Quarta-feira, 31 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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 Nuer

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Variações sobre o Bey de Tunis

 

 

 

30 de Janeiro

 

É terça-feira, já passou o meio do dia e estou a escrever em Notes taken at “Oitavos”, trazido do hotel para o avião que me leva de volta à chuva e ao escuro de Bruxelas, depois de três dias de sol e de luz no Guincho, após ter feito esta manhã keynote speech no Instituto de Defesa Nacional, abrindo colóquio sobre as relações transatlânticas de segurança, que continuava depois da minha saída, com Ricardo Alexandre a moderar painel dedicado às relações políticas entre europeus e norte americanos. Saí antes do fim, com bastante pena minha porque a conversa entre Carlos Gaspar, Vasco Rato e um rapaz americano da Brookings Institution era interessante e a regência (como de um maestro) de Ricardo dava gosto: estimulava os oradores a levarem água aos seus moinhos, o que eles faziam com eloquência, mas de maneira que tudo passasse sempre por fim pelo moinho do moderador. Trabalho de artista, sempre bom de ver. Peter Carrington, quando era Secretário-Geral da OTAN (vulgo NATO), fazia-o de tal maneira bem que um dia eu disse ao António Vaz Pereira, nosso embaixador lá, que, em vez de receber ordenado, deveria ser ele a pagar pelo privilégio de assistir a tais espectáculos. Pese a Carrington (e a Ricardo) porém, o mais extraordinário desempenho a que tive a sorte de assistir foi de Giulio Andreotti quando era ministro dos negócios estrangeiros de Itália numa reunião do Conselho da Europa em Estrasburgo, falando em italiano e chegando por isso a quase todos nós à roda da mesa através de intérpretes (no meu caso, para inglês; eu fora lá com Eduardo Azevedo Soares, que era secretário de estado). Andreotti era de serenidade equânime; nunca levantava a voz; fazia com os dedos pequenos gestos de chefe de orquestra e despachou agenda longa em tempo curto, a contento de todos. Quando ao fim da tarde deixamos Estrasburgo o pequeno avião dele estava parado perto do nosso. Italianos da diáspora pertencentes a sua clientela política tinham vindo saudá-lo e vi um deles cair sobre um joelho no tarmac e beijar-lhe a mão.

 

Devo mandar o texto do Bloco-Notas à Vera até ao fim do dia de terça-feira para ela ter tempo de encontrar ilustração que nos agrade aos dois e pôr tudo no ar (no éter? Na web?) quarta-feira. Até hoje nunca falhei mas tenho sempre medo. Telefonei ontem, segunda–feira, à Vera para lhe dizer que desta vez só podia garantir o texto no computador dela quarta-feira à hora de almoço. Ela tem sempre imensa paciência: riu-se e disse que não tinha importância.

 

31 de Janeiro

 

Já é quase hora de almoço em Lisboa, o texto ainda não está pronto e o céu aqui em vez de ser azul como no Guincho é em fifty shades of grey. Os Nuer do Sudão do Sul que vivem da pastorícia têm 50 palavras para dizer boi, conforme as características do bicho. Porque é que os belgas não fazem o mesmo com cinzento? De maneira a percebermos logo se vai chover muito, pouco ou nada? Ou se vai nevar? Ou daqui a quantos meses fará sol?

 

 

 

 

publicado por VF às 13:51
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Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Davos, Suíça

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Ricos e pobres no mundo inteiro

 

 

 

Quando eu era antropologista praticante publiquei um livro em inglês, sisudo como o título sugeria: A Portuguese Rural Society. Estávamos em 1971 e eu pensara poder inventar nome menos aborrecido para lhe chamar mas quando já havia provas revistas, as fotografias do Mano João e do meu chorado Gérard tinham sido escolhidas, tudo pronto para a feitura física dos volumes da edição, eu não encontrara ainda nome que armasse ao pingarelho quantum satis. No meu gabinete, nos escritórios da Oxford University Press, na oficina da tipografia escolhida para a impressão, o nome continuava a ser o da tese de doutoramento na qual o livro se baseara.

