Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Cópia de Exílio da Família Real

D. Manuel II a embarcar para o exílio na Ericeira (1910) 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Presidente a vida inteira

 

 

O Presidente Joseph Kabila, filho e herdeiro do presidente Laurent-Désiré Kabila, inimigo figadal de Mobutu e, depois da deposição deste último, mandachuva um ror de anos do Congo – que antes de se chamar Congo outra vez, como no tempo da administração belga, fora o exemplo mais brutal, mais egoísta e mais deletério dos colonialismos europeus em África (exemplo seguido a seguir à independência, mutatis mutandis, que uma colónia é uma colónia, um estado soberano é um estado soberano e agora se chamava Zaire, pelo ex-sargento Mobutu – os belgas não tinham formado um só oficial congolês - tratando os seus tão mal quanto o colonizador), o Presidente Kabila filho, dizia eu, que tendo ascendido ao poder dez dias depois do assassinato do pai, acabou o seu segundo e constitucionalmente último mandato há um ano mas insiste em não se ir embora enquanto o país desliza para mais uma guerra civil, esperando contra a esperança que lhe deem terceiro mandato, deve ter tido estes dias uma alegria inesperada quando lhe chegou notícia, talvez pela televisão, talvez por algum conselheiro solícito, talvez – muito improvavelmente mas nunca se sabe – pelo embaixador chinês em Kinshasa, frisando que o fazia a título pessoal, que as autoridades chinesas resolveram não dar só dois mandatos ao Presidente Xi Jinping como acontecera a todos os seus predecessores desde a morte de Mao, mas deixarem-no ficar no poder até vir a mulher da fava, dito por outras palavras, passar a ser Presidente perpétuo como é o Presidente da Academia Francesa e como era dantes o Papa em Roma.

 

Não há nada de estranho nem pouco habitual no chefe de um povo, de um país, de um Estado, ser perpétuo e hereditário, isto é que tenha herdado o título e o passe por herança a quem de direito (com sorte, filho ou filha; com menos sorte, parente mais distante). Temo todos, habitantes do globo terrestre - a maioria de nós, desde que nascemos -, exemplo vivo no mundo de hoje: a Rainha Elizabeth do Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte (Dona Isabel Segunda, chamar-lhe-íamos nós). Em sociedades da nossa civilização que, num pequeno canto da Eurásia, fizeram transição sábia do feudalismo para a democracia, as monarquias subsistem. “Aquelas criaturinhas pouco ou nada fazem mas têm o condão de manter o povinho unido”, dizia há 50 anos a D. Adelaide, da nossa embaixada em Oslo, Deus lhe tenha a alma em descanso.

 

Fora desse ramalhete feliz e de poucos outros casos, porém, as monarquias deram par o torto e perderam o pé. A decapitação de Luís XVI em 1793 criou moda que ficou. Hoje há sobretudo repúblicas e, com elas, pese aos Orbans, Erdogans e Kabilas deste mundo, há limites aos mandatos de poder. Quando o maior país, a segunda economia e o arauto convencido do seu papel de mentor do futuro, quer voltar a ter chefe perpétuo, prega um grande susto às democracias. E, de Havana a Moscovo, de Ancara a Caracas, de Damasco a Kinshasa, dá alma nova à sacanagem.

 

 

 

publicado por VF às 11:35
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Quarta-feira, 21 de Fevereiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 camilo_castelo_brancoEça de Queiroz

Camilo e Eça

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Polémicas do burgo

 

 

 

A Vera gostou muito do artigo do Henrique Raposo sobre o Vasco Pulido Valente no Expresso, “duro mas certeiro”; disse-me que eu próprio saí “muito bem na fotografia” e perguntou-me o que achava. Respondo-lhe neste seu blog “Retrovisor”, onde há mais de quatro anos me dá asilo político.

 

A primeira coisa que me ocorre é dar parabéns ao Vasco. A nossa relação para-fraternal - sendo ele irmão mais novo que de vez em quando se zanga, sem eu perceber porquê – vem muito detrás e logo no começo Vasco ganhou em mim crédito tal que, passadas mais de seis décadas, não se esgotou ainda. Aos catorze anos e baixinho – deitou corpo logo a seguir – levantou os olhos para o pai, engenheiro erudito (explicou-me que os romanos faziam a barba com sílex muito afiado) e disse-lhe: “Á pai, se eu tivesse a tua idade sabendo o que eu sei…” Toda a sua vida tem sido uma luta para estar á altura dessa espécie de promessa. Acho alguns dos muitíssimos artigos bons que publicou e, pelo menos, um dos seus livros, “O Poder e o Povo” (sobre a revolução republicana), peças de antologia. Que ensaísta competente e brilhante lhe dê tanta importância mesmo discordando, central e convincentemente, da sua maneira de olhar para nós, portugueses, faz jus ao trabalho de uma vida.

