Domingo, 10 de Abril de 2016

"Colectiva" de A. calpi

 

 

A. Calpi Taças_n.jpg

 Galeria espaço AZ, Lisboa

 

 

 

 

Patente até 24 de Abril em Lisboa, a exposição "Colectiva" apresenta um vasto conjunto de obras confeccionadas por A. calpi desde o ano 2000 a partir de objectos abandonados, restos de colecção e materiais descartados.

 

A colecção de colagens, esculturas e assemblages, suportada por elementos de cenografia e decoração, inclui desde pequenos objectos até imponentes e delicados  "troféus" e "monumentos", erguidos dia a dia por A. calpi ao sabor do que se lhe ofereceu ao longo dum percurso criativo singular, marcado por incursões em géneros muito diversos e tendo por pano de fundo o amor pelo teatro e a alta cultura.

 

A quantidade e a diversidade de peças expostas, a sua laboriosa complexidade, e a forma como se encontram distribuídas pelos diferentes espaços da galeria conferem a esta primeira mostra a densidade de uma retrospectiva: meditação bem humorada e melancólica sobre a passagem do tempo e a vida dos objectos, cartografia dos estados de alma do artista, labirinto poético não isento de inquietação.

 

 

 

 

 

"Colectiva" de A. calpi

Curadoria: Eva Oddo [texto da exposição aqui]

 

Na Galeria espaço AZ aqui

Travessa Fábrica dos Pentes, 10

Lisboa

Exposição patente até 24 de Abril, Quinta a Domingo das 16H00 às 20H00

 

Acção dramática “Morre Pr’aí” / “Drop Dead” / “Die Hard” de 11 a 24 de Abril

 

Para adultos. Quintas, sábados, domingos e segundas às 19H30.

Nestes dias a galeria fecha às 19h30 e não será possível aceder depois desta hora.

Número limitado de lugares, sujeito a reserva por e-mail [colectivac@gmail.com].

 

 

 

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Segunda-feira, 29 de Junho de 2015

La vida es un sueño

 

 

 

La vida es un sueño y los sueños sueños son. Calderón cut a play's title out of that old Spanish proverb. Life is a Dream. The rest translates: 'Dreams are dreams.'

 

On the fifth of March 1933, the banks of the nation closed. Led more by a nose for drama than by the concern proper to a son, I hustled uptown to see how the 'old man' was weathering the crisis; my curiosity was not altogether sympathetic.

 

His business was located at 295 Fifth Avenue, the Textile Building, a hive of importers, wholesalers like himself, dark-complexioned men, immigrants all, most of them Armenians but some Anatolian Greeks, as well as a few Persians, Syrians and Egyptians. These men had come overseas from the East, propelled by a dream: that here their throats would not be cut. Working in the dust of carpets, living alone in dark back rooms, depriving themselves of pleasures, they'd put the dollars together, year after year, obeying the voice in the air of America; to accumulate money; that was safety, that was happiness. They married late, unromantically, going back to their native lands, as my father had, to find a proper woman out of their own tradition, ten, fifteen, twenty years younger, then made children as quickly as possible in half-paid-for homes while dutifully continuing to feed their accounts in banks whose doors, that morning, had remained locked.

 

Generally these men entered my father's store only when they had a customer whose needs they weren't able to meet from their own stock. They'd escort this buyer to Father's place and there pick up, in place of a profit, a commission. These encounters were rare since they were a last resort. My father's competitors paid each other no casual visits. But when I walked in that morning, there they were, a dozen or more, sitting cross-legged on piles of three-by-five Sarouk or Hamadan 'mats', clumped together in static postures, like hens roosting. Motionless, inanimate, they seemed to be waiting – but for what? Occasionally a few mournful words would be mumbled, a puzzled complaint. No response was expected, none offered.

 

Skirting the motionless figures, I circled back to the small desk where I was supposed to tend the accounts-due books. With business as bad as it had been, there'd been little to do that summer. I'd typed a few letters: 'Your immediate check would be sincerely appreciated' or 'We will regretfully be forced to place your account in the hands of our lawyers.' But most of the time I'd tilted up the large stock of our book and hidden The Brothers Karamazov behind it. This had been noticed, of course, and reinforced the general opinion that I was a young man without a future.

