João Branco Núncio
Vila Franca, Portugal 1949
À portuguesa tradição do toureio a cavalo se referem já crónicas de Strabão, citando os antigos lusitanos como amigos dos jogos hípicos, com touros, e outras que dão notícia de D. Sancho II alanceando touros ao estilo da época, e as de Fernão Lopes em relação a D. Fernando, e as de Garcia de Rezende que descrevem el-rei D. João II no gosto pelas touradas e fazendo frente e matando à espada um touro que em Alcochete lhe saiu ao caminho quando ia com a rainha. Outras crónicas descrevem façanhas do rei D. Sebastião como toureiro a cavalo, e dizem que o neto de Carlos V rojoneou em Cadiz, de abalada para o sonho de Alcácer. E muitos monarcas foram toureiros a cavalo, até D. Miguel que farpeou em Salvaterra, e na praça de Xabregas desta cidade de Lisboa, que teve redondéis no Rossio, no Terreiro do Paço, na Junqueira, no Largo da Anunciada, no local onde está o jardim da Estrela, no Salitre, no Campo de Santana e agora no Campo Pequeno. D. Carlos criou touros e D. Luís e D. Miguel entraram em tourinhas. E quantos fidalgos lanceando e rojoneando nas festas dos nascimentos de príncipes e das suas bodas e nos torneios peninsulares com os continuadores del Cid e de Villamediana, nas Praças Maiores de Espanha, em nobre competência, por sua dama, em alardes de valentia e de pompa pela gente de cada bando, a cavalo e a pé, com as armas e as cores de cada qual! Em Portugal manteve-se e aperfeiçoou-se a Arte de Marialva, tomando o nome do grande senhor e cavaleiro a quem mestre Andrade dedicou o seu famoso tratado de equitação. Desde aqueles tempos, e até aos nossos dias, têm sido sucessivas as gerações de cavaleiros tauromáquicos. Estes e os forcados são os representantes do toureio português, uma vez que os bandarilheiros, e os antigos «capinhas», quási se limitam a imitar, até na indumentária, os seus iguais de Espanha.
Os cavaleiros tauromáquicos têm indumentária própria: a casaca bordada e o tricórnio de plumas, e botas altas à Relvas — outro bom cavaleiro, do século XIX, em que brilharam também Mourisca, Tinoco, Castelo Melhor e outros. E os forcados, que, como os campinos, são do Ribatejo, terra dos touros, também vestem de forma característica, e também têm sua arte, porque não é apenas função de força o pegar um touro de cara, de costas ou de cernelha. Há que saber cair na cabeça da fera, evitando a violência do choque quando, para colher, humilha, e depois aguentar-se, «embarbelando» bem, ou, na melhor ajuda, torcendo bem a «pombinha», vértebra da cauda. E para se julgar da arte que pode caber em sorte tão rude, basta ver os últimos grupos de forcados-amadores, como os de Santarém e de Montemor, tão elegantes e pundonorosos, e até alguns profissionais que sabem dar terreno, com ritmo, com graça, como Edmundo e Garrett e os seus valentes conterrâneos do Ribatejo.
E tem ritual a sua aparição com a azémola das farpas, estas em duas arcas cobertas com pano rico, de veludo, que eles desdobram cuidadosamente ante a presidência, que manda recolher as caixas com os ferros para o uso da lide. Depois retiram-se os forcados para saltarem à arena quando o «inteligente» entende que o touro mete bem a cabeça e as hastes permitem a sorte. Os cavaleiros surgem, então, para as cortezias, outrora feitas ao som do hino real, caminhando passo a passo até sob o camarote da presidência, que saúdam em vénia de cabeça descoberta, depois recuando cerimoniosamente, voltando a avançar para se separarem nos cumprimentos ás quatro partes da assistência, ladeando e cruzando-se no meio do redondel, e sempre no cuidado dos cavalos bem ensinados, e na praxe dos movimentos.
Assenta o toureio equestre em três princípios básicos: cravar de alto a baixo, ao estribo e sem deixar tocar a montada. E, de uma maneira geral, além do mérito de equitador, necessita o cavaleiro de ser toureiro, isto é, de conhecer os touros e saber medir os terrenos. Carece o cavaleiro de firmeza de joelhos para as reacções do cavalo, que o deve temer mais a ele que ao touro, boa mão esquerda para mandar rápido, e boa direita para cravar, com pulso para aguentar a resistência, e certeza para encontrar o sítio próprio, com precisão. E o cavalo deve estar ensinado para todo o toureio, especialmente para entrar e sair nas quatro sortes clássicas: de cara, à tira, à meia volta e à garupa. E quando tudo corre bem, em tarde quente de verão, e o público, entusiasmado, aplaude cavaleiros e forcados, estes agradecem juntos, abraçando-se num gesto simbólico do seu convívio nos campos de Portugal — que a ambos dá o pão, o azeite, o vinho, e a alegria de viver ao sol.
