Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2011

Sinais de Fogo (2)

 

 

 

 


 

 

Outra grande novidade da faculdade era que tinha alunas. Naquele tempo, não eram numerosas; e não havia, entre nós e elas, camaradagem nenhuma. Quando eu entrara para o liceu, ainda havia no último ano algumas, que eram entidades míticas de quem se diziam horrores, e os últimos remanescentes de o liceu ter sido misto. Entretanto, para a separação dos sexos, e para atender-se a uma população estudantil feminina, haviam sido criados em Lisboa dois liceus femininos. E, para nos espantarmos com a concentração de raparigas que estudavam (estudariam?) o mesmo que nós, muitas vezes tínhamos faltado, em grupos, às aulas, e tínhamos ido em excursão até um deles. Elas fugiam em grupos também, e não voltáramos lá, desde que, às esquinas, estavam polícias encarregados de enxotar-nos. Agora, na faculdade, lá estavam elas. E nós dificilmente concebíamos como colegas os membros de uma espécie humana, que, sem sexo, eram mães, tias ou irmãs, com algum sexo eram pessoas conhecidas, e com o sexo todo eram tudo isso, mas para os outros. As irmãs de um colega nosso haviam sido célebres por essa ambiguidade, que era aliás partilhada pelas primas de nós todos. Umas festas que havia em casa dele — que era um palacete nas avenidas, dentro de um jardim — acabavam sempre por elas e as amigas delas nos levarem para os cantos escuros da casa, para umas actividades meramente exteriores em que eram peritas. E contava-se, aplicada à casa, a história do senhor muito rico que, admoestando os rapazes que frequentavam as reuniões das filhas, recomendava que fizessem o que quisessem, mas não sujassem os reposteiros. As nossas colegas de faculdade eram, porém, animais estranhos. [...] E, naquele tempo, entre nós e as nossas colegas, não havia naturalidade de relações: ou eram tornadas inacessíveis pelo consenso geral, ou eram comodamente dessexuadas pela nossa timidez. Seria quase impensável que as namorássemos; e elas, na verdade, tinham namorados alheios à faculdade, que vinham buscá-las ao portão e não se atreviam a entrar nos corredores que, todavia, eram acessíveis ao público.

 

 

Jorge de Sena

in Sinais de Fogo pp. 44-45

© Mécia de Sena-Edições 70, lda.,1981 (aqui)

 

outro excerto da mesma obra aqui

 


 

publicado por VF às 00:29
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Sábado, 29 de Janeiro de 2011

Mário Cesariny

 

 

 

 

Figura (1972)

 

 

 

Jorge de Sena e Mário Cesariny foram os escritores que melhor captaram o pulsar erótico do Estado Novo. O primeiro pela ficção (Sinais de Fogo, romance sobre o agrilhoamento do regime), o segundo pela poesia (Real Quotidiano, metáfora sobre a vigilância da ditadura).

O submundo da província e da capital, das suas cumplicidades, vergonhas, ousadias, cobardias, emerge com magnificência nos dois autores. «O que importa é não ter medo: fechar os olhos/Frente ao precipício/E cair verticalmente no vício», escreve Cesariny.

Provocando o marialvismo então instituído, este rebela-se e assume o feminino da sua (nossa) androginia. Fá-lo com inteligência, com imaginação, com esplendor, com criatividade, com universalidade. A polícia de costumes humilha-o, a inteligentsia de esquerda menospreza-o. Ele não se deixa, porém, demover.

Através da metáfora, do fantástico, do perturbador, constrói um universo paralelo onde reina entre marinheiros, gatos, quartos, bares, ruas, engates, paixões, ludíbrios. A sua lucidez rola sobre as décadas como um filtro de inebriamentos. Cesariny faz-se, para sempre, um ser acima do tempo e do espaço.

Lisboa é povoada, nessa altura, por «putas, chulos, gatunos e marinhagem, uns príncipes!», exclama. Engenhosos fios de narrativa conduzem os mancebos que, ao deambularem pela cidade, conhecem os bas-fonds das transgressões secretas — e se fascinam por elas.

Depois, partem em «navios de espelhos» para guerras em África, o «último continente surrealista». Matam e regressam feitos caricaturas de heróis, heróis-travestis, vestidos coleantes, sapatos altos, cabeleiras loiras, lábios de sangue, canções de rouquidão. [...]