 

On this morning I sat idle, like the others, studying the assembly of merchants, men whose skins had once been a rich olive and were now pale from worry and the cold light that concrete walls shed. They're like shipwrecked sailors, I thought, thrown up on a desert and waiting for someone to rescue them.

 

Actually my father's business had gone 'kaput' - his word — three years before, in 1929, when the market collapsed. He'd put the yield of a life's labour into a stock issued by the National City Bank. Bought at just over 300, climbing as millions cheered past 600, it then rumpled with all the others down the mountain of high finance, like the boulders of an avalanche, to 23. At that time, he'd thought of his disaster as something for which he was in some way responsible; he must have done something wrong, made some awful mistake. Had he been outsmarted? Had he been cheated?

 

But now, in 1933, on the day the banks closed, surrounded as he was by men who shared the catastrophe — no one smarter, no one luckier, he knew them all to be as ordinary as he was - Father must have begun to accept that what had happened was more serious than any mistake he could have made. The men around him were all bleeding from the same invisible lesions. In a few years many of them would be out of business. They all shared a dread of what was coming.

 

 

Elia Kazan

in  A Life   p.102-103

© Elia Kazan 1988

 

 

Elia Kazan.jpg

 

 

On board the Keiser Wilhelm which brought us to America (1913)



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Terça-feira, 23 de Dezembro de 2014

Consoada

 

Natal consoada Panorama.jpg

 

 Aparador da Consoada

Composição do natural, de Francisco Lage*

 

 

Rabanadas da consoada  (Douro)

 

 

Pão de forma                          1

Ovos                                         6  a  8

Manteiga                                50  gramas

Açúcar                                    1  quilo

Canela                                    q.b.

 

 

Põe-se o açúcar a ferver com água suficiente e deixa-se tomar ponto de espadana.

 

Corta-se o pão às fatias finas, não se utilizando as dos topos. Batem-se os ovos e neles se mergulham as fatias até ficarem bem repassadas. Fritam-se logo a seguir na calda, a que se juntou a manteiga, até que os ovos que as emvolvem fiquem bem cozidos. Com uma escumadeira vão-se retirando as fatias e colocando numa travessa funda. Polvilham-se de canela e regam-se com o resto da calda em que se fritaram.

 

 

 

 *

 

 

Sonhos fofos

 

 

Ovos                                        6

Farinha                                  1  chávena

Manteiga                              60  gramas

Açúcar                                   90  gramas

Canela                                   q.b.

Sal                                          q.b.

Fermento em pó                1  colher de chá

Calda de açúcar                  q.b.

 

 

Põem-se a ferver o leite, a manteiga, o açúcar, a canela e o sal; levantando fervura vaza-se-lhe para dentro, de repente, a farinha e mexe-se até que fique enxuta e cozida.

 

Deixa-se então esfriar um pouco e juntam-se o fermento e os ovos, um a um, ligando-os muito bem com a massa. Amassa-se com a mão até ficar uma massa leve. Fritam-se colheradas desta massa em bastante óleo ou azeite fervente. As colheres devem ser de sobremesa e pequenas pois os sonhos crescem bastante enquanto se fritam.

 

Cobrem-se depois os sonhos com calda de açúcar não muito espessa e aromatizada com baunilha e servem-se frios.

