bambúrrio
bam.búr.ri.o
nome masculino
(possivelmente do baixo latim bamburrus)
Sorte inesperada; acaso feliz ou maré de acasos felizes – não procurados, nem planeados – que tilintam (de forma real ou simbólica) como o jackpot de uma máquina onde não se tinha introduzido qualquer ficha. Oportunidade caída do céu. Casualidade; ganho inexplicável. Bafejo do destino. Golpe favorável que intimamente se conhece, mas não se reconhece publicamente, pois isso seria admitir a parca, ou nula, contribuição do bafejado no processo que conduz a tão benigno resultado.
Germaine de Staël
(Marie Eléonore Godefroid segundo François Gérard)
O passado e o futuro
Cosimo de Medici, o mais sábio e ponderado de ninhada de irmãos florentinos de que o mais vaidoso era Lourenço, o Magnífico, banqueiro respeitadíssimo e homem de trato exemplar - dava sempre a parede a pessoas mais velhas (no seu tempo as ruas de Florença não tinham passeios e quando nelas se andasse “dar a parede” , fosse à direita ou à esquerda, era sinal de deferência) – dominava práticas financeiras novas que no seu tempo animavam o comércio internacional europeu e era, nesse sentido, um homem virado para o futuro. Mas, por outro lado, detestava a invenção da imprensa por Gutenberg, não porque esta tivesse tirado valor à sua biblioteca de incunábulos mas porque leitura era exercício requintado que não se compadecia com a vulgaridade dos paralelepípedos de papel a que chamamos livros, saídos em quantidades industriais das prensas tipográficas. Para Cosimo, a Renascença fora manchada pelo aviltamento de uma das mais refinadas experiências humanas e, nesse sentido, era um homem do passado. Lembro-me dele às vezes, escrevendo onde escrevo agora: penas (plumas) propriamente ditas já tinham desaparecido quando aprendi a redigir mas canetas de molhar o aparo na tinta, canetas de tinta permanente, máquinas de escrever – comecei por uma Olivetti lettera 22 – que passaram a eléctricas, vi um dia no Diário de Notícias que Jimmy Carter estava a escrever as memórias dele num “word-processor”, até ao computador que uso agora e me obriga de vez em quando a pedir ajuda ao Cipriano que, sem sair do escritório dele, entra no meu écran e, enquanto o diabo esfrega um olho, em série de cliques que obedecem a gramática que não conheço, acaba com o impedimento ou corrige o desvio que me levara a telefonar-lhe. (Isto, na escrita. Quanto à leitura, enquerenço como Cosimo embora não em incunábulos mas sim em livros impressos em papel - assim fazem touros em Praças que não saem de um lugar por muitas capas que lhes metam pela frente. Não julgo que alguma vez me meta a ler um livro electrónico – é assim que se diz? – nem mesmo em leituras de verão, onde a modernice poupa imenso espaço dentro das malas de bagagem que se levem para férias.
A propósito, não só nisso os antigos eram diferentes dos modernos. Hoje, chegado o Verão, os europeus vão para férias. Antigamente iam para a guerra. Deixando memórias vivas, mesmo em país neutro aonde havia férias (agradeciam as mães portuguesas ao Dr. Salazar, a despropósito, pois fora Franco que travara qualquer apetite de Hitler para invasão da Península Ibérica). Lembro-me como se fosse hoje do Pai chegar ao Estoril ao fim da tarde e dizer que a guerra tinha começado.
Com a Europa a esfrangalhar-se, Trump na maior, o Czar e o Sultão sem ganharem tino, gente nova cheia de sangue na guelra, correcção política que não deixa pôr nomes aos bois e divórcio entre elites e povos parecido com o que alarmou Madame de Staël durante a Revolução Francesa, talvez os nossos verões tornem a pegar fogo.
contubérnio
con.tu.bér.ni.o
nome masculino
(do latim contubernium, «camaradagem ou comunidade de tenda»)
Na Roma antiga designava a união conjugal entre escravos ou mesmo entre escravos e pessoas livres. Por extensão passou também a designar o concubinato ou a mancebia em geral, fazendo a ponte com uma certa ideia de vida dissoluta ou espúria (ver espúrio). Restringido à vida boémia, o contubérnio refere-se sobretudo à camaradagem, não implicando a vida em comum. Porém, na realidade, o tipo de convivência implícita no contubérnio é uma ideia de comunidade familiar. O termo, hoje geralmente caído em desuso, poderia designar, com vantagem, certos casos espúrios de aliança política ou certos alinhamentos do que habitualmente se chama coabitação.