 

 

Fernando Dacosta

in  Nascido no Estado Novo

Editorial Notícias, 2001 / reeedição Casa das Letras, 2008  aqui

© Fernando Dacosta

 

 

Imagem:

Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006)

Óleo sobre tela aqui

 

 


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Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2011

Surrealistas

 

 


 

 

 

 

Ousados, independentes, caóticos, os cultores do surrealismo (do que está para além do real) marcaram a arte, a literatura, a filosofia, os comportamentos do seu século. Em meia dúzia de anos perturbaram a vida portuguesa, convocando-a para a modernidade. Foram o grupo intelectual mais libertário e incómodo da nossa cultura.

A sua formação surge em 1947, entre jovens artistas e intelectuais que frequentavam o Café Gelo, no Rossio, duas décadas depois do movimento se ter afirmado em França.

Antes, noutro café (o Herminius), outros jovens (estudantes da Escola António Arroio) haviam avançado com propostas anunciadoras da nova corrente. Cesariny, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Vespeira, Moniz Pereira e Pomar, a que se juntam António Pedro, Paolo, Júlio, Costa Pinto, Alexandre O'Neill, José Augusto França, Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, António Dacosta, Areal, Escada, Vespeira, Natália Correia, fazem-se-lhes referências.

Hostilizados pelos salazaristas e comunistas, mal vistos pelos católicos e burgueses, marginalizados pelos jornais e universidades, acabam, três anos depois, por separar-se.

António Maria Lisboa morre, Cesariny vai para Londres, Cruzeiro Seixas para África, Henrique Leiria para a América Latina.

 

 

 

Fernando Dacosta

in  Nascido no Estado Novo

Editorial Notícias, 2001 / reeedição Casa das Letras, 2008  aqui

© Fernando Dacosta

 

Imagem: desenho de António Pedro, 1948

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Sábado, 22 de Janeiro de 2011

caixadòclos

 

 

 

- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?

- Que és o esticalarica que se vê.

 

- Público em geral, acaso o meu nome...

- Vai mas é vender banha de cobra!

 

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...

- Este é dos fala sozinho na rua...

 

- Campdòrique, então, não dizes nada?

- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

 

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!

-É o do terceiro, nunca tem dinheiro...

 

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...

- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...

 

- Ah, agora sim, fazem-me justiça!

 

- Olha o caixadòclos todo satisfeito

a ler as notícias...

 


Alexandre O’Neill

In  Feira Cabisbaixa (1965)

 

 


 

 

 

 

 

©Assírio & Alvim aqui

 

 


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Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2011

Alexandre O'Neill, uma Biografia Literária

 

 

 

Ao sair da Telecine O'Neill percebeu que estava a ser muito solicitado por outras agências. Já tinha aliás trabalhado em regime de free-lancer com outras agências, como a MR Estúdios, de Manuel Rodrigues*, para quem fez muitas campanhas. «Há um slogan que ele fez na MR, feito para a Mobil, e que não foi aprovado, "Mobil Serviço, dê por ele sem dar por isso"; a campanha não foi aprovada.» (JM)**

 

Na MR fez as campanhas da Gazcidla, do café instantâneo Tofa*** - «Tofa: revelando num instante o segredo de um aroma» - e das canetas Parker****, com longos textos a acompanhar o slogan «Diz-me com quem andas dir-te-ei quem és». Num deles, o público alvo são os jovens: «Um jovem como tantos outros. Herdeiro de uma civilização, será o seu continuador. Estudante. Escrevendo, compreende o passado para construir o futuro. E mais tarde, quando sobre o papel as palavras se alinharem nervosamente, quando a mão lutar por seguir o cérebro que pensa, é o Amanhã que está surgindo e foi uma Parker que O escreveu.» Para as mulheres que pudessem ambicionar uma Parker, O'Neill escreveu: «Recortada no vermelho de um forro, entre o branco de um lenço de cambraia e o reflexo de um espelho, Parker brilha como uma jóia. Delicada, elegante, feminina - Parker. Um número de telefone: Parker. A hora de um encontro: Parker. Um nome, uma morada: Parker. Uma data a lembrar: Parker.»