 

 

 

M.A.M. [pseud. colectivo de Maria Adelina Monteiro Grillo e Margarida Futscher Pereira]

in Cozinha do mundo português [p. 661 e p.664] 

Porto: Livr. Tavares Martins, 1962

 

* Imagem: Foto Mário Novais

Revista Panorama, Número 4, III Série, Dezembro de 1956

in Caderno "O Natal Português" de Francisco Lage

 

 

 

 

FELIZ  NATAL 

 

 

 

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Sábado, 8 de Março de 2014

L'Homme Sans Passé

 

 Thérèse Delpech

 

 

Chaque époque a l'épidémie qu'elle mérite. Au temps de Freud, ce sont les maladies de l'âme qui font une entrée spectaculaire. Elles avaient certes une histoire aussi longue que celle de l'humanité, mais au moment où la psychanalyse voit le jour des bouleversements historiques inédits multi­plient les risques de déséquilibre psychique. Dès l'Antiquité, Thucydide et Euripide, évoquant respectivement la guerre du Péloponnèse et la guerre de Troie (1), décrivent les ravages qu'exer­cent sur la psyché les grandes transformations de l'histoire. Au XIXe siècle cependant, la tourmente a quelque chose d'incommensurable avec tout ce qui l'a précédée, car il s'agit d'une perte irrépa­rable du passé, décrite par Chateaubriand dans les Mémoires d'outre-tombe. Un abîme sépare désormais l'ancien monde et le nouveau. L'esprit, tourmenté par cet abîme, s'engage dans des aven­tures intérieures dont témoignent les portraits romantiques, avec leur regard sombre tourné vers le dedans. Ce qu'ils y voient, Freud pense l'avoir découvert près d'un siècle plus tard, au terme d'une odyssée personnelle aussi longue et péril­leuse que celle d'Ulysse, où il se retrouve non à Ithaque, l'île de l'heureux retour chez soi, mais à Thèbes, lieu de meurtre, de suicide et de culpabi­lité, où règne l'« inquiétante étrangeté » décrite par le romantisme allemand. Que s'est-il donc produit ?

 

Le rapport que l'époque entretient avec le passé fournit précisément une réponse. Au XIXe siècle, celui-ci subit de tels coups de boutoirs - poli­tiques, familiaux, religieux - qu'il explose littéra­lement, faisant voler en éclats tous les repères de la tradition. Balzac dira que l'on se trouve désormais au milieu des débris d'une grande tempête. Rien n'avait préparé le psychisme à de tels bouleversements, car la conjonction de la tabula rasa de la Révolution, de la remise en cause de l'autorité du pater familias, et de l'apparition d'un monde laïcisé n'avait pas de précédent. Les névroses que traite Freud sont souvent l'expres­sion du vertige qui en résulte : l'intériorité est comme perdue dans un labyrinthe (2). L'inventeur de la psychanalyse n'aurait donc pas imposé à l'humanité sa névrose personnelle, comme le prétendent ses détracteurs. Il n'aurait pas davantage fourni une explication universelle du psychisme humain avec le thème du parricide, comme le voudraient ses fidèles. En créant une nouvelle science de l'âme il aurait simplement exprimé la tragédie intime de son temps.

 

Thérèse Delpech

in L'Homme Sans Passé, Freud et la Tragédie Historique

(Prologue - La Grande Rupture)

© Éditions Grasset & Fasquelle, 2011

 

 

 

1. Raymond Aron a souligné les analogies entre les bouleversements introduits par les grandes guerres euro­péennes et ceux de la guerre du Péloponnèse.

 

2. Voir le thème du labyrinthe chez Chamisso, où le diable joue le rôle du guide.

 

 

 

 

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Domingo, 15 de Setembro de 2013

Timor, páginas de um diário poético (2)

 

Nas praias solitárias da ilha de Timor as frondes e as palmas sacodem já uns vagos restos de neblinas. Vale de Lahane acima vão fugindo esgarçadas pelos fustes mais altos; alcandoram-se, por fim, ameaçadoras, nas ramagens sombrias da verde floresta de eucaliptos. As linhas de cumiada cobrem-se de uma vegetação estranha. As árvo­res são as mesmas, os eucaliptos de tronco rugoso e escuro, mas em vez de folhas pegam-se aos ramos e raminhos os farrapos de musgo, cor do nevoeiro. Estranha paisagem, repito, como a de um país do Norte, onde a voz se escoa em surdina e o olhar descobre formas deambulantes e translúcidas, por entre a profusão de fetos arborescentes, polipódios, «ninhos de ave» e outras plantas que recordam os primei­ros tempos da Terra. Verdadeiramente, uma paisagem de sonho onde a solidão cami­nha a nosso lado e se insinua connosco nas profundidades inenarráveis do mistério. Quando, porém, o sol devassa aquela penumbra esverdeada e evapora de todo os nevoeiros, é ainda a solidão que nos espera, mas uma solidão alheia aos secretos apelos da vida. A natureza remoça, temporariamente, mas sem a omnipresença das seivas criadoras. E o mistério perdeu-se.