 

E, por fim, assunto mais pessoal, devo-lhe ter encontrado A.B. Kotter. Quando se preparava o diário “A Tarde”, Vasco disse a Victor Cunha Rego que se eu lá escrevesse, ele não escreveria e o Victor recebeu de braços abertos o inglês da Várzea de Colares.

 

A segunda coisa que me ocorre é dar parabéns ao Henrique Raposo. Também gostei muito do ensaio e lembrei-me da resposta intrigada de Mário Soares, recém-eleito Presidente, quando lhe perguntei como era Cavaco Silva, que eu não conhecia. “Não sei. Não pertence à burguesia urbana, como nós. Vai à televisão dizer que não mente!”. Por também não vir da burguesia urbana - nem do Alentejo da mó-de-cima - o olhar de Henrique Raposo vê diferente e foi diferentemente educado, até pelo próprio e pelas suas escolhas filosóficas (sem a mitologia do PC, não houve Santa Catarina Eufémia que o desencaminhasse). Sente melhor do que outros a diferença entre os doutores e o povo mas também o que todos têm em comum. (No fim dos anos 40 do século XX menina inglesa de 12 anos que viera visitar primas por essa idade filhas de lavrador rico de Reguengos, desatou a chorar numa aldeia do concelho porque nunca tinha visto gente tão pobre). A falta metódica de paciência de Henrique Raposo para o que chama o snobismo do Vasco, tratando os seus por indígenas, ajuda a perceber o país que somos. E acerta em cheio no papel de Eça de Queiroz no amolecimento das nossas elites. O velho Carlos Martins Pereira, também de Reguengos e também rico, preferia Camilo e dizia que Eça era “um janota do Porto”. Terá porventura tido razão.

 

Quanto a A. B. Kotter, tinha aprendido muito sobre Portugal em conversas com Jorge Dias. (Falavam sempre em alemão um com o outro).

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Fevereiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

codorniz65

Capa de La Codorniz celebrando a nova lei de imprensa conhecida como “ley Fraga” (1965)

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Mundo Novo

 

 

Assino há muito tempo a New York Review of Books e, desde que vivi em Princeton, professor no Institute for Advanced Study, de 2001 a 2004 passei a assinar o New Yorker que, costumava eu dizer a toda a gente, é o melhor semanário do mundo – ou pelo menos o melhor semanário publicado em língua que eu saiba ler. Veio ocupar o lugar deixado vago há décadas por La Codorniz – “La revista más audaz para el lector más inteligente!”, trazia impresso numa tarja que atravessava a capa – impressa em castanho e cor-de-rosa, publicada em Madrid no tempo de Franco, suspensa de vez em quando pelo Poder (uma vez por causa de boletim meteorológico: “Mañana, como en igual fecha en años anteriores, se sentirá en toda la peninsula um fresco general del Noroeste”; outra, por pôr na capa de um número o desenho de um ovo enorme com a legenda “El huevo de Colón” e, na capa do número seguinte, novamente um ovo enorme com a legenda “El outro huevo de Colón”) e sempre implacável: grande fotografia do próprio com a legenda seguinte: “D. Jose Ortega y Gasset, Primero filósofo de España y Decimoquinto de Alemania”. Quando Franco acabou e veio a liberdade, acabou a Codorniz. 

 

