Patrice Lumumba e o Rei Balduíno, Congo 1961
Calor
Num país como a Bélgica, dividido entre duas nações que se detestam, Bruxelas é uma ilha de tranquilidade, variedade e decência – uma espécie de Nova Iorque dos pobres, se a leitora entende o que eu quero dizer. Talvez por haver aqui muitos estrangeiros, o ódio recíproco de valões e flamengos esbate-se num universo muito mais vasto. (Não estou a exagerar quanto a esse ódio. Muitos anos antes de eu pôr os pés na Bélgica, tive colega belga, embaixador como eu no Conselho da Europa em Estrasburgo, quase na idade da reforma, jovial e rubicundo, que um dia, a propósito de coisa nenhuma me perguntou: Tu sais ce que c’est que la pollution? E respondeu ele próprio: Un Wallon dans la Meuse ! Et tu sais ce que c’est que la solution? Tornou a responder: Tout les Wallons dans la Meuse!! O homem não era só belga: era embaixador da Bélgica, e deveria ter por obrigação defender os interesses de todos os belgas, mas tal não lhe passava pela cabeça.
Em tempo de paz, o ódio esbate-se melhor. Nas grandes guerras dos europeus do século XX, essa sanha recíproca, pelo contrário, arranjou pano para mais mangas ainda. Embora, em 1914, um dos primeiros actos de guerra alemães tivesse sido a queima brutal e viciosa da biblioteca da Universidade de Louvain, barbaridade equânime pois aquela estava cheia de livros preciosos franceses e holandeses, durante a guerra os flamengos colaboraram muito com os alemães, enquanto os valões penderam para os franceses e os ingleses e os ajudaram. Na segunda guerra, tudo isso se repetiu, mas com mais violência e crueldade, porque, bem vistas as coisas, ser pro-nazi era feito muito diferente do que ser pro-alemão. Neste país, algumas das cicatrizes de 39-45 estão mal fechadas e deixam ainda sair pus e sangue.
Neste mês de Julho em Bruxelas, porém, não se dá por isso. Perfilou-se mal maior: o calor, para o qual Bruxelas está ainda mais mal apetrechada do que Lisboa está para o frio. (As duas cidades onde vivi mais convencidas de terem um bom clima, foram Lisboa e a Cidade do Cabo, tão convencidas, a despropósito, que se rapava nelas no inverno frio de rachar. Quando eu era novo, em Lisboa, não percebia porque é que os vestiários para sobretudos estavam dentro de casa. Deviam estar fora, porque era dentro de casa que se tinha mais frio.)
«Pior que Kinshasa» ouvi em francês belga, de mesa ao lado da minha numa esplanada. Cada um tem as suas referências africanas e as belgas são diferentes das nossas e menos frequentes. Não houve colonialismo mais bruto e desumano e a juventude belga de hoje condena-o muitas vezes. Mas a grande maldade dos dias que vivemos é o calor: 44 graus Celsius previstos para quinta-feira. Talvez desde as matanças mandadas fazer pelo Duque d’Alba não tenha havido tanto incómodo.
Mas nisto de calor, a palma d’ouro vai para Federico Garcia Lorca. Em Granada, dizia ele, no verão o calor é tanto que não se passa nada. «Dos y dos nunca llegan a ser quatro. Quedan siempre y solamente dos y dos».
Germaine de Staël
(Marie Eléonore Godefroid segundo François Gérard)
O passado e o futuro
Cosimo de Medici, o mais sábio e ponderado de ninhada de irmãos florentinos de que o mais vaidoso era Lourenço, o Magnífico, banqueiro respeitadíssimo e homem de trato exemplar - dava sempre a parede a pessoas mais velhas (no seu tempo as ruas de Florença não tinham passeios e quando nelas se andasse “dar a parede” , fosse à direita ou à esquerda, era sinal de deferência) – dominava práticas financeiras novas que no seu tempo animavam o comércio internacional europeu e era, nesse sentido, um homem virado para o futuro. Mas, por outro lado, detestava a invenção da imprensa por Gutenberg, não porque esta tivesse tirado valor à sua biblioteca de incunábulos mas porque leitura era exercício requintado que não se compadecia com a vulgaridade dos paralelepípedos de papel a que chamamos livros, saídos em quantidades industriais das prensas tipográficas. Para Cosimo, a Renascença fora manchada pelo aviltamento de uma das mais refinadas experiências humanas e, nesse sentido, era um homem do passado. Lembro-me dele às vezes, escrevendo onde escrevo agora: penas (plumas) propriamente ditas já tinham desaparecido quando aprendi a redigir mas canetas de molhar o aparo na tinta, canetas de tinta permanente, máquinas de escrever – comecei por uma Olivetti lettera 22 – que passaram a eléctricas, vi um dia no Diário de Notícias que Jimmy Carter estava a escrever as memórias dele num “word-processor”, até ao computador que uso agora e me obriga de vez em quando a pedir ajuda ao Cipriano que, sem sair do escritório dele, entra no meu écran e, enquanto o diabo esfrega um olho, em série de cliques que obedecem a gramática que não conheço, acaba com o impedimento ou corrige o desvio que me levara a telefonar-lhe. (Isto, na escrita. Quanto à leitura, enquerenço como Cosimo embora não em incunábulos mas sim em livros impressos em papel - assim fazem touros em Praças que não saem de um lugar por muitas capas que lhes metam pela frente. Não julgo que alguma vez me meta a ler um livro electrónico – é assim que se diz? – nem mesmo em leituras de verão, onde a modernice poupa imenso espaço dentro das malas de bagagem que se levem para férias.