Donald Trump e Nigel Farage
Mundo novo
Pedro Pires de Miranda, com quem tive a honra de trabalhar quando ele era ministro dos negócios estrangeiros (“A política externa é óptima: só se tem inimigos!” disse-me uma vez - e outra vez, quando eu o informava que com três pessoas não conseguiria levar a cabo tarefa de que me encarregara, perguntou-me “Já experimentou com duas?”) pediu-me ao jantar em que o conheci que eu lhe pusesse, para o dia seguinte, em meia página, as diferenças entre as posições da OTAN e do Pacto de Varsóvia na Conferência Europeia de Segurança, em Estocolmo, onde ele viera acompanhar Mário Soares, Presidente da República, ao funeral de Olaf Palme (primeiro ministro sueco assassinado) e onde eu vivia, chefiando a delegação portuguesa à Conferência. No papel que lhe entreguei quando ele ia apanhar o avião escrevera meia dúzia de frases. A primeira, em inglês (língua franca da diplomacia, onde eu estava, e dos negócios, donde ele vinha), tocava no nó do problema: “We are right and they are wrong” (Nós temos razão e eles não). O mundo era menos complicado do que é agora.
Pedro foi-se embora há pouco tempo, eu ainda por cá ando mas nos trinta anos desde esse enterro nórdico especial (o assassino de Palme andava a monte, não se sabia quem era nem se havia cúmplices, desabaram sobre a cidade num fim de semana chefes políticos do mundo inteiro e, para preocupação suplementar dos serviços de segurança suecos, Shimon Peres, PM de Israel, no sábado, em vez de ir como os outros em carros mais ou menos blindados, foi a pé aos lugares onde tinha de se ir) desde esse enterro, dizia, os que tínhamos razão, ganhámos a guerra fria – e a Rússia perdeu-a - sem termos de dar um tiro. Éramos os melhores, os mais fortes, os mais ricos e ainda por cima, para algumas almas optimistas a História tinha acabado. Só que, como escreveu Nelson Mandela, quando se chega ao cimo da montanha que se está a subir descobre-se que há outra montanha que tem de se subir também, depois dessa mais outra ainda e por aí fora.
Ora para as montanhas que se seguiram e para a cordilheira que se vislumbra até onde a vista alcança nem nós nem os americanos - Atenas e Roma do mundo de hoje, houve quem gostasse de pensar - temos mostrado grande jeito. Perante a decadência do Ocidente (será finalmente desta?) avultam novos poderes – China, Índia; menos grandes mas incomodamente perto, a Rússia de Putin, segunda potência nuclear do mundo, batoteira das Olímpiadas, invasora de vizinhos e a Turquia, onde o islamista Erdogan venceu golpe militar pondo o povo na rua pelo FaceTime do seu iPhone – mas o podre vem de dentro.
Na pátria da Magna Carta, políticos encartados mentiram escandalosamente a eleitores que mostraram ignorância abissal e fartura sem remédio das “elites” - como se chama agora a quem saiba ler e escrever e tenha onde cair morto. Do outro lado do Atlântico, “Nós, o povo” reduziu a duas as pessoas entre quem escolher para suceder a Barack Obama e uma delas é Donald Trump.
eclectismo
e.clec.tis.mo
nome masculino
(do francês éclectisme)
Na história das ideias corresponde à formação de um corpo doutrinário composto por elementos colhidos em, ou aproveitados de, diversos, e por vezes contraditórios, sistemas de pensamento. Equivalente a manta de retalhos. Modernamente é muitas vezes assimilado ao sincretismo, de que é uma forma. Nos tempos que passam, é, geralmente, reflexo da atitude relativista reinante, da construção de um sistema em que todas as coisas se equivalem (há quem diga que tudo é bom — sobretudo nas artes, mas não só — desde que — cláusula misteriosa — seja «de qualidade»). Aplicado mais habitualmente ao pensamento e ao gosto, em política pode assumir facetas particularmente sinistras. Com a decadência das verdades únicas e absolutas, e apresentado como virtude, o eclectismo confunde-se, na maior parte dos casos, erradamente, com heterodoxia, de que não é sinónimo, pois esta configura um entendimento do mundo não conforme a uma visão ou regra dominantes, claramente assente na liberdade de espírito (sendo que a liberdade é a mais severa disciplina do espírito).
