Quarta-feira, 28 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

pain_au_chocolat

pain au chocolat

 

José Cutileiro

 

 

Nova Iorque dos Pobres e Espírito de Contradição

 

 

 I

Há muitos anos chamei a Bruxelas a Nova Iorque dos pobres e dá sempre gosto ao inventor verificar que a coisa inventada existe. (Tem riscos, como tudo quanto seja levado ao excesso; Camões lembrou-o cruelmente: Torna-se o amador na coisa amada/Por virtude de muito imaginar).

 

Hoje, em minúscula clínica dessas que há agora onde a gente se sente muito melhor do que num hospital, de tal maneira que os anestesistas para nos porem a dormir precisam só da quarta parte do líquido que nos injectam nos ditos hospitais, fizeram-me pequena intervenção. O cirurgião era grego, a anestesista polaca, a enfermeira uruguaia, eu português (a minha mulher, cujo telefone lhes dei, é francesa). Belga, só talvez a recepcionista que, nos cinco minutos que passei na sala espera, desembaraçava-se em francês e no holandês que se fala aqui – 60% no país,12% em Bruxelas. Na meia hora de chá preto e pain au chocolat que passei entre acordar e ir-me embora, a conversa terá sido mais variada e divertida do que teria sido na Mãe Pátria sobre mexeriquices de colegas, amigos, parentes e os altos e baixos do Desporto Rei. À uruguaia lembrei embaixador reformado inglês encontrado em Londres na casa de amigos ingleses, há mais de meio século, que em Montevideo fora raptado pelos «Tupamaros», terroristas urbanos, todos de boas famílias e educadíssimos que o trataram sempres bem e foi libertado incólume, aprendendo, todavia uma lição: nunca acreditar em quem prometa paraíso futuro onde só se possa chegar através de inferno intermédio (foi a enfermeira que me lembrou o nome dos guerrilheiros). A anestesista, que tem vergonha do actual governo polaco, fez-me pensar em Geremek, o grande medievalista e ministro dos negócios estrangeiros polaco da Solidarnosc, a contar-me, em Varsóvia, cena entre Walesa e Ieltsin,os dois bêbados, com o russo a garantir ao polaco que deixava a Polónia juntar-se à OTAN enquanto os seus colaboradores lhe repetiam que não podia ser, e o electricista de Gdansk perguntava, do outro lado: «Quem é que manda na Rússia ? És tu ou são eles ?». E ao cirurgião, que trouxera ele mesmo o pain au chocolat e me explicara não haver razões para preocupação, disse que ele conseguira criar, no coração de Bruxelas, uma espécie de Atenas sem corrupção. (Grego nosso conhecido impressionara-nos há dias com a aventura de conseguir internar e tratar bem a sua velha e lúcida mãe num hospital privado de Antenas: só mediante gorjetas e subornos tais que me indignaram, e eu sou d’Évora, não de Oslo nem de Helsinquia. No Peloponeso, assim se vive e se acha natural viver. Viva a Nova Iorque dos pobres!

 

II

John Bolton, como Conselheiro Nacional de Segurança de Trump, poderá ser benéfico. Um defeito de Trump é o espírito de contradição e desconfia tanto dos conselheiros que talvez agora, para mostrar que não depende de Bolton, passe a usar de bom senso. (Estariam ambos melhor em Rilhafolhes mas não se pode ter tudo…)

 

 

 

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Quarta-feira, 21 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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Stephen Hawking (1942-2018)

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Escala nossa

 

 

 

Treze milhões e setecentos mil milhões de anos é um ror de tempo. Só a muitíssimo poucos de entre nós é dado imaginá-los e esses usam estratagemas algébricos ou geométricos que tornam os raciocínios sustentáveis e plausíveis. Porque os sábios destas coisas dos nossos dias estão convencidos de que foi nessa altura (há quase quatorze mil milhões de anos) que o universo começou, a partir do Big Bang inicial. Isto é, o tempo começou aí e acabará um dia; o espaço é outra história: porventura infinito, ou haverá mesmo uma infinidade de universos paralelos ao nosso.