 

A certa altura ocorrera-me chamar-lhe Before the Revolution (explicando no prefácio que, apesar do ambiente e das condições de vida daquelas aldeias tal poder sugerir a algumas cabeças jovens e entusiásticas da burguesia urbana, não iria haver revolução nenhuma) mas desisti por me parecer pretensioso (três anos depois teria ajudado às vendas, mas fosse lá alguém saber). Em última tentativa, passei um dia inteiro numa pequena biblioteca da Universidade com uma “Concordance” de Shakespeare, a ver se havia qualquer verso, dito, frase do Bardo que incluísse as palavras peasant ou peasants e me desse de bandeja o título de que eu precisava. Qual o quê: no tempo de Shakespeare, bem antes de ilusões sobre as virtudes e belezas dos camponeses terem animado almas românticas (e, mais tarde, de pungências sobre o seu sofrimento terem animado almas neo-realistas – No impressionismo, pinta-se o que se vê; no expressionismo pinta-se o que se sente; no neo-realismo pinta-se o que se ouve contou-me o Luís de Sousa que já não sei que professor ensinava por essa altura numa das universidades de Londres), não se escrevia nada de simpático sobre peasants, gente rude, sem maneiras nem conversa, mais própria para se roçar por bestas do que para convívios humanos. Vão tal esforço derradeiro, foi A Portuguese Rural Society que apareceu nas livrarias.

 

Depois da Revolução, que afinal sempre viera, podia por fim aparecer edição portuguesa que a Sá da Costa me propôs e a questão do título levantou-se de novo. Não me lembro se por sugestão minha, ou do João Sá da Costa ou da mulher dele, Ricos e Pobres no Alentejo foi escolhido e (salvo o Iá, Deus lhe tenha a alma em descanso, que com sentido moral exigente me disse, contristado, achar o título demagógico) toda a gente achou bem: o Alentejo tinha fama de grandes diferenças – lavrador abastado dissera um dia de trabalhador despedido que lhe queimara a seara: “Custou-lhe mais o fósforo do que a mim o trigo”.

 

Eram outros tempos e temos a mania das grandezas. Números divulgados este mês mostram que 82% da riqueza mundial gerada o ano passado couberam a 1% dos habitantes, enquanto os 50% mais pobres - 3,6 mil milhões de pessoas - não viram qualquer melhoria. As fortunas de 8 homens somam o mesmo que a totalidade dos bens desses 3,6 mil milhões.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 17 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Las Vegas 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Patos bravos

 

 

 

As mesmas palavras dizem coisas diferentes segundo os lugares. Em norueguês, “pato bravo” traz logo à cabeça peça de teatro de Ibsen (e em inglês também, em certas circunstâncias: vi uma tarde em Nairobi cartaz de representação teatral nessa noite e noites seguintes, por actrizes e actores negros do Quénia, alguns dos quais lá estavam figurados, de The Wild Duck de Hendrik Ibsen). E poderia ter visto cartaz equivalente, escrito em dinamarquês, numa rua de Copenhaga, porque a língua em que Ibsen escreveu os seus dramas era o dinamarquês, embora Ibsen ele próprio fosse norueguês - não é bem o mesmo que Luís Bernardo Honwana, sendo moçambicano, escrever em português, mas tampouco é completamente diferente porque a Noruega, se não estou em erro, a certa altura foi colónia ou coisa parecida da Dinamarca - e como o disparate não poupa ninguém, nem os escandinavos, quase sempre tão certinhos em tudo, há agora na Noruega espíritos desembaraçados que retrovertem Ibsen para norueguês moderno, oferecendo a públicos de representações teatrais e a leitoras de livros o que eles entendem ser como Ibsen teria escrito agora. Disse-me entendida um dia que o dito norueguês moderno soava feio e tosco, enquanto o Ibsen original soava bonito e subtil, mas essa minha amiga era um alma sensível e considerava que o punhado de homens e mulheres, instruídos obrigatoriamente, que julgavam estar assim a fazer justiça ao verdadeiro espírito do dramaturgo, estavam na realidade a caricaturá-lo, ainda por cima com mau gosto.

