Há muitos anos, quando as minhas sobrinhas eram pequenas, levei-as a ver Michael Jackson no estádio de Alvalade. Nada pode substituir a experiência de assistir a um espectáculo assim num estádio cheio, ter oportunidade de ver e ouvir aquele cantor e bailarino de excepção, acompanhado por aquela banda, a tocar aquelas músicas. Lembro-me de ter ficado surpreendida com a altura e a corpulência de Michael Jackson, são pormenores de que só nos apercebemos ao vivo, a televisão engana nas proporções e cria-nos estas surpresas.
Mais recentemente, já depois de todas as chatices, não pude deixar de o reconhecer no patético e comovente Willy Wonka (Johnny Depp) de Charlie and the Chocolate Factory (Tim Burton, 2005).
Ao receber ontem à noite a notícia da sua morte, um sms da minha sobrinha Rosa, já passava da meia-noite - "viste as notícias"? - seguido de breve conversa ao telefone, as duas emocionadas, lembrei-me da minha mãe a chorar quando morreu Marilyn Monroe, da capa do "Paris-Match" em casa dos meus avós.
Querido Michael Jackson. Descansa em Paz.
Frédéric Mitterrand nomeado Ministro da Cultura de França! A surpresa enche-me de alegria... e estremeço perante o desafio, logo sublinhado pelo “faux pas” com que acaba de se estrear, ao anunciar prematuramente, em Roma, que abandonava a Villa Médicis, e pelo qual já pediu desculpa, pela “descortesia” que o gesto representou para com a sua antecessora no cargo.
“Um inclassificável na Cultura” como ontem o descrevia o “Libération”, sim, um inclassificável, tal como André Malraux, que recordei assim que recebi a notícia, e "um tipo cheio de categoria, de respeito et de humildade", como comentou um leitor do jornal.
Leia os textos do Libération aqui e aqui
Imagem: aqui
É porque há sempre nela esse signo imperioso da minha morte futura que cada foto, ainda que aparentemente muito ligada ao mundo excitado dos vivos, vem interpelar cada um de nós, um por um, fora de toda a generalidade (mas não fora de toda a transcendência). Aliás, as fotos, excepto nos cerimoniais constrangedores de alguns serões fastidiosos, são para ser vistas a sós. Suporto mal a projecção privada de um filme (não há público suficiente, nem suficiente anonimato), mas tenho necessidade de estar sozinho diante das fotos que contemplo. No fim da Idade Média, alguns crentes substituíram a leitura ou a oração colectiva por uma leitura e uma oração individual, em voz baixa, interiorizada, meditativa (devotio moderna). É este, parece-me, o regime da spectatio. A leitura das fotografias públicas é sempre, no fundo, uma leitura privada. Isto é evidente para as fotos antigas («históricas»), nas quais leio um tempo contemporâneo da minha juventude, ou da minha mãe, ou, indo mais além, dos meus avós, e nas quais projecto um ser perturbador que é o da linhagem de que sou o termo. Mas isto também é verdade para as fotos que, à primeira vista, não têm qualquer ligação, mesmo metonímica, com a minha existência (por exemplo, todas as fotos de reportagem). Cada foto é lida como a aparência privada do seu referente: a idade da Fotografia corresponde precisamente à irrupção do privado no público, ou, melhor, à criação de um novo valor social, que é a publicidade do privado. O privado é consumido como tal, publicamente (as constantes agressões da Imprensa contra a privacidade das vedetas e os crescentes embaraços da legislação testemunham esse movimento). Mas como o privado não é apenas um bem (sob a alçada das leis históricas da propriedade), como ele é também, e para além disso, o lugar absolutamente precioso, inalienável, em que a minha imagem é livre (livre de se abolir), como ele é a condição de uma interioridade que creio que se confunde com a minha verdade, ou, se se preferir, com o Impossível de que sou feito, acabo por reconstituir, por uma resistência necessária, a divisão do público e do privado: quero enunciar a interioridade sem renunciar à intimidade.
Vivo a Fotografia e o mundo de que ela faz parte em função de duas regiões: de um lado as Imagens, do outro as minhas fotos; de um lado, a negligência, a indiferença, o ruído, o inessencial (mesmo que esteja abusivamente ensurdecido com isso); do outro lado, o escaldante, o ferido.
