Quarta-feira, 27 de Setembro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

E. Munch.winter

 Edvard Munch, 1899

 

 

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Winter is coming

 

 

 

Toulouse-Lautrec adorava o Outono, que para ele era a Primavera do Inverno, e embora esta semana Bruxelas esteja banhada no que os ingleses imperiais apodaram de Verão Indiano, o Inverno avizinha-se como monstro em pesadelo que exigiria almas ainda mais torturadas do que a do fidalgo-pintor – há mais de meio século, em cantiga portuguesa traduzidota de filme a cores de Hollywood, “…por mais que fizesse/Vivia a lembrá-la/E bebia absinto/Pelo cabo da bengala” – para apetecerem a estação das trevas e sofrerem por ela levar quase um ano antes de nos tornar a visitar (no Hemisfério Norte. Não sei como a correcção política dá conta do recado sem ofender as/os do Hemisfério Sul).

 

Para mim, como em todos os sistemas simbólicos que o bicho homem foi inventando durante milhares de anos para tentar viver com a noite e o dia, o mal e o bem, a força e a fraqueza, a mulher e o homem, a vida e a morte, o Inverno é coisa péssima (ao contrário do que achava o aleijadinho genial, que “ia ao Moulin Rouge/Enfrascar-se no vinho”) - e o de 2017-2018 vai ser “très very péssimo” como diria chauffeur de táxi poliglota que me levou o ano passado de casa ao aeroporto, onde ainda decorriam trabalhos de reconstrução, consequentes de terrorismo bombista.

 

No verão de 1914, ministro britânico ganhou nota de pé de página no grão livro dos viventes por ter dito que por toda a Europa as luzes se estavam a apagar. Para os europeus, a primeira metade do século XX foi uma Bernardette do caboz e, para muitos – incluindo, leitora, este seu criado – a segunda foi work in progress até ao colapso da União Soviética. Mas o mundo é mais complicado do que cada um de nós julga. Um bem que hoje se alcança/Amanhã já o não vejo/Assim nos traz a mudança/De esperança em esperança/E de desejo em desejo - ou, olhando para o ano que se aproxima e tomando outra inspiração clássica, de Bernardette do caboz em broncalina do camandro. Na América, Trump – e quanto melhor se percebe no que deram quer o partido Republicano quer o partido Democrático menos a gente se espanta. Na Europa, da Polónia ao Reino Unido, da Hungria à Catalunha, poucos dizem coisa com coisa; Macron procura, em vão, que os franceses se portem como alemães e Frau Merkel descobre com alarme que quem quer cada vez mais portar-se como os alemães são os alemães eles próprios. Très very péssimo.

 

O mal vem de longe. Durante a Guerra Fria, para encostar a URSS à parede, armámo-nos em defensores dos direitos do homem, levantando a fasquia bem acima das nossas posses – mas, como os soviéticos podiam muito menos ainda do que nós, passámos por virtuosos (assim um bocadinho como a filha do general birmanês). Ainda por cima, financeiros e economistas acham mais graça a tornar os ricos mais ricos do que os pobres menos pobres e o mau viver está a espalha-se por toda a parte. Por um tempo, sabedoria e bondade foram valores seguros. Se deixarem de o ser, acabou o meio milénio de intervalo lúcido a que tivemos direito.

 

 

 

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Domingo, 18 de Dezembro de 2016

brinquedos portugueses

 

 

Olavo 1.jpg

 

 

