              

 

 

 

 

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Quarta-feira, 9 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

corruption 2

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

« Onde é que é o guichet da corrupção ? »

 

 

Assim costumava perguntar há muitos anos, tio da Vera indignado por não ter tido ainda direito a nenhuma. Era uma reacção moderada e divertida, bem diferente da indignação tonitruante que viceja agora, abafando a reprovação genuína de alguma gente de bem e disfarçando a inveja (cruzes, canhoto!) que medra no peito fiel de muito patriota.

 

Nesta matéria, às vezes, há casos bicudos. Quando eu vivia em Princeton, New Jersey, soube pelo jornal diário o seguinte. Figura importante de Wall Street fora apanhada por investigação oficial num caso de informação priveligiada, levada a tribunal e condenada a alguns anos de cadeia. Beneficiado com a informação indevidamente transmitida contava-se seu próprio pai, médico reformado (se bem me lembro, nefrologista) com mais de oitenta anos que pudera vender as acções da sua poupança antes destas se desvalorizarem abruptamente - e fora também condenado. Eram judeus, tinham laços de família muito fortes (tal como acontece quase sempre em Portugal) e ocorreu-me na altura que o corretor haveria de ter sentido o que sentiria português trabalhando na Bolsa de Lisboa, apanhado em circunstâncias semelhantes. «Então uma moral universalista, que coloca à mesma distância de mim o último dos estranhos e o primeiro dos próximos, vai-me obrigar a deixar na miséria o meu pai? E numa idade em que já nem poderia tentar sair dela? Qual é o dever de um filho: cumprir lei cega perante valores milenários e deixar o pai pelas ruas da amargura? Ou arriscar-se a ignorar essa lei e cumprir as obrigações da tribo?» Palpita-me que a escolha do hipotético corretor alfacinha seria a mesma da do homem de Wall Street.

 

Impôr de repente leis gerais universalistas a gente regida  por usos e costumes tradicionais que poem a família no coração do mundo, é sempre o cabo dos trabalhos. Todas as potências coloniais descobriram isso. Também o descobriram os liberais portugueses a seguir a 1834, quando, de Lisboa, quiseram fazer chegar o país novo, inventado por Mouzinho da Silveira, a sombrias boticas de Trás-os-Montes, a barbeiros palreiros do Algarve. (Mouzinho escrevera cercado na Cidade Invicta, e já se demitira do governo quando os liberais ganharam a guerra aos miguelistas e se meteram a mudar Portugal).

 

Quase século e meio depois, os laços entre centro e periferia - entre Estado e povo - tinham cristalizado. Quanto ao que chamamos corrupção (termo que não era usado) em Câmara Municipal alentejana que conheci bem as coisas passavam-se assim. Quando camponês, pequeno comerciante ou artífice tinha de lá ir, se o assunto fosse tratado a nível baixo a gorgeta era 25 tostões; a nível alto, 5 mil reis. Dentro do funcionalismo porque presidente e vereadores, todos da mó de cima, não constavam da tabela. Trocavam favores.

 

Havia muito menos negócios, muito menos dinheiro a circular, os ricos nasciam ricos, os pobres morriam pobres. Ao comércio e à indústria o Dr. Salazar preferia a agricultura.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 2 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Quentin Metsys - O Cambista e a sua mulher (1519)

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Deutschland, Deutschland über alles

 

 

 

Quem é o maior inimigo da União Europeia? O Reino Unido, de saída no comboio fantasma do Brexit? Itália, onde maioria dos eleitores votaram este ano em partidos que não a querem? Polónia, a submeter o poder judicial ao poder executivo? A Hungria autoritária e xenófoba de Vitor Orban?

 

Ou estará o inimigo fora de portas? Os Estados Unidos de Donald Trump com o seu ataque sistemático ao ambiente e a sua guerra comercial contra mundo? A cleptocracia de Vladimir Putin, incapaz de diversificar economia de gás e petróleo, com 110 pessoas donas de 35% da riqueza russa, a mão de ferro do Kremlin a dominar jornais, telefonias e televisões, controlando a opinião interna, e ordena piratagem informática (e um assassinato ou outro), para tentar destabilizar potências estrangeiras, grandes ou pequenas? Ou será a China, planeando a longo prazo (que já não é o que era: Keynes escreveu que a longo prazo já teremos morrido todos mas agora, a longo prazo, ainda alguns de nós por cá andarão)?

 

Ou, para espíritos seduzidos pela teoria conspirativa da história, todos estes, mancomunados uns com os outros?

 

Nada disso, leitora. O maior inimigo da União Europeia é afinal a Alemanha, que é também o mais populoso e o mais rico dos seus Estados Membros bem como, até há poucos anos, o era a Alemanha Federal – antes da reunificação havia duas Alemanhas - o único a encontrar na Europa um Ersatz de Pátria . Em 1996, em Bruxelas, coronel alemão que trabalhava comigo na UEO e fora no dia 9 de Maio a espectáculo na Grand Place para celebrar o Dia da Europa, contou-me, indignado, que só ele, a mulher e os filhos se tinham levantado quando fora tocado o Hino da Europa (4º andamento da nona sinfonia de Beethoven, sobre a Ode á Alegria de Schiller).

 

Em 1945, os europeus beligerantes estavam de rastos e a Alemanha, além disso, com quatro patas em cima (USA, URSS, Reino Unido e França) para só se levantar devagar e desarmada. Mas em 1957 já assinou o Tratado de Roma (a Itália também); laboriosa e disciplinada fora pagando a sua conta, pagamento muito facilitado porque se precisava dela forte, perante a União Soviética. Com os anos foi recuperando muitas das características de uma grande potência (e uma rara nestas: era o único dos “grandes” a esforçar-se por tratar bem os “pequenos”). Antes de se dissolver, a União Soviética consentiu na sua reunificação. Aí as coisas mudaram.

 

A “construção europeia” fora inventada na esperança de se poder viver em paz com a Alemanha depois das duas tragédias da primeira metade do século XX. Funcionou enquanto a Alemanha era devedora e estava dividida. Cofre pagador e reunificada, opõe-se a qualquer forma de mutualização da dívida. Acredita que o Norte protestante da Europa é bom e o Sul católico e ortodoxo é mau. Dívidas são pecados. Conservadores, liberais, verdes e democratas sociais acham “que a Europa está como está porque não se foi suficientemente duro com os países do Sul”. Nada bom à vista.

 

 

 

 

publicado por VF às 09:00
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