 

Já as três palavras Le Canard Sauvage, lidas em parede de uma rua de Bruxelas, só depois de muitas voltas lembrariam o mister – ou arte, ou engenho – de Racine, Goethe ou Shakespeare ou, porque não, do próprio Ibsen (tenho dias em que não consigo impedir-me de complicar as coisas…) mas antes, prosaica e gulosamente, sugeriria restaurante mais ou menos pretensioso. Em Bruxelas, ou em Estrasburgo, ou em Mulhouse, ou em Basileia, ou em qualquer outro vestígio do Reino Lotaríngio, tudo isto em grande parte depois Ducado de Borgonha, e hoje, Suíça, França, Luxemburgo, Bélgica Valónica, um dos ramalhetes de lugares no mundo onde há séculos se come e se bebe muito bem.

 

Em Lisboa, isto é, na Lisboa do meu tempo - não sei se hoje se falará por lá assim – o significado de ‘pato bravo’ era outro ainda. Um pato bravo era um construtor civil que fizera fortuna e passara a novo rico, nem sempre com honestidade pegada à sua reputação, pelo contrário, mas com jeito para escapar a complicações. Muitas vezes, não sei porquê, vindo de Tomar. Nesse Portugal, o equivalente de Trump seria um pato bravo ordinário. Mas o caso de Trump é mais complicado: os patos bravos de Nova Iorque escapam melhor à troça dos ricos-ricos se forem de Manhattan do que se forem de Brooklyn. E Trump é um pato bravo de Brooklyn. São complexos de inferioridade, uns dentro dos outros como bonecas russas, e o homem sempre a achar que não lhe estão a dar o valor devido.

 

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Quarta-feira, 10 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Toile de Jouy

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

A Ordem Natural

 

 

 

“Venha aqui falar a este Senhor que era muito amigo do seu bisavô!” A menina obedeceu à mãe e parou a trotinete ao pé de nós, virando de repente o guiador de maneira que quase a fez cair e espalhou terra do jardim à volta.

 

É bom ir pondo as crianças diante daquilo que a gente entenda ser a Ordem Natural do Mundo com parentes, amigos e inimigos devidamente colocados no espaço e no tempo, às distâncias certas, para elas não desaguarem na vida real, directas de Facebook e quejandos. E é bom porque, para além de fantasias modernas entretidas que tiram horas sem fim às vinte e quatro que cada dia tem, petizes e petizas levam agora mais tempo a perceberem como as coisas são do que levávamos quando era a nossa vez de sermos pequenos. Não sou filósofo mas oiço muitas vezes telefonia no carro e, uma manhã, voz de mulher parisiense encheu o habitáculo assim que carreguei no botão: “Comme disait Lacan, le réel c’est quand on se cogne!”. Antes de figurar o ‘maître à penser’, por uma única vez, pareceu-me a mim, autor de verdade como um punho, que tanta influência teve – e tem – em gerações seguidas de intelectuais e candidatos a intelectuais do país de Edith Piaf e Marcel Cerdan (e tão pouca marca deixa se se tenta traduzi-lo: quando o meu amigo David Callagher trabalhava para o Times Literary Supplement quiseram dedicar um número à vida intelectual francesa da época e pediram artigos a autores na moda – Lévi-Strauss, Derrida, Leroy Gouraind, Merleau-Ponty, etc., incluindo Lacan – os artigos chegaram, foram traduzidos, tirando o de Lacan que o staff do TLS não conseguiu verter para inglês e foi posto a circular pelos melhores departamentos de francês das universidades britânicas mas sem resultado tangível, enquanto Lacan telefonava insistentemente a David - “Alors, Monsieur Callagher: mon article?” – as repostas sucediam-se, idênticas, implacáveis: It doesn’t make sense in English), antes pois de Lacan figurar no meu espírito, veio François Villon, cinco séculos mais velho, a louvar a fala das parisienses do seu tempo: “Il n’est bom bec que de Paris!” A galanteria francesa arranja sempre maneira de se sobrepor nos nossos espíritos a aspectos menos agradáveis dos costumes e do temperamento gauleses. Os jornais – ou melhor, o que no nosso tempo tecnológico por eles passa na net – informam que Catherine Deneuve e mais noventa e nove mulheres vieram manifestar-se contra o que acham excessos de puritanismo anglo-saxónico do movimento “me.too”. Violação é violação, mas insistência, mesmo desajeitada, em sedução não o é; o que se tem passado e está a passar-se nos Estados Unidos (e noutros recantos protestantes do mundo) nestas matérias e matérias afins, é patético e perigoso. (Cínicos provocadores talvez publiquem Grab my pussy the French way; mas, no geral, Deneuve & Co trazem bom senso e bom gosto a estados de alma que perderam ambos).