Em tempos, quando o Menino Jesus, ou tu, faziam anos, a família e os amigos da casa ofereciam-te objectos desconcertantes e inúteis, chamados brinquedos. Tu, está claro, ficavas muito contente com os presentes, por virem embrulhados em papéis vistosos, por constituírem uma novidade, aliás provisória (lamentável defeito da novidade!) mas principalmente por ser costume ficarmos contentes quando alguém nos oferece qualquer coisa. Na verdade, ou seja, no dia seguinte (a verdade só é completa no dia seguinte), verificavas que os tais brinquedos não correspondiam às tuas secretas ambições. Ah! O dia seguinte do brinquedo! Como é rápida a decadência do brinquedo, uma vez arrancado ao arranjo da montra da loja, onde brilhou, rodeado por outros brinquedos, valorizado por luzes hipócritas! Os brinquedos deviam ficar eternamente na suas caixas bonitas, ou penduradas nos tectos dos estabelecimentos para serem apontados pelos dedos indicadores dos meninos. É raro um brinquedo corresponder à imaginação da criança que o recebe. Deves lembrar-te de que, por volta dos teus seis anos, não achavas graça nenhuma a um boneco, por mais bonito que ele fosse. Eu, pelo menos, não achava. O que eu queria era um martelo verdadeiro para pregar pregos verdadeiros onde me apetecesse. A lei natural dos contrastes convida as crianças a desejarem ser adultas. Por exemplo: um cavalo vivo, com arreios de “cow-boy”, é artigo muito querido de todos os meninos. Pistolas autênticas, das que dão tiros homicidas, bicicletas de duas rodas, serrotes, etc., são objectos apreciadíssimos pela infância, que também aceita, resignadamente, as respectivas imitações, de lata, de três rodas, e sem dentes.

 

 

 

Olavo 2.jpg

 

 

 

Tenho um amigo um bocado parecido comigo nestes assuntos de educação infantil. Tem dois filhos a quem tudo permite e a quem gostaria de realizar todos os sonhos. Há tempo, um dos pequenos pediu-lhe um serrote com dentes afiados, e o pai fez-lhe a vontade. O serrote marcou época em casa do meu amigo. Vários móveis de estimação foram serrados pelo garoto que, trocadilho aparte, tem «bicho carpinteiro». O pai do serrador desgostou-se com a proeza do filho e julgo que lhe tirou o serrote. Mas teve desgosto quando lhe tirou o serrote. Disse-me, confidencialmente, que nunca mais o seu querido filho teria um brinquedo que lhe desse satisfação comparável à daquele serrote verdadeiro. «Resta saber — concluiu — se é melhor evitar a perda de móveis insubstituíveis ou a perda duma partícula da alegria de viver do meu filho». Mas, repito, não ê possível apertar em tão poucas linhas a extensa filosofia do brinquedo.

 

 

 

Olavo 3.jpg

 

 

[...] As crianças portuguesas já trazem de longe, quando nascem, uma indisciplina, uma desordem que não lhes consente manusear dinamite sem perigo de explosões. Logo, não as podemos presentear, aos dez anos, como acontece aos meninos alemães, com espingardas de tiro rápido, nem com cavalos de carne e osso, como é uso conceder às crianças inglesas. Sejamos prudentes com os nossos filhos, deliciosamente meridionais, imaginativos e bravos! Fabriquemos, para eles, alguns brinquedos mansos e já consagrados, mas tanto quanto possível aportuguesados.

 

 Olavo d’Eça Leal

in Revista Panorama, número 12, ano 2º, 1942

 

 

 

 

Olavo-dEa-Leal10.jpg

 

Olavo d’Eça Leal (1908-1976) pertenceu à geração de intelectuais e artistas portugueses que colaboraram na revista Contemporânea e no Salão dos Independentes. Escritor e célebre radialista da Emissora Nacional, a sua obra inclui o teatro, a poesia, as artes plásticas, a ficção e a literatura infantil. Escreveu e produziu dezenas de peças para a rádio e televisão, foi jornalista, ilustrador, e coleccionador ecléctico.

 

Em 1939 publica um livro para crianças, Iratan e Iracema, os Meninos mais Malcriados do Mundo, com ilustrações de Paulo Ferreira, que recebe o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Esta história ao jeito de folhetim radiofónico infantil foi lida pelo autor aos microfones da Emissora Nacional no programa "Meia Hora de Recreio" em trinta e oito fragmentos. Em 1943 é editada a sua História de Portugal para os Meninos Preguiçosos (1943) ilustrada por Manuel Lapa.

 

Desenhos, pinturas, livros e objectos de Olavo d’Eça Leal reunidos ao longo dos últimos quarenta anos pelo seu filho Tomaz encontram-se expostos na Casa da Pinheira [The House of the She-Pine Tree] - Casa-Museu e Guest House situada numa antiga quinta do século XIX próximo da aldeia do Sabugo.