 

Faz espécie que assim seja – mas faz mais espécie ainda que se saiba que assim é. Pondo de parte as tentativas dos poderes que houvesse de abafar conhecimentos novos – nesta matéria, o caso mais conhecido e melhor documentado de obscurantismo é o do processo e julgamento de Galileu há pouco mais de trezentos anos – que são epifenómenos menores, o que realmente nos pode deixar estupefactos (ou, pelo menos, me deixa estupefacto a mim) é olhar para céu de noite, limpo e sem luar, ver os milhares de astros que o cravejam e saber que a todos foi dado um nome, de todos se sabe o tamanho e a posição relativa, a distância da Terra de cada um deles e as distâncias entre eles de uns para os outros; das estrelas as quantidades de luz que emitem e, dos planetas, que reflectem; dos cometas, as respectivas periodicidades.

 

É, por assim dizer, uma estupefacção compensatória. Passados alguns séculos inebriados a seguir à consolidação do poder cristão e consequente arrumo nosso no centro do Universo (que, em lugares sem televisão e sem alfabetização, poderá durar ainda, porventura juntamente com a crença de que o mundo é plano) vieram Copérnico, Tico Brae, Galileu, pôr-nos em rota inexorável para uma periferia qualquer e, passando do cósmico ao terrestre,veio depois Charles Darwin que, cheio de escrúpulos e de descobertas contrárias às suas convicções de infância (era filho de um pastor da Igreja Anglicana), nos deixou muito mais longe dos anjos e muito mais perto dos símios do que estávamos antes.

 

Mas esta passagem de cavalo para burro, de camarote à boca de cena para banco no galinheiro, foi mais aparente do que real porque a ciência, retomando o fio de meada que passara pela Grécia nela se reforçando e juntando-lhe catadupas de experiência aumentou de maneira incalculável o conhecimento do mundo e de nós próprios. De maneira que, se é verdade que muitos de nós deixaram de crer ser feitos à imagem e semelhança de Deus e que todos nós (salvo talvez no Alabama profundo) deixámos de estar no centro geográfico do universo, sabemos muito mais de nós e do mundo do que os nossos antepassados e os nossos netos saberão muito mais ainda do que nós.

 

O tempo histórico é diferente do cósmico. Quando era pequeno, conheci Senhora muito velha que, quando era pequena, conhecera Senhora muito velha que, quando era pequena, vira entrar em Lisboa os soldados de Junot de que se lembrava ainda.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Fake news

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Et nunc et semper

 

 

Há agora grande animação a propósito de fake-news e de aldrabices quejandas que fervilham desde que os americanos escolheram para Presidente um mentiroso compulsivo (mas - ao contrário dos mitómanos que ás vezes se prejudicam com as mentiras que inventam – este está sempre a ver se leva água ao seu moinho e, quando não o consegue, foi por limitação de inteligência, de cultura ou de informação como acontece tantas vezes a chicos espertos e não por reconhecimento de a razão estar do outro lado. Há quem diga nessas alturas que o Presidente é sobretudo narcisista, como se tal fosse grande pecado, mas eu não estou convencido: Oscar Wilde contava que as águas do lago, quando lhes perguntaram se Narciso era realmente belo, responderam que não sabiam porque, quando Narciso vinha ver-se nelas, não olhavam para ele - olhavam para si próprias nas meninas dos olhos dele. Atirar a primeira pedra…

 

Felizmente, pelo menos por enquanto, a algazarra passa-se sobretudo nas chamadas redes sociais, uma gigantesca bolha, porventura ela própria dentro de uma outra bolha - e por aí fora - onde vivem deusas e deuses, homens e mulheres, onde se mata, se morre, se ama, se odeia, se acaba e se recomeça, como se se a vida fosse uma fantasia impune de ricos e, enquanto assim for, não virá daí mais mal ao mundo do que aquele que já tinha vindo ao longo de milénios, por mor de quezílias semelhantes, explodindo em amores e ódios, dividindo famílias, nações e fés, pelo menos desde Abel e Caim (para leitora que prefira ou esteja mais calhada com a mitologia cristã). Se fake news e fantasias acopladas tomassem conta dos livros texto, da experimentação e dos debates em cirurgia torácica, por exemplo, ou na construção de pontes sobre rios ou na pilotagem automática de automóveis e de aviões ou na análise, selecção e engarrafamento da Água do Luso – aí haveria razão para grande susto. De algoritmos a física quântica, muita coisa hoje nos organiza as vidas, cujo entendimento escapa a muitos de nós mas cujo estatuto científico e técnico não é minado pela tagarelice cacofónica zumbindo constantemente ao nosso alcance visual e auditivo nas redes sociais. O que é minado, esse sim, é o chamado conhecimento comum, já de si vago, incoerente, gabarola, e há eras sem fim, constantemente posto à prova pelas religiões do mundo, sobretudo pelas religiões reveladas e, destas, pelas três maiores: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo.