 

Velhice é outra questão. Ser muito amigo do seu bisavô põe pontos pesados demais nos is.

 

 

 

 

 

publicado por VF às 15:13
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Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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George Orwell

 

 

José Cutileiro

 

 

 

 

 

Ano Novo. Vida Nova ?

 

 

 

 

Sou velho demais para acreditar no automatismo de mudanças assim mas há o que a Natureza nos traz e nos tira; quer queiramos quer não. A seguir ao solstício de Dezembro (a 21 do mês; dia de anos, a propósito, do presidente francês Emmanuel Macron, cuja eleição foi, de longe, a melhor novidade política a animar a Europa desde a nefasta eleição de Trump e, antes disso, da escolha imbecil dos ingleses de se separarem da União Europeia) os dias vão roubando cada vez mais tempo às noites até ao solstício a 21 de Junho, a partir do qual as horas de luz do dia vão passar a mirrar em vez de se expandirem como fora o caso durante os seis meses anteriores, até chegarem ao seu mínimo no próximo dia de anos de Emmanuel Macron.

 

Antes que me esqueça: leitora do meu último Bloco-Notas, escreveu-me a dizer que não sabia que os jornais ingleses dantes dedicavam a sua primeira página a anúncios. Ainda conheci nesse apuro o último a fazê-lo, The Times, de Londres, que nessa altura era um jornal sério, e cujos anúncios me davam leitura obrigatória juntamente com os obituários e as cartas dos leitores. Havia, evidentemente, uma ordem no arranjo dos anúncios que nós leitores lá liamos ou lá púnhamos para outros lerem. Coisas para vender; precisão de comprar coisas; procura de casas; ofertas de casas; procura de emprego; ofertas de emprego; assuntos mais pessoais; busca de pessoas, parentes ou não, há muito desaparecidas do convívio dos anunciantes; mensagens amorosas mais ou menos crípticas – em suma, um manancial de informação sobre a vida e os costumes dos leitores do Times de Londres desse tempo, quase todos vindos das fatias mais altas da sociedade – não há na Europa estratificação mais minuciosa que a inglesa mas, ao mesmo tempo, com capacidade única de capilaridade social (“Não é o lado da moda” comenta Lady Bracknell quando o pretendente à mão da filha lhe diz o número da porta de sua casa em Belgrave Square “mas isso pode mudar-se”. “O quê? A moda ou o lado?” pergunta ele. “Ambos, se preciso for!” fulmina ela, peremptória). Era entretém fascinante e dos milhares de anúncios que ao longo dos anos li nessa primeira página do Times, houve um, nesse dia à cabeça da coluna das Vendas de que nunca mais me esqueci: “Parrot. Unsuitable for vicarage. Any offers?”

 

Mas, entre uma coisa e outra, não creio que o ano novo vá trazer vida nova. Trump irá provavelmente cumprir dois mandatos: embora os grandes beneficiários do orçamento agora aprovado estejam na fina camada de cima dos bilionários mais ricos, toda a gente vai ver um pouco mais de dinheiro nos bolsos, pelo menos nos anos mais próximos – e como dizia Bill Clinton na primeira campanha para a Casa Branca: It’s the economy, stupid!. Isto, por um lado. Por outro lado, como George Orwell, na sua fala única, disse de maneira lapidar, o homem às vezes precisa de mal, apetece-lhe o mal. Trump satisfaz anelos desses e, por todo o mundo, estamos numa de desconfiar uns dos outros.

 

 

 

 

publicado por VF às 12:53
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