 

 

 

 

 

Agradecimentos: Tomaz d’Eça Leal, Casa da Pinheira , Hemeroteca DigitalAlmanak Silva, Restos de Colecção, JuvenilbaseWikipedia

    

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Quarta-feira, 20 de Agosto de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 Tony Silva em "O Tal Canal" de Herman José, RTP 1983/1984 

 

 

 

 

 

O rame-rame

 

 

 “Que lentement passent les heures/Comme passe un enterrement./Tu pleureras l’heure où tu pleures/Qui passera si vitement/Comme passent toutes les heures” rimou Apollinaire na cadeia, acusado injustamente de cumplicidade no roubo da Gioconda do Louvre em 1911. (O Secretário de Estado das Belas Artes quisera matar-se. Roubo parecido na Europa de hoje levaria governante equivalente a dizer logo que a culpa não fora dele mas em 1911 havia honra — talvez até houvesse demais: três anos depois, os Imperadores da Alemanha, da Áustria e da Rússia, o Monarca constitucional do Reino Unido e o Presidente da República Francesa mandaram os europeus irem matar-se uns aos outros. E eles foram, a rir e a cantar). No devagar depressa dos tempos, chamou Marcello Mathias, com vénia a João Guimarães Rosa, aos diários que foi publicando.

 

Agosto vai escorregando pela ravina que leva a Setembro. Consta-me que de Carnide se vê um país cada vez mais triste: quem ande fora tem medo de cá voltar. Que da Quinta da Marinha se descobre que o mal chegar a alguns não faz bem a ninguém. Que entre os pobres de pedir as coisas vão melhor: já não os há como no tempo de Raúl Brandão e na versão moderna, com salários, subsídios e pensões abaixo da fasquia dos cortes e a vida levantada como um barco pela maré tecnológica — ecografias, mezinhas, baixas — mesmo se meninas e meninos forem para a escola em jejum esfomeado, nunca estiveram tão bem. Já quase todos têm posses para comer manteiga de vaca. Tirando o percalço de África e os descaros libertários e libertinos de Internet & Cia o Dr. Salazar, se voltasse agora, não estranharia muito o país.

 

Como no resto da Europa, falta grandeza. Dos nossos dois maiores políticos, Francisco Sá Carneiro morreu cedo demais e Mário Soares — a quem os portugueses devem mais do que a qualquer outra pessoa, incluindo o general Eanes, terem sobrevivido ao 25 de Abril em democracia — desbarata crédito em retórica disparatada de há dez anos para cá. Como no resto da Europa, quem manda tem a visão do saguão e o instinto da escada de serviço. Existirá alguém com cabeça e temperamento que nos arranquem deste rame-rame?

 

Há muitos anos, o dramaturgo Augusto Sobral inventou a “Adivinha” seguinte: “De meia tigela veio/E ficou meia tigela./Ficou a tigela em meio/Porque era meia tigela.” Podia ter sido inventada antes. Em 1963 pequeno proprietário, grande na sua aldeia alentejana, disse-me: “Isto, Senhor Doutor, o que é preciso é a gente estar bem com a lei que há”. E em 1834 a Câmara do seu concelho, miguelista como quase todas as câmaras durante a guerra civil, escreveu à Rainha D. Maria II afirmando lealdade “que o jugo do usurpador há muito fizera calar em seus peitos fiéis”.

 

Fará mesmo falta animar a malta? Valerá a pena?

 

                                                                                                                                                                                                               

 

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Quarta-feira, 13 de Agosto de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 Paula Rego - A dança

 

 

 

 

 

Quem sabe, sabe.

 

 

Entre as duas guerras (a de 1914-1918 e a de 1939-1945, lembro às leitoras mais novas), a propósito da explosão de exibicionismos que borbulhavam nas années folles, André Gide (francês e Prémio Nobel da literatura em 1947, lembro às leitoras menos dadas a leituras) dizia ver à sua volta mais artistas do que obras de arte. Nessa altura não havia nem internet nem twitter nem facebook nem blogs e, com o que hoje se chamam plataformas a coisa mais parecida seria o cinema, que Meliès e os manos Lumière tinham solto em Paris e vingara na Europa e nos Estados Unidos como a prole de um casal de coelhos na Austrália — mas hedonismo, egotismo e narcisismo são antigos e para lhes dar asas cada uma sempre usou o que tivesse à volta (ensimesmada: quando perguntaram às águas do lago se Narciso era mesmo belo, estas responderam que não sabiam porque quando ele vinha olhar-se nelas, elas aproveitavam para se olharem a si próprias nos olhos dele — ou, pelo menos, foi o que Oscar Wilde contou, não sei se antes se depois de ter conhecido Gide em Paris, onde viria a morrer. O mundo é pequeno).