 

Pois, leitor, assim era o mundo português em 1965: o rapaz usava a caneta para - que bagatela - construir o futuro; a mulher (chique), para apontar os afazeres do amor e da ociosidade. Mas conceda-se que é um bom texto publicitário (não se trata aqui de poesia), ao conseguir insinuar um tom de erotismo num objecto a ele tão ligado como a caneta, num tempo a ele tão avesso. Certo é que a Parker gostou do trabalho de Alexandre O'Neill, que começava a ser conhecido como publicitário com génio.

 

 

Maria Antónia Oliveira

in Alexandre O'Neill, uma Biografia Literária

©2005 Maria Antónia Oliveira e Publicações Dom Quixote


 

 

 

 

aqui

 

 

 

Notas:

 

*MR Estúdio e Manuel Rodrigues, neste blog, aqui

** A campanha para a Mobil foi aprovada, contrariamente ao que recorda João Martins. Veja um anúncio aqui

 

*** Tofa aqui

**** Parker em Portugal aqui

 


 

Maria Antónia Oliveira, autora da biografia de Alexandre O'Neill, fala sobre sobre o seu trabalho, aqui


publicado por VF às 13:06
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Sábado, 15 de Janeiro de 2011

Portugal (1965)

 

 

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!

 

*

 

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para o meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

 

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós...

 

 

Alexandre O’Neill

in Feira Cabisbaixa (1965)

©Assírio & Alvim

 

 

publicado por VF às 13:39
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Terça-feira, 11 de Janeiro de 2011

"Portugal era a feira cabisbaixa do O'Neill"

 

 

 

O cineasta António-Pedro Vasconcelos, que tinha 35 anos há 35 anos, recorda os tempos em que era difícil ser jovem num País vigiado e em que nem se podia beijar a namorada em público, mas onde também era impossível ser um velho intelectual activo e respeitado num regime que perseguia inteligência e liberdade.

 

Não é fácil explicar a um jovem de hoje - que julgará que o querem gozar quando se conta que a primeira televisão do realizador foi comprada a prestações para ver um jogo internacional do Benfica ou que chegou a pôr no "prego" (essa instituição antiga, onde se deixavam objectos, fosse a máquina de escrever ou o par de sapatos, como garantia do dinheiro emprestado) a aliança de casamento e o esquentador da casa de banho - o que era ter 21 anos no Portugal das décadas de 50 e de 60.

 

Só a partir de 1966/67 é que começa a surgir um maior consumo (televisão, semáforos, novos cafés) e, naturalmente, o boom da publicidade, que deu emprego a muita gente, dos escritores (O'Neill, Sttau Monteiro, Alves Redol, Ary dos Santos) aos cineastas (Fernando Lopes, José Fonseca e Costa e António-Pedro Vasconcelos, que filmou uma centena de anúncios).

 

O pior era, contudo, esse "ambiente de Feira Cabisbaixa, como tão bem definiu [no livro de poemas] o Alexandre O'Neill". Expulso de um café por beijar a namorada ou a conversar olhando sempre para a mesa do lado e tentando perceber se havia algum informador da PIDE a ouvir o que se dizia, com uma censura que só deixava projectar “Os Quatrocentos Golpes” depois de fazer 14 cortes no filme de Truffaut, ao sair dessa Lisboa provinciana, fechada e vigiada para Paris da liberdade e da vivacidade o choque era enorme.

 

Um jovem português de hoje, além de não sentir a vergonha ("era quase humilhante, a não ser que se tivesse, como cartão de visita, o estatuto de exilado, desertor, resistente") de ser identificado com o País da ditadura e da guerra colonial - o que era inevitável até 1966, "quando tudo mudou por causa do Eusébio no Mundial de Inglaterra" -, também não sente o mesmo contraste entre Portugal e o resto da Europa.

 

"Assediado para entrar no PCP, como toda a gente da minha geração (até porque os comunistas dominavam o Cineclube Universitário e a revista Imagem), apesar de ter ideais revolucionários, não aderi (nem nenhum dos meus amigos da época) porque li, quando era muito novo, um livro sobre os Processos de Moscovo e fiquei a saber o que era o estalinismo."

 

No fundo, a forma do seu grupo de amigos se manifestar era, por exemplo, distribuírem-se por uma sala onde era projectado um filme português daquela época e começar a patear - como fizeram no Éden, a 6 de Maio de 1960, na estreia de “O Cantor e a Bailarina”, de Armando de Miranda, acabando todos na esquadra.