Era o tempo de abrir a alma aos quatro ventos, subir para as alturas e aspirar o ar fino e frio; de me sentir o senhor da Terra, «Rainai» de Timor, absorto... Das grandes alturas a vista imensa abarca montes e montes, serranias cruzadas, dois a três mil metros rolando, como as vagas de um mar fortemente encapelado. A ilha sente ainda a proximidade do anel de fogo que nas Flores e em Lomblem ascende em majestosos vulcões; do Tata-Mai-Lau posso abranger em dias claros de Setembro o maior comprimento, e de ambos os lados o mar sem fim, limitado ao Norte pelos maciços das restantes ilhas do grande arquipélago: Alor, Ataúro, Liran, Wetter, Kissar...

Mas ensimesmado pelo sortilégio vegetal da minha ilha havia de descer aos vales umbrosos onde me esperam tantas surpresas e deslumbramentos. Para que lado me dirigir? A costa norte é já sobejamente conhecida desde Maubara a Lautem. Com pequenas variantes, acidentes de rocha, sobretudo, a charneca doirada onde os eucaliptos de tronco estrangulado e alvadio, como de róseo marfim, os coqueiros da beira-mar, os «akadiros» e as palapas, — figuras extáticas do classicismo dos trópicos —, se misturam às acácias de para-sol, às casuarinas das margens dos ribeiros e ainda às manchas viridentes, contrastadas, dos bosques marítimos. Viria, passados tempos, a descobrir-lhe as surpreendentes belezas, quando, saciado dos vergéis e selvas misteriosas da costa sul, viesse repousar na sombra acariciante dos parques de tamarindo e jujubeiras? E ao ouvir o cristalino acento de um regato perdido na solidão ardente, saberia então olhar os elementos de que era feita a paisagem desprezada? E aprenderia a amar as grandes linhas sóbrias de uma praia solitária, de uma escarpa descida verticalmente no mar, de uma encosta onde a erosão abria profundas feridas, ...as colinas ondulantes e, sobretudo, a pureza luminosa que se filtrava na tarde calma pela folhagem clara da floresta aberta do Eucaliptus alba?



 

 

Timor, Páginas de um Diário Poético

Ruy Cinatti

"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"

Números 36 e 37, ano de 1948

 

Foto: Ruy Cinatti (1947)

 

 


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Domingo, 1 de Setembro de 2013

Timor, páginas de um diário poético (1948)


... São quatro e meia da tarde. A chuva deve durar mais hora e meia. Não há nada a fazer. Sinto-me feliz, contente... Supor que me encontro tão longe de tudo!... Longe das complicações humanas, da vaidade dos cargos, da estupidez consagrada em frases de estereotipo... Para me sentir feliz, basta-me esta choupana desconjuntada e a companhia silenciosa dos indígenas. Encontro-me em perfeita comunicação com o ambiente, numa exaltação sossegada e plena. Encostado ao batente da porta, vou entretecendo ideias vagabundas, sempre à beira do sonho ou da sensação. A Natureza pensa e o homem segue os instintos de uma reminiscência obscura. Os indígenas conseguiram acender uma fogueira. Não posso dominar a comoção que me obriga a envolver os companheiros num olhar de profunda simpatia. Ei-los, acocorados, silenciosos, prontos a obedecer ao mais pequeno sinal. Não dizem nada, mas pensam decerto no «malaio» que os manda ao alto cimo das árvores para colher folhas e flores. Um deles pôs-se de joelhos e, de olhos dilatados, vai soprando a fogueira hesitante. Outro, dobra nos dedos adestrados a folha de begónia, dá-lhe a forma de um copo e estende o braço para a goteira aberta no telhado de capim. Como lhes estou agradecido!... Inteligentes, profundamente psicólogos, incapazes de esquecer, de uma dedicação sem limites. Pensar que estes desgraçados timorenses sofriam resignadamente a incompreensão de quase todos, tinham passado por uma guerra sem quartel... — E agora?!... Exceptuados os missionários, quem se importa com a alma do indígena?! Onde clamam as vozes de Afonso de Castro, de Celestino da Silva, de Armando Pinto Correia... de tantos outros, nobres e humildes que à terra de Timor deram a inteligência e o coração português? Existia uma certeza: mais cedo ou mais tarde a Verdade havia de vencer nas almas; a pureza, a justiça e outros poderes mais transcendentes ainda, seriam coroados pela realidade magnífica de um Timor novo. E a força dos jovens não temia os obstáculos, nem a lógica cerrada dos raciocínios interessados. Quem não sabia defender-se e muito menos atacar, só podia ter uma linha de conduta: seguir em frente, fiel a si próprio e às gerações inúmeras... «talent de bien faire»... «désir»...