 

De artistas e de obras de arte pouco ou nada sei mas há mais de dez anos virei comentador e, de silêncios aconchegados, longe da balbúrdia pátria, vou mandando bocas. Agora, chegado no começo do mês de Bruxelas, lendo os jornais e olhando para o que Conchita Cintrón chamava la pantalla chiquitita, suspeito que neste maravilhoso país que tão generosamente acolhia Freddy Kotter no seu seio a algazarra dos comentadores cobre de uma espécie de smog as coisas a comentar. Não é que estas faltem — desde o esforço vão do governo para transformar os portugueses em alemães (por via fiscal, ainda por cima) com Herr Gaspar, primeiro, e Frau Albuquerque, depois, a encaminharem-nos com um vasculho, como dantes os vendedores de perus pelas ruas de Lisboa, até à sanha súbita contra várias gerações da família Espírito Santo, reminiscente do azar dos Távoras — mas, bombardeadas pela cacofonia pátria, essas coisas e outras de menor porte deformam-se como as nossas caras na galeria de espelhos de uma feira de diversões.

 

Disse à Vera, dona do blog, que estava a pensar deixar de escrever o Bloco-Notas mas ela disse-me que eu não podia fazê-lo e que o mundo agora era assim, que todos podiam deitar palavra e que havia leitoras para tudo quanto se escrevesse. É, com efeito, um pouco tarde para protestar contra o ensino obrigatório, contra enciclopédias que anunciam à cabeça não garantirem que a informação que nos dão seja verdadeira e contra o ulular desafinado dos comentários de nós todos. Mas eu sou um pequeno-burguês de Évora e às vezes sinto-me como patrício meu, sentado sobre tábuas pousadas em tripés na primeira fila de um circo de província. A gaiola dos leões desconjuntou-se, o público saltou para fugir, e o meu patrício com as partes pudendas entaladas entre duas tábuas, sem se poder levantar, gritou: “Sentem-se, caralho, que os leanitos nã fazem mal”!  

 

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Quarta-feira, 6 de Agosto de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 Corridinho algarvio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cá em cima está o tiro-liro-liro…

 

 

Dantes, era tudo mais simples. Em Janeiro de 1975, vindo de Londres, dei por mim no Rocio ao fim de um dia de encontros, com hora e meia antes do encontro seguinte e fui comer um bife ao Nicola.

 

“Que cervejas tem?”

“Tenho todas.”

 

Havia cinco cervejas no mercado lisboeta e o resto ia à proporção — mesmo depois de entremeados os Capitães de Abril que em 1974, na peugada dos seus camaradas de 1926 e 1910, tinham virado de pernas para o ar a política na Pátria. Chão que deu uvas. Os golpes de estado agora são mudanças ordeiras e burocráticas, supervisadas por Bruxelas e Berlim, e o povo come e cala — já mandava Salazar… — porque se não calar, não come.

 

Em Janeiro de 1993, quando Clinton se tornou presidente dos Estados Unidos, havia 50 páginas na Internet. Hoje há milhões; amanhã haverá milhões de milhões. Google, redes sociais, twitter, tabletes, Skype, telefones: a bisbilhotice cacofónica não pára. Em raros sítios espertos e felizes o cliente tem sempre razão, os eleitores defendem-se bem dos eleitos, a justiça consegue ser independente, todos os sexos e todas as fés coexistem e o tempo dos humanos, curto no tempo do Universo, corre com mais bem-estar do que mal-estar.