El Terrible Perez
in "Tauromaquia Portuguesa, Cavaleiros e Forcados"
Revista Panorama Números 25 e 26, Ano de 1945, Volume 5º
Fotos: Fernando Henrique Lezameta Simões (1920-2011)
capa de Panorama
Nºs 25 e 26, 1945, Vol. 5º
índice aqui
Excerto do livro ABC da Tauromaquia de El Terrible Pérez, Edições VIC, 1944, aqui
Excerto do artigo Touradas em Portugal de Conde de Sabugosa aqui
Portugal, anos 40
Fotos: António Sérgio Carneiro Bustorff Silva (1923-2001)
Tenta, s.f. (de tentar)
Corrida de novilhos logo depois da ferra e da enchocalhação, para diversão ou para lhes experimentar a disposição para as lides tauromáquicas: "Um e outro, no entanto,... dos que aparecem nas tentas do Ribatejo e nas touradas de caridade lá poderiam, posto de banda de que picar touros é modo de vida humilhante... entrar francamente na vida do trasteio...", Fialho de Almeida, À Esquina, 54. // Taur. Operação que tem por fim verificar a bravura das bezerras que hão de ser escolhidas para a reprodução; faz-se em pátio fechado e com um picador que as castiga, para verificar a sua reacção.
Grande Dicionário da Língua Portuguesa António de Morais Silva
Vol. X
Editorial Confluência
Margarida Augusta Azevedo Relvas Navarro (1862- ?) foi uma das primeiras mulheres a fotografar em Portugal. Consegui descobrir a sua data de nascimento na fotobiografia de seu irmão, José Relvas (1858-1929), aqui.
Mais sobre Margarida Relvas aqui .Neste blog, fotografias de Margarida Relvas aqui e aqui ou na tag "Relvas".
Casa dos Patudos, Museu de Alpiarça aqui
Gerhard Richter
Cloud (1976)
Évangile selon saint Marc
Mc 5, 33-37
A la sixième heure, l'obscurité se fit sur toute la terre, jusqu'à la neuvième heure. Et, à la neuvième heure, Jésus poussa un grand cri : « Eloï, Eloï, Lamma sabacthani? » Ce qui veut dire : « Mon Dieu, mon Dieu, pourquoi m'as-tu abandonné? » Certains de ceux qui étaient là dirent, en l'entendant : «Tiens, il appelle Élie.» Quelqu'un courut imbiber une éponge de vinaigre et, l'ayant mise au bout d'un roseau, lui donna à boire en disant : «Attendez, voyons si Élie va venir pour le descendre à terre ! »
Mais Jésus, ayant jeté un grand cri, expira.
[...]
G.S. : Après cet appel sans réponse de Dieu qui n'éveille que moquerie ou pitié des hommes, Jésus gémit sa soif comme un homme, comme un être de besoins qu'il était...
F.D. : Mais c'est à ce moment-là qu'il se montre autre, et venu d'ailleurs: ce moribond pousse alors, dans un dernier effort, au son d'un grand cri, le souffle venu d'ailleurs. Par ce souffle il a respiré, il a vécu, il a parlé, par ce souffle rendu il quitte ce passage dans la chair.
Ce long cri du Christ abandonné des hommes, abandonné de Dieu son Père, ce cri qui appelle, sans réponse audible, ce cri n'est-il pas le modèle des mots d'amour, d'amour et de désir, aux limites de l'articulé et du son?
C'est par le cri que le nouveau-né en appelle à sa mère pour s'y blottir, se calmer, apaiser sa soif et sa faim.
C'est par le cri que tout enfant en appelle à son père pour être protégé des méchants.
C'est par le cri que tout humain fait appel pour préserver son droit à l'intégrité quand une part de son corps, trahie par la douleur, se dérobe à la cohésion de l'ensemble et se disloque. Ce cri alors en appelle au secours d'un autre, à son aide.
Cri du besoin, cri du désir, cri de l'amour trahi, cri d'un fils d'homme, cri de tous les hommes. En son cri, ils peuvent tous se reconnaître.
Ce cri, entendu par tous les témoins, ce cri étrange, mystérieux, insolite et inépuisable, n'est-il pas le message où déchiffrer la résurrection assumée de la chair, audible en ses prémisses, là, au moment de sa mort en croix, par Jésus de Nazareth?
Ce cri de Jésus exposé entre terre et ciel s'est répandu dans l'espace. Il résonne toujours.
Francoise Dolto e Gérard Sévérin
in L'Évangile au risque de la psychanalyse (Au pied de la Croix , Tome I )
Éditions du Seuil
© Éditions Universitaires, S.A., 1977, J.-P. Delarge, éditeur