 

Ruy Cinatti em Timor

 

A chuva diminui; o céu clareia um pouco. Desanuviam-se os pensamentos e baixa-se à realidade rítmica da vida. Os companheiros estão prontos. Vamos partir dentro de alguns instantes. Fragmentos de poesia afloram no meu espírito: «Ilha perdida de mistérios densa...» Vamos partir. Como sucedeu a Alberto Osório de Castro: «pelas cinco horas da tarde, sob um miúdo aguaceiro que se desfaz no radioso entardecer de nácar — róseo, flavo, verde de água, lilás».

 

E a conversa prossegue... o diálogo silencioso, por vezes iluminado, como em noites secas de Setembro, de fantásticas visões: o céu e o horizonte do mar fulgurando por detraz da fímbria em fogo das nuvens, som que o rolar do trovão seja mais que um surdo murmúrio distante. Diálogo traduzido em movimentos incompreensíveis, como os de um enamorado ainda hesitante, suspenso, não fosse com uma certeza mais fácil quebrar o encanto que a presença amada não teme. O descobrimento da árvore revelada nos sonhos, o Podocarpus imbricata, nos cimos da Mate-Bian, a montanha da alma dos mortos, depois de dois dias de procura estéril, em que o desejo foi mais forte que a vontade. A esperança segura, inabalável, de lá voltar um dia, para que na sombra esverdeada dos fetos arborescentes e junto da fonte glácida onde as colocásias molham os limbos lustrosos, possa reencontrar-me e jurar os votos de uma vocação definida: a de uma existência serena e silenciosa como a da floresta de paus-rosas, em Citrana, onde caminháramos durante horas seguidas. Onde, também, sem dar por isso, me tinha entregado à mais activa das missões: a de um homem para quem o florir da Natureza simboliza o resultado heroico de uma meditação e o trabalho fecundo ao fluir longo de um período de maravilhoso silêncio.

 

E posso ainda julgar descer à rua, para colher nos dedos transfigurados o véu de luar azul? Ou sequer as finas hastes de certas orquídeas de cachos estrelados, quando o cavalo teimoso me levava por sob a penumbra cinérea das casuarinas ? ... A neve perfumada dos cafésais em flor de Fatú-Bessi, a Sintra de Timor, de ravinas sombreadas pela «madre del cacao»... Quantas e quantas recordações se não levantam! É tocar ao de leve nas águas da memória, para que, sobrepostas e logo separadas em ondulações suavíssimas, ressurjam as imagens e a doce comoção que a saudade imensa reergue das brumas da ilha perdida.