 

Em sítios menos felizes “a dor humana busca amplos horizontes/ E tem marés de fel como um sinistro mar” (disse o Poeta). E, como o apetite por desgraças alheias é insaciável, em pouco mais de 100 anos passou-se de cantigas de cegos na rua que, nos casos céleres corriam o que corre um cavalo a galope (em 1815, a notícia da vitória de Wellington em Waterloo só chegou a Londres quatro dias depois da batalha) para partilha imediata de imagens e sons, com repórteres dando-nos a conhecer à hora de jantar o pior da maldade humana. Com canais e agências em concorrência desenfreada. Com homens, mulheres e crianças cheios de água na boca à espera dos desastres do dia. Tudo isto, mais o inventado em jogos e fantasias que embotam e ensandecem almas.

 

Entretanto, nós por cá todos bem. O 25 de Abril dera-nos sensação de centro do mundo que não experimentávamos desde o tempo de D. Manuel “O Venturoso”, quando havia em Lisboa cinco perfumadoras de luvas por cada mestre-escola. Essa falsa centralidade esvaiu-se, voltamos ao rame-rame triste, chegou a miséria da troika, mas vimo-nos livres desta e o governo começa a impressionar. De entrada — contra mundo — lembrava os liberais de D. Pedro IV, cercados no Porto por país miguelista. Agora poder e povo começam a entender-se, sendo abatidos pelo meio interesses de corporações, de seitas, de famílias. Será desta?

 

Para mudar a História, não chega. Era preciso fazer cantar nas escolas:

 

em cima está o tiro-liro-liro,                                                                  

em baixo está o tiro-liro-ló”

 

a ver se acabavam de uma vez séculos de vocação de mó de baixo em Monarquias, República, Estado Novo e Democracia.

 

 

 

Imagem aqui

 

 

 

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Sexta-feira, 25 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

Foto: Eduardo Gageiro

 

 

 

 

 

 

Aurora Clara de Abril

 

 

Assim chamaram à menina recém-nascida encontrada na roda dos expostos da Vila de Monsaraz por homens saídos para o trabalho em madrugada luminosa desse mês, em ano do terceiro quartel do século XIX — não me lembro qual. Nem o ano nem o dia, mencionado na acta duma sessão da Câmara. Há uma probabilidade em trinta de ser 25 e como quando li a acta não reparei (faltava ainda essa achega à nossa leitura do passado), pode ser que tenha sido mesmo.

 

Tal coincidência daria alegria à elevada percentagem de portugueses que acha o 25 de Abril a data mais importante da nossa história e que, como quase toda a gente, é supersticiosa. Eu não sei remontar tanto e na celebração do dia fico-me por três vinhetas, com as suas luzes próprias. Cada uma vale o que vale.

 

Por ordem cronológica.

 

Em 1975, poucos dias antes das eleições para a Assembleia Constituinte, amigo meu, minhoto, estava de passagem na casa de Ponte da Barca quando três criadas velhas da mãe — tão velhas que ainda eram naturalmente analfabetas e, por isso, mais sagazes e reflectidas do que muito doutor moderno — lhe vieram falar. Queriam perguntar ao Menino: “Como é que se vota na lei antiga?”.

 

Na Primavera de 1978, eu era primeiro representante permanente português no Conselho da Europa em Estrasburgo – lá chegado no ano anterior porque antes de viver em democracia Portugal não podia ser admitido (durante o regime dos Coronéis, a Grécia tivera de sair) — Victor Cunha Rego era nosso embaixador em Madrid, falávamos ao telefone e eu disse-lhe que tinha aprendido do pai que Portugal era um país maravilhoso, habitado por uma maioria de gente boa e generosa, do qual uma minoria de gente má e mal formada tomara conta, chefiada pelo pior deles todos, o ditador Salazar. “Pois é” respondeu o Victor. “Eu também fui educado por um pai assim. E é grave, aos 50 anos, um homem descobrir que o pai era parvo”. Com o 25 de Abril, Victor e eu tínhamos passado de vítimas a cúmplices; da oposição ilegal à máquina do novo poder. E quem tivesse a mão na massa começava a descobrir que Salazar não era só causa dos nossos males; era também, e sobretudo, sua consequência.