Roland Barthes
in A Câmara Clara, Nota sobre a fotografia (40)
Tradução de Manuela Torres - Edições 70 Lda
© Cahiers du Cinema/Gallimard/Seuil,1980
Imagem: Jacqueline Kennedy III (Jackie III) de Andy Warhol, 1966 aqui
Reality has always been interpreted through the reports given by images; and philosophers since Plato have tried to loosen our dependence on images by evoking the standard of an image-free way of apprehending the real. But when, in the mid-nineteenth century, the standard finally seemed attainable, the retreat of old religious and political illusions before the advance of humanistic and scientific thinking did not — as anticipated — create mass defections to the real. On the contrary, the new age of unbelief strengthened the allegiance to images. The credence that could no longer be given to realities understood in the form of images was now being given to realities understood to be images, illusions. In the preface to the second edition (1843) of The Essence of Christianity, Feuerbach observes about "our era" that it "prefers the image to the thing, the copy to the original, the representation to the reality, appearance to being"—while being aware of doing just that. And his premonitory complaint has been transformed in the twentieth century into a widely agreed-on diagnosis: that a society becomes "modern" when one of its chief activities is producing and consuming images, when images that have extraordinary powers to determine our demands upon reality and are themselves coveted substitutes for firsthand experience become indispensable to the health of the economy, the stability of the polity, and the pursuit of private happiness.
Feuerbach's words — he is writing a few years after the invention of the camera — seem, more specifically, a presentiment of the impact of photography. For the images that have virtually unlimited authority in a modern society are mainly photographic images; and the scope of that authority stems from the properties peculiar to images taken by cameras.
Such images are indeed able to usurp reality because first of all a photograph is not only an image (as a painting is an image), an interpretation of the real; it is also a trace, something directly stenciled off the real, like a footprint or a death mask. While a painting, even one that meets photographic standards of resemblance, is never more than the stating of an interpretation, a photograph is never less than the registering of an emanation (light waves reflected by objects) — a material vestige of its subject in a way that no painting can be. Between two fantasy alternatives, that Holbein the Younger had lived long enough to have painted Shakespeare or that a prototype of the camera had been invented early enough to have photographed him, most Bardolators would choose the photograph. This is not just because it would presumably show what Shakespeare really looked like, for even if the hypothetical photograph were faded, barely legible, a brownish shadow, we would probably still prefer it to another glorious Holbein. Having a photograph of Shakespeare would be like having a nail from the True Cross.
Susan Sontag
in On Photography
© Susan Sontag
Imagem: Jackie, c.1964 (Inauguration) de Andy Warhol, encontrada aqui
mais citações neste blog da mesma obra de Susan Sontag aqui e também aqui
Para a sé vai Stº António
Vestidinho de encarnado
Leva o menino nos braços
No seu livro vai sentado
Os anjos que o viram ir
Ficam de rosto inclinado
Vendo ir o Deus menino
De outro menino levado
Chega ao altar da Stª Virgem
Com muito amor muito agrado
Entrega-lhe o bento filho
Seu amor e seu cuidado
Adeus Jesus da minha alma
Adeus menino sagrado
Que são horas de matinas
E o sino não está dobrado
Deita a correr à torre
À torre em passo dobrado
Que das horas de matinas Para tocar a matinas
O tempo é quase passado
Os cónegos que o não ouvem
E que tinham bem ceado
Na cama se espreguiçam
E se viram do outro lado
À porta da igreja o demo
N’um cantinho acanhado
Espreita o santo menino
Para o colher em pecado
Toda a vida o bom do santo
C’o demo andou apostado
A qual há de ser mais fino
Qual há de ficar logrado
Vendo-o a correr à torre
E o tempo quase passado
Disse o demo agora António
Que te tenho apanhado!
Deixa dormir os meus cónegos
O seu sono regalado
Que à ceia estive eu com eles
E ficou tudo arrasado
Não és tu que hoje os despertas
Com o teu sino dobrado
Que da seca das matinas
Eu os tenho dispensado
Trás almoçar no aljube
Meu santinho desregrado
Que já não tangerás a matinas
No tempo determinado
Passou-lhe adiante dum salto / dum pulo
E se foi pôr emboscado
Na volta que a torre dá
Para o deixar assombrado
Salta o santo a dois e dois
Os degraus sem mais cuidado
Senão quando que deparou Senão quando de repente
Com o anjo condenado lhe apareceu o condenado
Com tão feia catadura
De tanto fogo cerrado
Que todo o valor de António
Ali ficou soçobrado desmaiado
Queria bradar Jesus
E em gesto de assustado
Quis dizer-lhe vade retro
Da garganta está tomado
Mas erguendo a mão direita
Mesmo assim desatinado
Na dura pedra da torre
Deixou o sinal sagrado
Toda a sé velha tremeu
E Satanás despeitado
Nas profundas dos infernos
Foi cair precipitado.