 

"Um lado tenebroso do regime é que os intelectuais ou se exilavam, como o Jorge de Sena, ou então desistiam, morriam por dentro".

 

Um dos primeiros contemplados com os subsídios da Gulbenkian, em 1971 rodou Perdido por Cem, em torno de Artur, um rapaz da província (interpretado por José Cunha) que aproveita uma boleia de Rui (papel confiado a José Nuno Martins) para se escapar para Lisboa. Numa das cenas, filmada em directo na Pastelaria Suíça, no Rossio, o protagonista "lia Musil e olhava para as pessoas que por ali estavam, quase só homens, todos de chapéu, vestidos de negro, cinzento ou azul escuro, com um aspecto taciturno, como se fosse a Feira Cabisbaixa do O'Neill".

 

 

Fernando Madaíl

in "Diário de Notícias", 25 de Abril de 2009, na íntegra aqui

 

 

 

 

 

 

 

 

Cartaz do filme Perdido por Cem

de António Pedro Vasconcelos (Portugal 1972).

 

 

 

um post recente sobre António Pedro Vasconcelos e a sua obra aqui

 

 

 

publicado por VF às 22:44
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Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011

A Noite e o Riso (1969)

 

 

Eis-me pronto a retomar Santos, o Velho. Imagine-se: quatro dezenas de garotos com possibilidades Nopa reunidos numa sala estreita. Ali, um só programa: catequese e aceleradamente. Isto a teoria. E imagine quem puder minha pessoa de criança frágil, caixilhos de solidão acolchoada contra micróbios e correntes de ar. Eu de olhos e ouvidos por abrir lançado em semelhante maralhal. Não faço a mais pequena ideia sobre se havia outras crianças de famílias fofas nessas aulas, onde reinavam padres e senhoras devotadas, alindando os interiores dos candidatos ao encontro com a Terceira Pessoa da Trindade. O que recordarei enquanto recordar é a incursão de espanto e derrelicto quando Lisboa-a-louca me acometeu, de lados vários, por interposta amostragem da minha geração em Madragoa.

 

Num país católico porque sim, só pais possessos de frenético niilismo ousam desafiar o aparente brinde que a máquina religiosa concede às vielas quando organiza actos desses, colectivos, em que ao filho de ricos é ordenado misturar-se temporariamente aos muitos filhos da mãe. Destarte, a catequese de o Velho, Santos, tornou-se uma mini-Sorbonne Maio 68. Aos meus olhos esparvoados por veludos, o desvairamento das crianças ditas populares foi um disparo de canhão batendo em cheio num museu de porcelanas. Certa Lisboa veio-me assim: um sacerdote, ou uma senhora de antepassados convenientes, debitando Dogmas a um cardume de rapazes loucos por que chegasse a hora em que, findas as aulas a sexos separados, o encontro com as catecúmenas nos corredores do velhíssimo edifício permitisse o desporto, ainda incipiente, do apalpão à tripa forra. Para ganhar balanço nessa direcção surpreendente, os rapazes desmultiplicavam-se em palavrões sussurrados, gestos franceses, e até mesmo em onanismo sorridente, pastoral. Depressa percebi: para me entender com esta, para mim nova, espécie de pessoas, eu carecia da mais sumária iniciação na bronca. Humanismos.

 

Voltando a casa, repensava o visto e o ouvido, esforço aplicado de reter o que ensinasse a navegar águas desconhecidas. Criança sem irmãos nem ir à escola excepto para exames, sentia-me, não a boiar, mas a cair num fundo. A toda a hora e transe eu procurava não esquecer aquelas palavras e modos de as juntar que eram a única moeda convertível em intercâmbio humano no país madragoante. Podia uma de duas: ou refugiar-me atrás de noções pias e, assim escorado, olhar aquela malta inquietante como quem despreza um bando de perdidos; ou recorrer a esforços inventados para tomar o rumo oposto. Tive o instinto do vital. Isto é: havia aquela gente e o seu mundo: pois cabia-me chegar ao ponto de não me acantonar, sonso, mas de alinhar. Certa noite, já deitado, comecei, baixinho, recapitulação de quantas imprecações ouvira nos últimos dias, ensaiando mesmo alguns tiques de pronúncia sem os quais, já percebera, falaria estrangeiradamente, o vexame. Uma criada ouviu o meu murmúrio, veio escutar à porta. Não tardou que arremetesse quarto adentro, numa indignação:

«E eu a pensar que o menino estava a rezar !» Custou-me arrancar-lhe a promessa de nada dizer à minha mãe.