 

Em 2008, Sofia Pinto Coelho convidou-me para programa de televisão dela que, de cada vez, tinha o mesmo fio condutor. A Sofia pegava numa pessoa e confrontava-a com passagem do seu passado. A mim coube-me ser levado a vila alentejana onde há quase 40 anos trabalhara como antropólogo e a que chamara Vila Velha em livro que publiquei. Fui filmado a falar com pessoas amigas que não via há muito tempo, entre elas a Ema, analfabeta e ainda muito bonita. A Sofia pediu-me para eu lhe perguntar se a vida agora era melhor ou pior do que quando eu lá estivera. A Ema olhou-me espantada e respondeu: “Não passamos fome!”

 

As velhas de Ponte da Barca, o Victor e a Ema já morreram. Não me cabe adjudicar mas, quando começa a haver outra vez gente com fome em Portugal, talvez a resposta da Ema capture o mais importante do 25 de Abril.

 

 

 

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Sexta-feira, 18 de Outubro de 2013

carta de Timor (4)

 

Quarta Semana:

 

Esta semana chegou finalmente a oportunidade de assistir a um discurso do presidente. Full treatment.

Presidente feliz com lágrimas, de acordo com o Público. De 2a a 5a decorrreu na “Comissão de Acolhimento Verdade e Reconciliação” a primeira audiência pública sobre a guerra civil de 75 em que andaram todos a matar-se uns aos outros. Para quem não leu o Adelino Gomes, já várias vezes tinha sido marcada e outras tantas adiada. É um assunto do mais sensível já que muitos responsáveis políticos de hoje (tanto governo como oposição) foram responsáveis por grandes matanças na época. Desta vez fez-se mesmo. Era aguardado com enorme expectativa e durante as sessões Dili andou colada aos rádios para ouvir os depoimentos; os motoristas aqui do PNUD não saíam dos carros o dia inteiro, sintonizados na Rádio Timor-Leste, e quando saíam era para se juntarem em volta dum transistor. 

 

Note-se bem que isto na altura era Portugal. As nossas maravilhosas RTP, RDP e Lusa têm correspondentes em Dili. Adivinha quantos jornalistas portugueses estavam nas audiências? Quantos passaram por lá, nem que seja 5 minutos? Resposta – Um. Quem? Adelino Gomes que veio de propósito de Lisboa (no voo mais barato que encontrou e pagando do bolso dele as despesas em Dili...). Timor não é notícia. Como não estão a matar ninguém, não interessa para nada. Foram mortos uns milhares em 75 e nunca se falou disso? As feridas são fundas e a gente também teve responsabilidade. Mas o que é que isso interessa agora? Os jornalistas portugueses em Dili foram para a praia.

 

 

 

 

Aconselho vivamente a leitura dos artigos do Adelino Gomes, não posso acrescentar nada. Resta-me a minha própria comoção ao ver toda a gente a chorar com o discurso do Xanana (a começar pelo próprio, voz quebrada, olhos e nariz vermelhos, assoando-se, limpando a cara com o lenço, no meio das suas longas pausas habituais, desta vez mais longas ainda). Nem as moscas (abundantes) se ouviam.

 

 

Isabel Feijó

excertos de carta enviada a alguns amigos durante a sua primeira missão em Timor ao serviço do PNUD, em Novembro de 2003

 

Foto de Pedro Martins

 

Arquivo & Museu da Resistência Timorense aqui 

 

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Terça-feira, 29 de Janeiro de 2013

Une rage d'enfant (2)

 

 

 

 27 May 1977 -French writers Bernard-Henri Lévy and André Glucksmann

converse on the set of the television show Apostrophes

Photo: © Sophie Bassouls/Sygma/Corbis



J'ai, pour commencer, été qualifié de philosophe à mon corps défendant. J'avais certes parcouru la suc­cession d'examens et de concours qui vous sacrent professeur de ladite discipline. Je n'estimais pas que les palmes du « philosophe » pussent pour autant être déposées sur mon front. Je croyais que les détenteurs de ce titre prestigieux se comptaient sur les doigts de la main : Platon, Aristote, Descartes, Kant, Hegel. Peut-être Heidegger l'avait-il mérité du temps de sa jeunesse mais il compromit son titre en appelant étu­diants et collègues à suivre le Führer. Pis encore, cha­cun ayant droit à l'erreur, il avait, après la capitulation du Reich, tenté, trente longues années, comme un gros chat, d'enterrer ses déjections dans le sable de sa théorie. Du moins me semble-t-il après lecture attentive. Passons.