A propósito, não só nisso os antigos eram diferentes dos modernos. Hoje, chegado o Verão, os europeus vão para férias. Antigamente iam para a guerra. Deixando memórias vivas, mesmo em país neutro aonde havia férias (agradeciam as mães portuguesas ao Dr. Salazar, a despropósito, pois fora Franco que travara qualquer apetite de Hitler para invasão da Península Ibérica). Lembro-me como se fosse hoje do Pai chegar ao Estoril ao fim da tarde e dizer que a guerra tinha começado.
Com a Europa a esfrangalhar-se, Trump na maior, o Czar e o Sultão sem ganharem tino, gente nova cheia de sangue na guelra, correcção política que não deixa pôr nomes aos bois e divórcio entre elites e povos parecido com o que alarmou Madame de Staël durante a Revolução Francesa, talvez os nossos verões tornem a pegar fogo.
Duas fotografias do álbum do Brasil, de finais do século XIX. O álbum pertenceu a meu tio-avô António Guilherme de Barros Pereira de Carvalho (1893-1939) e chegou-me do Brasil setenta anos depois da sua morte pela mão generosa de Maria Amália Fragelli, que o conservou depois do desaparecimento da única descendente directa de António Guilherme, Stella Maria Pereira de Carvalho.
Brasil, finais do séc. XIX
Aninhas, finais do séc XIX
A menina encostada ao mastro pode ser Ana Maria Barros da Costa Morais, prima de António Guilherme e de Guilherme Júnior, meu avô materno, cujo retrato se encontra na página anterior do álbum e aqui.
Leia mais sobre O álbum do Brasil
Outras fotografias do álbum do Brasil nos posts
S. João do Estoril , Portugal. Princípios do século XX
As nossas férias eram passadas em S. João do Estoril em Agosto e em Ferreirim em Setembro. Para S. João em geral vínhamos de comboio, o que não era complicado ou demorado. As poucas vezes que viemos de táxi o que me impressionava era a estrada ser tão abaulada, diziam que era por causa da chuva... como era estreita, e tinha dois sentidos, o carro desviava-se para a berma, e os que vinham em sentido contrário passavam melhor! Em cada Verão o meu Avô contratava o Sr. Feliciano (dono de um táxi) que era muito simpático, para nos levar a passear a Sintra. A Avó Alda gostava muito da frescura de Sintra, o passeio era sempre o mesmo, e só íamos uma vez. Assim era uma tarde muito desejada, que me dava um enorme gozo e prazer...
Tudo o que havia "de melhor" era usado em Lisboa, o menos bom no Estoril, e o mais velho e estragado ia para Ferreirim. A minha Mãe aproveitava tudo e por vezes ficávamos surpreendidos como "tudo fazia jeito" nos Buxeiros...!
Na praia da Poça tínhamos um grande grupo de amigos. As casas eram alugadas ao ano, e assim as famílias vinham para as mesmas casas todos os anos.
Poucos tinham casa própria.
S. João do Estoril , Portugal. Meados do século XX
Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Horácio Novais, 1930-1980.
José Manuel da Silveira de Sousa
Também na nossa adolescência, não falhávamos um "sábado á noite" no "Casino Estoril", onde aproveitávamos para dançar... Sempre gostei muito de vir para S. João do Estoril, era divertido. O tempo era muito preenchido e passava rapidamente... tínhamos muitos amigos, uns mais amigos que outros!!!!