Tocou o sino a matinas
No tempo determinado
Os cónegos despertou
O demo ficou logrado
O bento sinal da cruz
Na pedra ficou gravado
E ainda hoje de memória Ainda hoje o sinal santo
Na torre está conservado Na muralha está gravado
Almeida Garrett
in manuscritos do Romanceiro garrettiano inédito
Colecção Futscher Pereira
Imagem: Santo António de Pádua (detalhe de Bom Pastor), marfim, séc. XVII, encontrado aqui
est essentiellement poétique. Comment en serait-il autrement, dans un pays dont la poésie est la plus marquante expression de sa vie spirituelle? La langue portugaise elle-même, depuis ses origines, a épousé, suivant une syntaxe souple et une phonétique richement nuancée, le rythme et la cadence du vers — la forme qui exprime, mieux que toute autre, les subtilités de l'âme. La poésie au Portugal est, à son tour, profondément lyrique. Il est vrai que Camoens, son plus haut poète, resplendit toujours et surtout comme un des plus grands épiques de l'Humanité, car on le considère à travers le poème qui l'a immortalisé: «Les Lusiades». Mais les connaisseurs savent trop bien qu'il occupe dans l’histoire littéraire du Portugal le sommet jamais atteint de la poésie lyrique. Et tous les Portugais, qui gardent sa renommée aussi jalousement que si c'était la leur propre, ne s'enivrent pas moins de ses chansons, de ses sonnets ou de ses vilancetes, que des puissants accents épiques de son poème tant célébré. L'art populaire portugais reflète donc, en tout, ce caractère lyrique. De même que la poétique populaire se complait généralement à créer — le plus souvent par improvisation—des quatrains qui sont de véritables petits poèmes lyriques, de même l'art populaire joue des formes et des couleurs, suivant les lois d'une même simplicité spontanée. C'est ce qui le rend sensible et émouvant. C'est ce qui le rend, surtout, spirituel. Car on dirait bien que c'est également pour chanter ce que le coeur leur dicte que tous ces artisans ignorés moulent la terre glaise, pour en extraire le galbe élégant des poteries; qu’ils couvrent d’ornements précieux les objets votifs ou simplement d’usage domestique; qu’ils tressent et enchevêtrent des dessins de merveille avec des fibres de sparte ou des brins d’osier; qu’ils dessinent avec du fil et de la soie, leurs dentelles et leurs broderies; qu’ils construisent, avec des filaments d’or et d’argent, les filigranes en arabesques; qu’ils dressent des arcs verdoyants aux jours de pèlerinage ou de pardon; ou que,finalement, ils prennent les pinceaux pour exprimer leurs caprices de coloristes. En chacun de ces ouvrages, en y regardant bien, vous trouverez toujours les traces de l’attachement affectif de l’artisan au terroir ou à la personne aimée. Dans la plupart de ces travaux, le mot AMOR apparaît fréquemment. En suivant la ligne gracieuse de leurs guirlandes, les quatre lettres expressives surgissent, inattendues—quand ce n'est pas un nom de femme: — Maria — ou celui du bien-aimé: — Manuel. Ou bien, une phrase discrète, une date qui rappelle un souvenir heureux, ou, tout simplement, un coeur stylisé — l’offrande suprême! Et aujourd'hui comme hier, ces motifs se répètent, immuables, tels que les vers d'un quatrain chanté jadis et que l’on entend toujours, car il est une expression heureuse du sentiment lyrique de chacun. De même, par le truchement de ces minuscules poèmes plastiques innombrables, sont dites et redites, de génération en génération, les lois obscures du langage des formes artistiques du peuple portugais.