Acontece-me agora uma coisa bizarra. Desde que Trump chegou à Casa Branca, depois de quase dois anos de campanha, com primárias republicanas e democratas primeiro e face-a-face Trump-Clinton depois, em eleições livres e limpas, tirante uma ou outra intervenção secreta e indevida do Kremlin para fazer Clinton perder votos, nunca saberemos quantos (a palavra tirante chegou-me agora directa de Camilo no começo da novela de Cenas da Foz, A Sorte em Preto, quando diz que a fidalguia do pai da heroína – cito de cor – vinha desde os godos em linha pura e varonil, “tirante um ou outro capelão atravessado”) e não se irão impugnar as eleições por causa disso, seja qual for o resultado do inquérito em curso; desde a chegada de Trump ao Escritório Oval dizia eu, perdi a paciência para os dois pontificadores nova-iorquinos – a New York Review; o New Yorker – e deixei praticamente de os ler. Continuam a vir pelo correio, de vez em quando tiro-lhes a cingida bolsa de plástico fino e transparente dentro da qual chegam a minha casa e ponho-os nas pilhas respectivas mas li por junto um artigo do New Yorker porque amigo insistiu. Estou de nojo; é estado que passa com o tempo e não cancelei assinaturas. Mas, por enquanto, raramente lhes toco – porque me sinto enganado. Afinal, eles que julgavam saber tudo mas não tinham percebido nada, deixaram multidões fartas de serem descuradas pela arrogância da mó de cima escolher gente ignorante, mal formada e viciosa para governar o país.

 

Também não tenho desculpa. Cheguei ao Instituto em Princeton logo a seguir ao 11 de Setembro com a América em estado de choque. Poucos dias depois carpinteiro da casa explicou-me como se distinguiam os automóveis do pessoal menor dos dos professores: “A gente cola a bandeira nas janelas dos nossos carros e eles não”.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 7 de Fevereiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

US_Constitution

 Constituição dos Estados Unidos da América

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Trump, os americanos e nós

 

 

 

Jornais americanos contaram as mentiras de Trump e o cálculo dá mais de 5 mentiras por dia desde a tomada de posse. Para ser justo, o número pouco sentido faz se não for comparado com números equivalentes para os seus predecessores, pelo menos desde Ronald Reagan, inclusive: Bush pai, Bill Clinton, Bush filho, Barack Obama. Obama foi comparado – mentia, mas muito menos - porém estudos dos outros, difíceis e morosos, não foram feitos. Talvez algum bilionário benemérito de extrema-direita pudesse encomendá-los a uma das entidades competentes e impolutas que existem nos Estados Unidos.

 

Não ajuda debate político cada vez mais faccioso ter, de um lado, a diabolização de Trump, e, do outro, a diabolização de Hillary Clinton - e também, para americanos puros e duros, a base evangélica que apoia o Vice-Presidente Pence, desde os cachafundos da cintura bíblica do Sul confederado até ao Knesset em Jerusalém, a diabolização de mulheres que não cozinhem todos dias pontualmente o jantar dos maridos e não criem filhas de maneira que estas venham a portar-se como elas. “She-devils” chamam-lhes os Republicanos mais entusiastas para ganharem votos nas eleições deste ano para o Congresso.

 

À primeira vista, na Europa, é preciso chegarmos a ramalhetes sombrios de curas e fidalgos na Bretanha azul; a aldeias polacas ou austríacas, beatas e anti-semitas; a jovens bávaros ou suecos desempregados, disciplinados na violência, para encontrar tal eflúvio de crenças anacrónicas. Todo o cuidado é pouco mas com Macron em França, a grande coligação na Alemanha (knock on wood!), a Espanha laicizada e a Itália desconfiada de grandes visões, é provável que a Europa escape à ambição de ordem sem democracia que anima os governos de Budapeste e de Varsóvia. (Un polonais, un charmeur; deux polonais une bagarre; trois polonais, la question polonaise, Voltaire).

 

Nos Estados Unidos é diferente. E o que lá se passar vai afectar-nos a todos na Europa. Os números da economia, a curto prazo, confortarão Trump e algumas das suas falhas morais (menos chocantes para latinos do que para europeus do Norte: amigo português, dez anos mais velho do que eu, dizia à mulher: “O nosso azar filha é termos nascido cedo demais – senão tu também me punhas os palitos e eramos os dois felizes”. Já morreram ambos) não abalam o seu eleitorado. Em inquérito recente, 72% dos Republicanos acham Trump um bom modelo para a juventude (faz a gente pensar). O busílis está no assalto a critérios de decência e equilíbrio de poderes (que desde os Pais Fundadores conferem aos Estados Unidos força, atracção e estabilidade) feito escandalosamente por Trump, com desenvoltura que põe os seus interesses próprios à frente dos interesses dos Estados Unidos. Desde a não declaração do património até à publicação recente de elementos de inquérito do FBI contra a oposição do director deste, os casos vão-se acumulando. Se lhe derem mais um mandato, receio que o dano seja irreparável.

 

 

 

 

 

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