Si, jeune homme, je plaçais la barre de la « grande philosophie »  très haut, trop  haut  pour moi, mes contemporains au contraire la situaient très bas, plus bas que terre, car la prétention à la «sagesse» était passée de mode. Ils se voulaient alors savants et objec­tifs; ils s'affichaient sociologues, structuralistes, lin­guistes, économistes, dépositaires de savoirs plutôt qu'animés du désir de savoir. Le marxisme-léninisme, version École normale supérieure, régnait. Le vent tourna, dans les années 75-80, quand beaucoup de mes semblables se mirent à signer «psychanalyste et philo­sophe», «mathématicien et philosophe», biologiste et... historien et... écrivain et philosophe. La 2 CV Citroën se vit sacrer dans les gazettes «voiture philo­sophique». Que s'était-il passé? En déboulonnant les idoles du marxisme hégémonique dans l'intelligentsia parisienne, peut-être ai-je contribué à ce renverse­ment. Lorsque de bonnes plumes rejoignirent mes blasphèmes, Bernard-Henri Lévy et les médias bapti­sèrent un peu abruptement cette cohorte provisoire et volatile  «nouvelle  philosophie».  Si la science du matérialisme historique pliait sous les coups, force était de conclure que la volée de bois vert administrée, au nom de la philosophie, sur les adeptes de la dicta­ture du prolétariat n'était pas aussi  frivole  qu'on aimait à le dire.


Je ne laissai pas d'être surpris du retentissement de mon essai intitulé La Cuisinière et le Mangeur d'hommes sous-titré insolemment : «Essai sur le marxisme, l'Etat et les camps de concentration». Le voisinage des termes sonna comme un coup de carabine dans un ciel serein. Mon éditeur avait laissé dormir le manus­crit dans son tiroir pendant plus de six mois, anticipant la diffusion médiocre d'un texte qui heurtait ses convictions de gauche. Sorti le 15 juillet 1975, sans intervention télé, un seul passage radio sur Europe dans la folie des départs en vacances, mais soutenu par un bouche-à-oreille flatteur et imprévu, porté par quelques articles spontanés et enthousiastes de gens que je ne connaissais pas ou mal (1) , il tourna très vite au best-seller.


Des dizaines de milliers d'exemplaires s'arrachèrent dans les librairies et s'échangeaient sur les plages. C'était drôle, curieux, inattendu. J'avais écrit dans l'isolement le plus extrême, sans souci du public, juste pour exprimer la rage et le désir que je partageais avec quelques amis de «ne pas mourir idiot». Le brûlot véhiculait une révolte à fleur de peau contre le plus grand mensonge du siècle : le communisme. Il était rédigé par quelqu'un qui y avait goûté dans son enfance et que le Tout-Paris estimait «de gauche». Je jouissais d'une «bonne réputation». ... 



André Glucksmann

in Une rage d'enfant

[Chapitre 8. A quoi sert la philosophie ? * pp. 172-174]

Hachette Littératures

© Plon, 2006

 

1. Remerciements à Maurice Clavel, Jean Daniel et Bernard-Henry Lévy.

 

* Où il est suggéré que se connaître soi-même, c'est connaître Typhon en nous. D'où l'utilité des infos de 20 heures et l'examen des liaisons dangereuses: Freud et Junon, Alcibiade et Socrate, le prince Potemkine et le neveu de Rameau, Poutine et moi.

 


aqui

 

 

 

 

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Domingo, 9 de Dezembro de 2012

António Ferro (1895-1956)

 

 

 

 



Ferro, António Joaquim Tavares (Lisboa, 17-8-1895 - Lisboa, 11-11-1956). A sua personali­dade de escritor, jornalista e político evoca, habitu­almente, na recorrência memorial uma dupla cir­cunstância: editor de Orpheu, a convite de Mário de Sá-Carneiro, com apenas 19 anos; fundador--director do Secretariado da Propaganda Nacional (após 1944, denominado de Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo), por convite de António de Oliveira Salazar, a fim de promover a «política do espírito» do «Estado Novo». Sendo certas essas duas evidências, elas não esgo­tam contudo as manifestações de uma complexa vivência, que articulou de forma hábil a acção cul­tural com a acção política, entrelaçadas por uma muito particular dimensão estética, e que se pode, em visão estrutural, periodizar deste modo: 1914-17 (irrupção poética e cívica), 1918-32 (resistência à cultura e à política republicana demoliberal), 1933-49 (vertigem da propaganda salazarista) e 1950-56 (solidão do diplomata). [...]