Ruy Cinatti

in Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo

Números 36 e 37 , 1948



Notas:


Imagem em Timor-Leste History Anthropology  aqui

Espólio de Ruy Cinatti na Biblioteca Universitária João Paulo II, Universidade Católica Portuguesa

 

 

Leia também O Timor de Ruy Cinatti  de Peter Stilwell | PDF in Revista Camões nº14/ 2001 aqui






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Domingo, 25 de Agosto de 2013

Delírio Lisboeta (1947)


Eu vi um corvo coxo numa taberna de Santos e uma caravela em relevo no mármore de um chafariz e disseram-me que era Lisboa. Acreditei. As ruas escusas cheiram a gato e a manjerico; as artérias, a coiro da Rússia e a sangue azul, um poucochinho corado. Oh! que horizontes, do Castelo! e que betesgas, da Graça! Já lá vai Palmela com seus adarves no azul do Sul, e a Arrábida redonda e perdida no céu. Voici Sr. Neves retroseiro (on parle français a refugiados) e o inefável Poço do Borratém ainda com um olho encarnado ao luzir da noite alfacinha. Lisboa está florida de bandeiras, frutificada de nêsperas, semeada de cláxones de táxi. Ó ver a lista!, eh!, tás tu...e lá lhe foram sete paus àquele, a quinze 'stões a bandeirada!...Se me vejo em Alcântara enterneço-me.


Os marinheiros comem tremoço saloio; as meninas da Promotora assomam de permanente às sacadas. Uma abada de glicínias — e é um palacete à Junqueira; um martelo-pilão — e é a massa compacta e gris do Porto de Lisboa. Chamo Cesário Verde, mas só vejo um retrato de adolescente numa sala fechada; ainda oiço a tesoura de podar guiando a videira diagalves. Mas já não há Liverpool na caligrafia dos escritórios do Cais do Sodré, nem encontro no Martinho da Arcada a luneta cristalizada de Álvaro de Campos, engenheiro. Da Ribeira Nova foram-se as naus e os galeões. Agora só Leontina lá bate sua tairoca de varina e manda-me dizer pela amiguinha feia se lhe eu compro um oleado para o fundo da sua canastra. Os pintores do meu país pintam o peixe e a flor no paninho adorado de Leontina, e a ferradura e a cabeça de cavalo no peitoral da égua do Aterro.


Se abro o batente ao bar da Rua Nova do Carvalho é tal qual a Cannebière: merci Marseille, quai des Belges... Além disso bebemos ginger-beer como qualquer inglês; capilé-copo-com-água. E ginjinha... No coração de Lisboa há um frémito dourado e um centilitro de sangue moiro, de má fama. Estes olhos pretos da Mouraria quem são? Que ardor é este que trago no peito e que levo pela Calçada dos Cavaleiros acima como um amolador leva a carreta e os panos do guarda-sol? De bombazina é que era! e uma mecha de cabelo furando pelo buraco da boina! Oh manhãs douradas de azeitona a tanto o selamin, com centelhas de prata tiradas pelo sol das clarabóias!

 

Só me falta morar às Escolas Gerais e passar os serões do meu último inverno numa farmácia ao pé. Quem quer avenidas e bairros bonitos — pois também tem ! Há desde o azul ao diplomático, e do pátio às casas económicas é tudo roupinha lavada e cheirinho a café, graças a Deus! Mas eu quisera ardor mavioso e solidó! Uma violeta é pouco se o jornal da tarde trás a bola... Ao Domingo iríamos ambos ao Campo Grande andar de bicicleta e, pelo Arco de Cego, com flechas de Cupido, juraríamos eterna comunhão. Tenho um tio que mora na Parada dos Prazeres, um amigo na Praça da Alegria. Que mais queres? Com o fado da Triste-Feia era uma tarde bem passada... Mas já não querem dar valor e apreço às coisas sérias! Um homem não pode estar sempre a fingir que é só aquilo que come e o chapéu que tira às pessoas, pois também há o desejo, o dia de domingo, a estufa fria, o viaduto da auto-estrada — e a alma que quer e nada encontra... Lisboa é boa. Tem torres, garages, ardinas; tem tudo o que é preciso para se chegar no paquete e se partir de avião. Nossa Senhora do Monte vê a neblina no Tejo e o fumo no Cata-que-Farás. Às 8 da manhã o destroyer entrou a barra. Cheira a goivos! Cheira a goivos no Alto de S. João!