Barroso, Goldman Sachs e bom senso
De há uma dúzia de anos para cá, no calendário cinegético deste maravilhoso país que tão generosamente nos acolhe no seu seio – assim chamava a Portugal amigo inglês que cá vivia e já esticou o pernil – abre de vez em quando a caça ao Barroso. (Os nossos compatriotas atiradores à espécie folgam quando franceses rompem também o defeso. Franceses a cuja visão marxista primária do mundo se junta nessas alturas indignação escandalizada pelo triunfo do filho da concierge. Michel Rocard disse uma vez a Barroso que mesmo que ele cantasse a Marselhesa e erguesse ao alto o estandarte tricolor a esquerda francesa nunca o toleraria).
A pulsão condenatória nacional tem raízes mais variadas do que a estrangeira, nutrida por todos os horrores da alma humana. Inveja, empertigamento moral e ignorância fazem má mistura, da qual saem comentários nos jornais, nas telefonias, nas televisões, nas “redes sociais” e nas conversas. Num caldo de cultura de má-fé e má-vontade.
No cargo que Barroso vai agora ocupar em Londres – Presidente não executivo de Goldman Sachs International – esteve durante uma década, até ao ano passado, o irlandês Peter Sutherland (o melhor Presidente que a Comissão Europeia não teve: política interna irlandesa impediu o que haveria sido escolha unânime) que foi Comissário Europeu e criou o programa Erasmus, Representante do Secretário-Geral da ONU para Migração, pilotou a transição de GATT para OMC, presidiu à BP, preside à Comissão Católica Internacional sobre Migração, tem vários outros encargos e a mais alta das reputações no mundo em que política e economia internacionais se entrecruzam. Encontrar sucessor à altura não terá sido fácil até Goldman Sachs decidir convidar Durão Barroso.
Ouviu-se e leu-se logo um coro de protestos, de entrada esperançados numa ilegalidade. Como esta não existe procuraram, também em vão, conflito de interesses. Por fim trataram Barroso como se fosse um traidor que se tivesse posto ao serviço do inimigo. Tal é, evidentemente, absurdo mas, como essa evidência parece escapar a muitos, vale a pana recordar algumas coisas elementares.
Durão Barroso, que foi presidente incansável da Comissão Europeia, vai agora presidir a Goldman Sachs. Mesmo a mais eurocéptica das cidadãs terá de reconhecer que é dever da Comissão - que nos próximos anos não terá mãos a medir na definição das novas relações entre o Reino Unido e a União Europeia - obrar pelo bem dos europeus. Por sua vez Goldman Sachs tem todo o interesse em que essa definição garanta a melhor articulação possível entre a praça financeira de Londres e a Europa Continental, como terá de reconhecer mesmo o mais eurofílico dos cidadãos europeus. A escolha de Durão Barroso faz assim o maior sentido e merece parabéns.
Salvo, claro, para quem ache que banqueiros – homens de negócios em geral - são cambada de gatunos apostada em esbulhar o povo e o alto funcionalismo internacional um bando de lacaios do capitalismo.
contemporizar
con.tem.po.ri.zar
verbo transitivo e intransitivo
(de con + temporizar)
Ceder aos tempos e às circunstâncias. Deixar-se torcer, ou torcer-se, para não quebrar. Acomodar-se. Fingir que se gosta do que na realidade não se gosta. Transigir. Consentir. Resignar-se. Desistir. Confunde-se por vezes, na prática, erradamente, com manifestação de tolerância (ver tolerância). Em certos enunciados poderá aparecer com o sentido de «dar tempo» ou «ganhar tempo», o que pode ter carácter benigno nalguns casos e ser fatal em muitos mais. Raras vezes significa estar à altura das circunstâncias; na maior parte dos casos adquire mesmo um sentido oposto.