 

O que mudou, quase desapareceu, são os guardas florestais e mais arranjos destinados a prevenir fogos incontroláveis no Pinhal de Leiria que é o espírito. O aparelho científico e, pelo menos por enquanto, a máquina judiciária estão seguros, olhando pelos conhecimentos lógico e empírico, por um lado, e pela aplicação das leis, por outro. No resto dos espaços públicos e privados, a razão arrisca-se a perder crédito; a autoridade e o acaso a constituírem-se soberanos – mas isso já o temia o Cavaleiro de Oliveira (1702-1783). Não há de ser nada.

 

 

 

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Quarta-feira, 7 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

BreakerBoys Lewis Hine

 "Breaker Boys" (1910)

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Matar o tempo

 

 

 

John Lennon dizia que era capaz de se levantar de manhã da cama e começar logo a não fazer nada. Nessa época, que talvez esteja a acabar em Portugal, em que quem não fosse um camponês era um senhor e vivia numa espécie de férias grandes com “room service” incluído, eu gostava de gente assim e ainda hoje embirro com quem nos deseje «Bom trabalho!» de manhã, quer de viva voz quer por écran de computador intermédio.

 

Parece estar agora muito na moda em Portugal fazer exortações moralistas que não passariam pela cabeça de protestantes do Norte da Europa, os quais, desde que, já lá vai meio milénio, tiveram de aprender a ler para tratarem com Deus – era preciso cada um e cada uma ler a Bíblia, enquanto cá pelo Sul continuou a bastar que o cura lesse a vulgata, ficando o resto da malta (diria o malogrado Zeca Afonso) analfabeta – fazem o que têm a fazer, tal como deve ser feito, sem que isso dê direito a prémio ou distinção. Lá, o trabalho é uma obrigação nobre - pais e mães ensinavam a filhos e filhas que perder tempo é pecado - cá, o trabalho « é bom pró preto » ou pelo menos assim ouvi dizer muitas vezes; agora talvez seja diferente como o é muita coisa que espanta qualquer Ulisses local que regresse a esta Ítaca, a começar por descobrir que os velhos são mais velhos, os novos são mais altos e as pequenas vão todas prá cama antes de casarem.

 

Chegado a meio deste Bloco-Notas tenho que firmar o rumo, resistindo à tentação tradicional dos anciães de acharem tudo pior agora – como aquele casal amigo da Senhora Tichbein, mãe do Emílio de Emílio e os Detectives na Berlim dos anos 30 do século XX, com saudades do tempo deles, quando o céu era mais azul e as cabeças dos bois eram maiores. Tais perspectivas, por consoladoras que sejam para egoísmos de fim de vida, convencidos de lhes ter cabido melhor do que à rapaziada e à raparigada que agora lhes poluem o ambiente, são falsas.

 

Em termos simples: malgrado a horrível guerra na Síria e outras guerras indecentes (convém a leitora não esquecer que houve guerras decentes e podem ser precisas outra vez), o lamentável Presidente Trump e outros mandachuvas desanimadores - Putin, Erdogan, Orban, Duterte , Xi (o Chinês perpétuo), Maduro, tantos mais - o mundo nunca foi melhor para as pessoas do que é agora. Quem julgue o contrário é ignorante e, se insistir depois de advertido, além de ignorante será teimoso para lá do razoável. O mundo em geral está muito melhor do que estava, por exemplo, no começo da Grande Guerra em 1914. As pessoas são muito mais saudáveis e inteligentes do que eram nesse tempo e muito menos religiosas (59% no mundo inteiro quando, nessa altura, rondavam 100%). Em consequência, usam mais a razão do que fézadas irracionais para resolver problemas e tudo vai claramente melhor que dantes.

 

Vale a pena ler Enlightenment Now: The Case for Science, Humanism and Progress por Steven Pinker, para argumentação fundamentada e convincente. Pelo menos convenceu-me a mim.

 

 

 

 

 

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