 


Vitorino Nemésio

Panorama, Revista Portugesa de Arte e Turismo

Número 32 e 33, Ano V, 1947

Edição do Secretariado nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo


 

 

 

Vitorino Nemésio

Retrato de António Dacosta



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Sábado, 27 de Julho de 2013

Lettres à des photographies


Le ciel ne voyage pas, mais les pensées parcourent des distances incroyables. Riches en vaticinatons, elles se servent des visions ailées qui ne se posent que de rares fois.

Il arrive qu'elles stagnent dans les cerveaux humains. Quand elles s'élaborent dans la matière grise, l'enceinte où elles gravitent se dessèche et les empêche de se projeter dans le rêve. Alors les pensées ne libèrent pas leurs facultés créatrices; elles restent inanimées et privées de magie. En revanche, le vol que produit le rêve ne sait pas ce que veut dire la mort.

 

Silvia Baron Supervielle

in Lettres à des photographies (Lettre 74)

© Éditions Gallimard, 2013




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Domingo, 30 de Junho de 2013

Fernando Lezameta Simões

 

 

 

Portugal, 1950

Fotos: Fernando Lezamenta Simões (1920-2011)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

auto-retrato, 1950

 

No verão passado digitalizei boa parte de três álbuns de fotografias de Fernando Lezameta Simões, gentilmente cedidos por sua filha Rita Simões Saldanha, a quem mais uma vez agradeço. Veja outras fotos de Fernando Lezameta Simões neste blog nas tags "automóveis", "barcos", "verão", e "tauromaquia".

 

Fernando Henrique - Tanas, para os amigos - nasceu na Freguesia de São Mamede em Lisboa a 8 de Março de 1920 e lá viveu até casar em 9 de Fevereiro de 1944 com Maria Helena Morais da Costa Araújo, que conhecera na infância, em São João do Estoril. Tiveram quatro filhos.

 

Rita, sobre o Pai:

 

Aos 17 anos deixou de estudar para ir trabalhar com o Pai, Carlos Freitas Simões, na empresa familiar de comercialização de produtos próprios, como arame e pregos, e importados, como espingardas e canas de pesca, estabelecida na Rua do Comércio 38.

 

Fez a tropa em Tavira e era muito popular e divertido. Casou com a noiva que conheceu em bébé no Beco (S. João do Estoril). Foi um Pai extremoso, e fez muitas vezes o lugar da Mãe, sobretudo afectivamente.

 

Viveu sempre apaixonado pela mulher que com a sua doença de nervos o fez sofrer muito e morreu como um passarinho.

 

 

 Um neto de Fernando L. Simões:

 

Foi ele que trouxe o ski para a familia ; hoje em dia vivo profissionalmente do ski, logo cada vez que dou uma aula....penso nele.

 

Foi ele que me ensinou o conceito de familia, pois todas as sextas- feiras ao longo de 30 anos reuníamos a familia em sua casa ao jantar para óptimos serões, conversas e jantares.

 

Era um óptimo contador de histórias.....e eu vou contar uma delas:

O Meu avô, quando o meu Tio Dudu foi operado aos olhos, para além de distribuir balões por todas as crianças do hospital....deu um ramo de flores em forma de agradecimento à enfermeira chefe ; um ano depois quando o meu avô voltou para consulta de rotina a enfermeira chefe disse....como está Sr Simões ; o meu avô ficou surpreso por ela ainda se lembrar do nome dele.......ela disse-lhe......nunca me hei-de esquecer do seu nome....no dia em que me deu as flores estava a caminho do metro....estava a chover e deixei cair as flores no chão.....um homem me ajudou......hoje é o meu marido !!!!

 

 
 

 

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Quarta-feira, 6 de Março de 2013

R.B. Kitaj

 

 

 

Desk Murder 

Oil on canvas, 76.2 x 122 cm, c.1970–1984

 

 

R.B. Kitaj  (1932-2007)

 

em Londres até 16 de Junho de 2013  aqui

 

Leia aqui

 

 

 

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