António Ferro
in Quelques Images de l' Art Populaire Portugais
S.P.N. 1937
Capa de Paulo Ferreira (1937)
Desenho de Paulo Ferreira (1937)
fechado em Belém mas aberto aqui
Imagem: da obra Quelques Images de l'Art Populaire Portugais, design gráfico e ilustrações de Paulo Ferreira
S.P.N. 1937
Para o livro Retrovisor, um Álbum de Família, paguei em 2008 os direitos de reprodução de cinco fotografias: três do Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa, e duas da Getty Images. No A.F.M. interessei-me por cinco imagens mas acabei por só "comprar" três depois de saber que cada uma custaria 140 euros. Quando fui levantar o CD com as imagens que encomendara, manifestei à funcionária que me atendeu alguma perplexidade pelo facto de o preço ser o mesmo para qualquer fotografia da colecção. Foi-me respondido que a tabela de preços não havia sido fixada pelo próprio arquivo mas pelos “serviços centrais” da CML. Foi-me ainda comunicado, por e-mail, que “mencionar a proveniência das imagens é obrigatório e deverá ser Arquivo Municipal de Lisboa/Arquivo Fotográfico, e têm de entregar 3 exemplares da obra publicada.”
Lisboa nos anos 60 / Fotografia de Armando Serôdio
Arquivo Municipal de Lisboa/Arquivo Fotográfico
Considero este preço muito elevado, tendo em conta, por um lado, a deficiente qualidade das imagens - esta, que reproduzo acima no estado em que me foi entregue, apresentava a mancha que distinguimos no canto inferior direito, e todas três tiveram de ser tratadas em termos de contraste - e, por outro lado, o facto de se destinarem ao interior de um livro de média dimensão e pequena tiragem.
Com a Getty Images foi tudo tratado online. Preenchi um questionário sobre o destino a dar às imagens e foi possível, e mesmo agradável, dialogar com os interlocutores. Esta fotografia dos anos 40, comparável às do A.F.M., em estado impecável, custou-me 50 euros, sem eu ter de sair de casa, o que me pareceu um preço perfeitamente razoável.
Roma nos anos 40 / Fotografia de Ralph Crane
Getty Images
Sei que não estamos na América, e aprecio o esforço recentemente feito pelo Arquivo Fotográfico Municipal para colocar em linha a sua colecção, mas esta experiência foi desencorajadora em termos de futuros projectos.
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Os episódios da série Destins d’étoiles evocados em posts anteriores foram exibidos uma ou duas vezes pela televisão francesa na década de 80 e talvez nunca mais sejam vistos, a menos que alguma cinemateca se interesse um dia por exibi-los. A comercialização desses documentários, uma edição em vídeo ou, hoje, em DVD, é inviável devido ao quebra-cabeças dos direitos de autor, o que até se compreende diante da extensa lista de arquivos públicos e colecções privadas que desfilava em cada genérico final. O programa dedicado a Vivien Leigh, por exemplo, não incluía a mais pequena sequência do mítico E Tudo o Vento Levou, mas antes excertos dos testes realizados pela actriz para o papel, uma das muitas “trouvailles” que faziam o encanto dos programas e, acima de tudo, forma astuciosa de contornar o preço astronómico que teria custado citar um minuto que fosse do filme.
Tenho horror a escrever histórias sobre a minha família! A minha preocupação principal quando escrevi sobre ela foi não ofender ninguém e confirmar com o máximo de pessoas, sobretudo com os meus tios, o meu pai e os que naquela altura representavam a família. Escrever sobre a família é muito perigoso. Eu não sei se não tenho um primo que anda aí a dizer que é conde. Nada nos livra disso, percebe? O meu critério foi saber se as pessoas que representavam a minha família estavam de acordo que eu dissesse estas coisas. Acho que ir além disso não é permissível.
Qualquer pessoa tem direito à discrição. Quando os meus pais morreram, eu e a minha irmã tivemos dois critérios: separar a correspondência de pessoas com importância na vida política e cultural e ver se essas cartas tinham recordações pessoais. E não lemos as outras, porque não acho que tenha, em nome da história, de ir ler a correspondência pessoal dos meus pais. Eles guardaram aquilo, não sei porquê, mas não tínhamos o direito de investigar a vida pessoal deles.
Umas memórias precisam de um tom e de uma sustentação e, principalmente, de uma ideia claríssima sobre o que é que se vai dizer, o que é que se pode dizer e o que é que não se pode. Eu tendo a achar que se pode dizer muito pouco porque as pessoas não podem ser íntimas e amigas do A, B e C e depois contar coisas sobre eles! Aos meus amigos digo muitas coisas presumindo confiança e ficaria multo espantado se a violassem. Portanto, as memórias têm de ter objectivos muito bem definidos, que devem ser redefinidos a cada episódio.
Vasco Pulido Valente
em entrevista ao “Diário de Notícias”, 24 de Maio de 2009