Errata
Sempre tive dificuldades com a ortografia de nomes. De gentes e de sítios. Escrevi uma vez Camões com z no fim, abaixo de O homem que for sisudo/Numa tão grande questão/Terá de tomar por escudo/A justiça e a razão/Que estas armas vencem tudo, versos que escolhera para citação de abertura em apontamento douto e terso sobre política europeia - mas dei por isso e emendei antes de o mandar por e-mail ao seu ilustre destinatário. Outra vez, há muito mais tempo, numa série de textos publicitários curtos, encomendados por Eduardo Calvet de Magalhães, escrevi várias vezes Carcave-los, como se carcaver fosse um verbo, mas também dei por isso antes de os entregar, comentando o percalço com Calvet. (Lembrando-me dele agora, ressinto a injustiça do seu esquecimento. O mano Manuel, pedagogo, tal renome teve que lhe deram nome de rua e tudo. O nome do mano José, embaixador, é venerado no Palácio das Necessidades como uma das sumidades diplomáticas da segunda metade do nosso século XX. Do Eduardo ninguém fala, embora tenha introduzido a publicidade moderna em Lisboa e no Porto e, entre a chegada da Canada Dry e a chegada da Coca Cola, ter imaginado o refrigerante que mais conviria a Portugal - capilé gaseificado - para publicidade do qual até inventara slogan: “A bebida que lhe corre nas veias”).
Na semana passada tornei a disparatar: chamei a Louise de Vilmorin, Louise de Villemorin. Quando dei por isso, avisei a Vera que corrigiu logo no blog e, por conseguinte, o bloco que anda no éter (é assim que se deve dizer?) está como deveria estar mas as poucas amigas e amigos a quem todas as semanas mando directamente o pdf – ces êtres malhereux, aimables, charmants, point hypocrites, point “moraux”, assim lhes poderia haver chamado Stendhal, ou We few, we happy few, we band of brothers proclamaria talvez, imune a correcção política, Shakespeare quando estava em ‘mode’ heroico – ficaram com o erro por corrigir. A todas e a todos, quer tenham lido esse Bloco-Notas quer não e, se o leram, quer tenham dado pelo disparate quer lhes tenha escapado, aqui e agora deixo o nome bem soletrado da amante principal de Duff Cooper em Paris (mais tarde amante de André Malraux que depois da morte dela herdou no leito sua sobrinha Sophie, também de Vilmorin, conta esta num livro).
Assobios para o lado, tudo quanto escrevi acima. André Gide dizia, no Paris dos anos 20 do século passado –“ les années folles” – que às vezes lhe parecia haver mais artistas do que obras de arte. Em Portugal - na Europa - de 2016, às vezes parece haver mais comentadores do que factos a comentar. Sou suspeito por ser eu próprio comentador mas ao acordar de manhã já o mundo está a ser batido em gigantesca montanha de claras em castelo, perfumadas com o aroma do dia. Omnipresente mas efémera conversa de treinadores de bancada, lembra o mano João, com Schadenfreude de quem arranca ternas figuras à brutidão dos calcários e nelas deixa os seus estados de alma per omnia secula seculoram. Amen.
galhardia
ga.lhar.di.a
nome feminino
[de galhardo (do provençal antigo galhart, francês gaillard) + ia]
A galhardia pode referir-se à beleza ou à distinção, à generosidade, à vivacidade, à robustez ou à bravura. O coloquialismo espanhol trapío (de etimologia incerta; segundo José María de Cossío a palavra terá origem no jargão náutico, no qual designaria o velame), ausente dos dicionários portugueses, embora usado na língua com frequência, sobretudo em contexto tauromáquico, aglutina algumas destas acepções. O Dicionário da Real Academia Espanhola oferece como segunda acepção de trapío a «boa presença e galhardia de um touro de lide». Mas não é esse o primeiro significado listado; nesse primeiro lugar aparece o «ar garboso que costumam ter algumas mulheres».
Não é necessária uma grande investigação para concluir que, relativamente ao touro, na sua «presença e galhardia» se articulam envergadura, beleza, brio e bravura. Relativamente à mulher, a ideia é sobretudo designar a elegância e o porte. A vivacidade e aprumo inerentes à prática de dançar galhardas, popularizadas em Portugal nos salões dos séculos XVI e XVII, deixou algum vestígio no significado de galhardia que toca também o significado de garbo (palavra de origem italiana). A elegância grácil do garbo é, no entanto, designada com acerto por uma outra palavra fora de moda, belíssima por sinal, que aliás nos chegou por via castelhana: donaire.
Seja como for, em Portugal, o termo trapío, usado — sem dúvida por gente com uma organização mental especiosa — para designar o porte garboso da mulher desliza facilmente para a outra acepção: uma mulher com trapío é uma mulher com a envergadura necessária. Que por certo se desenvencilhará com galhardia, seja o que for que isso, no momento, queira dizer.