 

Ernesto Castro Leal

in "António Ferro" Dicionário de História de Portugal- VIII

Coordenadores: António Barreto e Maria Filomena Mónica

© Livraria Figueirinhas

Imagem: A.F. c. 1940




 

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Quinta-feira, 6 de Dezembro de 2012

António Ferro

 

 

 

António Joaquim Tavares Ferro (1895-1956) 

 

 

A RTP2 exibe no próximo domingo um documentário sobre António Ferro, da autoria de Paulo Seabra, projecto que tive o gosto de acompanhar desde o princípio. O Paulo sabe que eu estimo António Ferro e o trabalho das equipas de que se rodeou no SPN e no SNI, e que gostava de ver mais valorizado o seu legado [1].

 

Sou suspeita, já que António Ferro era “muito lá de casa” [2ou melhor dizendo muito lá de casa de meus avós maternos, com quem vivi vários anos. E sem nunca o ter conhecido pessoalmente, nem a sua mulher, Fernanda de Castro [3], tenho a sensação de os conhecer desde sempre de casa de meus avós, que os recordavam com grande amizade e admiração. Com gratidão também: em poucas palavras, estes meus avós tinham sido ricos e perdido tudo em 1929; meu avô Guilherme Pereira de Carvalho [4], quase a chegar aos 40 anos e com três filhos pequenos, empregara-se pela primeira vez na vida a vender automóveis. Três anos depois foi convidado por António Ferro a integrar o SPN como seu secretário pessoal. Era o trabalho ideal para o seu feitio, a garantia de um salário ao fim do mês e, last but not least, a promessa de uma existência infinitamente mais “rica” do que tudo aquilo com que os meus avós pudessem ter sonhado desde o seu revés de fortuna.

 

Lembro-me de minha avó descrever uma viagem de navio à Argentina, por ocasião de um congresso de escritores, depois de se ter convencido de que "nunca mais faria uma viagem", e da satisfação com que recordava o convívio com intelectuais e artistas estrangeiros que passaram por Portugal nesses anos. Guardava dessa época uma vasta colecção de autógrafos em pequenos álbuns encadernados, especialmente concebidos para o efeito.

 

Ultimamente, novas descobertas proporcionadas pela exaustiva recolha documental e iconográfica realizada por Paulo Seabra para o documentário aprofundaram o meu interesse por António Ferro. Resta-nos agora esperar por uma biografia moderna digna deste homem carismático, que imagino, no auge da «política do espírito», a reinventar o Império assim à maneira dum produtor do cinema clássico de Hollywood.

 

 

 

ESTÉTICA PROPAGANDA UTOPIA no Portugal de António Ferro

 

RTP2 | DOMINGOS  9 e 16 de DEZEMBRO de 2012 | 21h

 

 

 

 

 

 

 

 

Notas: 

IMAGEM: Fototeca Palácio Foz (actualmente, na Direcção-Geral de Arquivos/Torre do Tombo) s/data, encontrada aqui e que lembra esta aqui

 

1. A loja A Vida Portuguesa, a vitória de um movimento cívico pela reabertura do Museu de Arte Popular, em 2010, e diversos blogs contribuíram de forma importante para o reconhecimento da produção do SNI. Mais neste blog aqui e na tag "arte popular"

 

2. Uma expressão favorita de João Bénard da Costa e título de um dos seus livros. Leia mais aqui.

 

3. Fernanda de Castro aqui  e numa fotografia de Cecil Beaton  aqui

 

4. Guilherme Pereira de Carvalho aqui e os meus dois avós nos anos 20 aqui

 

5. Fundação António Quadros aqui e aqui

 

6. A poesia dos simples: arte popular e nação no Estado Novo, de Vera Marques Alves aqui 

 

 

 

 

 

publicado por VF às 12:22
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