 

Que a maioria destas crianças não tomava a catequese a sério era mais do que evidente. Que iriam quase todas à cerimónia como um molho de pombos bravos dá volta nos ares antes da trovoada rebentar, era fatal. Mas que, apesar dos palpáveis factos e contra eles, o corpo docente insistisse, isso é que me deixava estupefacto. Por maior que fosse o descalabro em matéria de disciplina colectiva e compostura individual, a teima dos treinadores de liturgia e Lei era digna de registo. Padres e senhoras disparavam, contra a impermeabilidade de uma humanidade que desconheciam, sorrisos maleáveis como cobras de água, mas tão ineficazes como as turras duma varejeira na vidraça que a separa do ar livre. Na minha intestinidade caíam, caladinhas, as sementes primeiras duma descoberta que anos mais tarde brotaria em viço verde: o universo onde eu fora parido, amamentado e agasalhado, era de cegos.

 

 

 

Nuno Bragança

in  A Noite e o Riso pp.108-111

Moraes Editores, Lisboa, 1969

 

 

 

 

 

 

 

Capa de António Mendes de Oliveira

 

 

 

 

aqui

 

 

 

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Terça-feira, 4 de Janeiro de 2011

Cinema Novo (1963)

 

 

 

Rui Gomes e Isabel Ruth em "Os Verdes Anos", de Paulo Rocha.

(Col. Cinemateca Portuguesa)

 

 

Os Verdes Anos é o primeiro filme das produções Cunha Telles que, pode dizer-se, começavam com o pé direito: o filme seria premiado em Locarno, o nome de Paulo Rocha surgia nas principais revistas de cinema europeias como uma revelação.

Visto hoje, Os Verdes Anos têm o grande mérito de ser um documento precioso sobre Lisboa do príncipio dos anos 60, o seu provincianismo, o desespero e a sufocação de uma geração jovem. Para o cinema, o filme revelava ainda a sensibilidade de um compositor (Carlos Paredes) que construiu um tema musical que ficaria célebre (...).

Pela primeira vez depois de muitos anos este filme sintonizava-se com a realidade portuguesa, espelhava-a. Era um vento de mudança no cinema que por cá se fazia. Mas a mudança não estava só na respiração temática. Acontecia também (...) na respiração fílmica, na atenção aos movimentos de câmara, à realidade plástica dos planos, aos tempos.

Mais de vinte anos depois, Os Verdes Anos, não ganharam cãs, sabemo-lo... O que quer dizer que o Cinema Novo que nele se propunha o era, de facto.

 

Jorge Leitão Ramos,

in Dicionário do Cinema Português 1962-1988

Ed. Caminho, Lisboa, 1989

 

 

 

 

Isabel Ruth em "Os Verdes Anos", de Paulo Rocha.

(Col. Cinemateca Portuguesa)

 

 

Paulo Rocha era, por essa altura, relativamente marginal a quaisquer grupos. Estivera, é certo, por esses anos, perto de alguns dos universitários católicos que mais inovaram em matéria de gostos críticos, mas nunca teve nessas estruturas papel de evidência. Depois, vagueara pela França, com uma bolsa do IDHEC e estagiara com Renoir em Le Caporal Epinglé. Ao voltar, em 1962, trabalhou com Oliveira no Acto da Primavera e na Caça. Quando se decidiu passar à realização, foi buscar a esse grupo de católicos dois dos mais relevantes colaboradores: Nuno Bragança (1929-1985) que viria a ser um dos expoentes da nova literatura portuguesa dos anos 60 e 70 e o poeta Pedro Tamen (1934). O primeiro adaptou o argumento e escreveu os diálogos; o segundo foi autor da letra da canção leitmotiv do filme, musicada por Carlos Paredes (...).

Ainda, Verdes Anos, é o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda.

 

João Bénard da Costa

in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa

Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa

 

 

Textos e fotos reproduzidos de Amor de Perdição.pt aqui

 

 

 

 

"Os Verdes Anos", de Paulo Rocha (Portugal 1963)

 


publicado por VF às 17:29
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