Alda Rosa Bandeira de Lima Osório Bernardo de Sousa
2011
Nota: ver também os posts "Chalet Alda" e " Festas e Mascaradas"
Agradecimentos: Alda Rosa Bernardo de Sousa, Maria do Rosário Sousa Machado, blog Restos de Colecção, Biblioteca de Arte Fundação Calouste Gulbenkian
Folhas dos álbuns de Fernando Lezameta Simões:
Rallye de Miramar:
III Cintra Rampa 1950:
Capa de álbum:
Veja mais fotografias nos posts
Agradeço mais uma vez a Rita Simões Saldanha que disponibilizou generosamente os álbuns do pai para digitaliação e partilha neste blog.
Notas:
O “II Rallye de Miramar” teve lugar em redor da praia de Miramar (Vila Nova de Gaia) no norte de Portugal, entre 26 e 28 de Agosto de 1949, com partida de Cacilhas.
A prova, promovida pela secção regional Norte do “Automóvel Clube de Portugal”, foi vencida pela equipa formada por Jorge Seixas e Martinho Lacasta, num «Allard» M Type.
Agradecimentos aos blogs Heróis, Restos de Colecção e João Saldanha, neto de Fernando Lezameta Simões.
Em tempo de Verão regresso aos álbuns de família e colecções privadas que aqui tenho explorado.
À excepção da fotografia do chalet, as imagens deste post foram encontradas na blogosfera portuguesa. Não achei fotografias de fandangueiros, saltimbancos, mulheres dos bolos e banheiros nas praias de Portugal do princípio do século XX.
Sobre este álbum de recordações de Alda Rosa, “para os filhos, netos e bisnetos”, editado em 2011 e do qual foram feitos 3 exemplares impressos, leia neste blog o post Festas e Mascaradas.
Agradecimentos especiais a Alda Rosa Bernardo de Sousa, Maria do Rosário Sousa Machado e blogs Restos de Colecção, Teatro e Marionetas, Américo e Galafanha.
Chalet Alda , S. João do Estoril c. 1900
No meu tempo de menina, as horas em que se ia à praia eram totalmente diferentes das de hoje. íamos de manhã, e á tarde ficávamos no jardim. Só em dia de pic-nic é que ficávamos na praia até mais tarde. Estes almoços eram de "garfo e faca" e toalha posta na mesa. De casa vinham salada russa e um prato quente trazidos pelas criadas. Os banheiros emprestavam-nos uns banquinhos e umas tábuas que serviam de mesa e as cadeiras eram também deles. Claro que com tanta mordomia estes pic-nics não podiam repetir-se muitas vezes.
Mesmo para se comer na praia só havia barquilhos e bolas de Berlim. O homem dos barquilhos apregoava: Barquilheiro!!! Trazia uma lata alta com uma roleta, o comprador fazia girar a roleta que ditava a sorte de comer pelo mesmo preço mais ou menos barquilhos. O homem das bolas de Berlim apregoava: bolas de Berlim, perlim pimpim! Assim andavam pela praia estes vendedores. A senhora Ana dos bolos só apareceu mais tarde...
Para divertir as crianças aparecia o "Fandangueiro". Trazia um pequeno estrado, e fazia o seu número de sapateado (com a música do fandango). Também para nos entreter havia o homem dos cães. Trazia 4 ou 5 cães e com cães fazia o seu número. A um dos cães ele mandava «morrer à moda da China com três cartuchos...!» e o cãozinho deitava-se fingir que tinha morrido.
O "Catitinha" aparecia na praia todo vestido de preto pois tinha perdido uma filha. Protegia e gostava de crianças: apertava a mão a cada criança e apitava. Os miúdos corriam para ele, apesar de ser uma figura sinistra, com um grande cabelo branco...
Os "Robertos" apareciam com a sua voz de flauta e o número de pancadaria a que nos habituaram. No fim pediam dinheiro pelas "actuações" que tinham feito!
Robertos na Foz do Douro, início do século XX
Para os banhos de sol os banheiros também forneciam encostos e os toldos eram ao mês. Os banheiros tinham "chatas" que levávamos até fora de pé, para aí tomar banho. Muitas vezes atirávamos água uns aos outros e ali se fazia uma guerra com água, que muito nos divertia. As "chatas" eram cada uma do seu banheiro, e não havia rivalidade, era só brincadeira.
Também íamos ao Rádio Clube Português patinar...
Com tantos programas, as férias em S. João do Estoril eram muito apreciadas...
Alda Rosa Bandeira de Lima Osório Bernardo de Sousa
2011
Praia de Cabedelo? Portugal c. 1930
Fotografia do espólio de Rui Feijó, gentilmente cedida por Luísa Feijó a quem muito agradeço