George Frost Kennan
Desenho de Mary Bundy
Isto do Sul
«Porque é que Vocês gostavam tanto de Salazar?»
«Porque ele não era corrupto» respondeu-me Kennan que começara a transaccionar com o Presidente do Conselho de Ministros português a cedência das Lajes aos americanos durante a guerra de 39/45, quando era encarregado de negócios da embaixada americana em Lisboa entre dois embaixadores (e também algumas vezes ainda sob o primeiro, homem de negócios bonacheirão que achava Salazar esperto demais para ele e arranjava desculpas que justificassem mandar Kennan em seu lugar).
«Robespierre também não», quase me saiu da boca mas contive-me. Acabava de conhecer George F. Kennan, 97 anos, monumento vivo da diplomacia e da história diplomática americanas que me recebia em casa dele em Princeton, fora eu convidado para me candidatar à cátedra que leva o seu nome no Institute for Advanced Study, onde estive de 2001 a 2004. Começara por me dizer quanto tinha gostado de Portugal.
Ainda bem que me contive porque, primeiro, Kennan não tinha vestígio do zelo escuteiro que tantas vezes torna ridículos (ou, excepcionalmente, admiráveis) compatriotas seus do corpo diplomático e porque, segundo, a ausência de corrupção faz um chefe ser respeitado por aqueles em quem mande, mesmo que tenha a mão pesada.
Está a acontecer agora no Califado, ou Estado Islâmico. É constituido por cidades e campos de que se apossou na Síria e no Iraque, países inventados a seguir à guerra de 14/18, talhados no que fora o Império Otomano pela França e o Reino Unido, e corruptos desde a sua criação. É propósito das relações públicas do Califado aterrorizar toda a gente, a começar pela sua. Inimigos são massacrados com crueldade. Espectadores distantes, como os europeus, são mimoseados na televisão com execuções atrozes que deixámos de praticar entre nós de há algum tempo a esta parte. No Califado, porém, é diferente: a lei é dura mas é a lei. Infieis e apóstatas são decapitados; ladrões, cortam-lhes a mão; adúlteras e adúlteros lapidam-nos (apedrejam-nos até à morte) – mas, dizem-me entendidos, a corrupção acabou: já não é preciso dar dinheiro indevido a toda a gente ligada ao estado, para tudo e por toda a parte. Passados excessos da conquista, quem acate as leis e cumpra as regras é menos incomodado pelo poder do que no tempo do Iraque e da Síria.
Se for sunita e dos bons. Gente doutras crenças ou com fantasias do género as mulheres devem saber ler terá de se pôr ao fresco se quiser salvar a pele. E o Rolex do Califa Al Baghdadi sugere luxos escondidos. A Utopia não foi desta mas para o camponês, o pequeno comerciante, o mestre d’obras de aldeia, está-se melhor do que sob as prepotências anteriores. Comer e calar.
Salazar era incorrupto mas a pobreza ajudava. O país antigo tinha esmoído as modernices do liberalismo. Por 1960 começou a haver mais dinheiro e as coisas mudaram. O 25 de Abril trouxe liberdade; a União Europeia despejou dinheiro fresco a rodos; o euro foi o fim da picada. Muito sizo temos nós tido.
Imagem aqui
Vasco Luís Futscher Pereira
3 de Fevereiro de 1922 — 20 de Agosto de 1984
Brasília, 10 de Agosto [1974]
Almoço com o Vasco Futscher no Clube Naval.
Rosto glabro e redondo e olhar de sapo por detrás duns óculos onde palpita viva e ágil a retina bombeada do míope. Grande falador de riso fácil e de uma extrema simpatia natural. Tudo lhe desperta curiosidade.
Ostenta um instintivo gosto pela vida alimentado, ao contrário de muitos, pela cultura e a inteligência. Uma ponta de obesidade confere-lhe uma certa inteireza física acentuando-lhe a espontânea jovialidade. Quando sorri, e sorri com frequência, as bochechas sobressaem à maneira dum boneco animado, arredondando-lhe a face e a expressão reboluda do olhar.
A primeira impressão é a de que não poderia ter havido melhor escolha. Calhado para o Brasil, como outros o são para a Finlândia ou a Indonésia. O Brasil, que não conhece, surge-lhe como uma experiência inteiramente nova que ainda o anima e seduz, pois é homem, se não me engano, de entusiasmos repentinos.
Diz-me, no entanto, ter ficado horrorizado com o que lhe contou o Castelinho1, com quem jantou há dias, acerca da intensidade e polivalência aqui da repressão política a cargo simultaneamente de diversos organismos, que agem por conta própria, cada um dispondo de sua gente e actuando por sua iniciativa.
[...]
Voltando ao Brasil, falei-lhe da relação essencialmente freudiana que ainda hoje liga - ou separa? - o Brasil e Portugal. Quem teimar em encarar este país com o olhar peregrino do portuga, e não perceber a ambiguidade de sentimentos que o brasileiro nutre para connosco, arrisca-se a cometer grossa asneira e a nada entender desta terra e desta gente.
Na verdade, nada mais ilusório do que partir do princípio de que a matriz lusíada, por si só, será suficiente para preservar os laços da tão apregoada comunidade luso-brasileira.
[...]
O embaixador limitou-se a ouvir-me e apenas citou, como prova do contrário, dois exemplos: o caso do Estado de São Paulo2 e a proliferação de clubes Eça de Queirós disseminados por todo o Brasil. «Veja só o imenso capital de simpatia que isso representa para connosco se o soubermos aproveitar com um mínimo de inteligência.»
Levantou-se — já não sei que horas eram... e quantos cafés havíamos ingurgitado — e com um sorriso paternal, pousando-me a mão no ombro: «Deixe lá, homem, não se preocupe, não seja tão pessimista, ainda há por aí muito caturra que gosta de nós.»
Marcello Duarte Mathias
© D. Quixote 2010
1.Carlos Castelo Branco, mais conhecido por Castelinho, ao tempo influente editorialista do Jornal do Brasil.
2. Nessa altura, o Estado de São Paulo um dos jornais mais prestigiados, inseria em substituição das partes censuradas, consoante a maior ou menor extensão das mesmas, extractos de Os Lusíadas, assinalando assim os cortes de que era objecto.
Foto: Francisco Silva Fernandes
Folhas dos álbuns de Fernando Lezameta Simões:
Rallye de Miramar:
III Cintra Rampa 1950:
Capa de álbum:
Veja mais fotografias nos posts
Agradeço mais uma vez a Rita Simões Saldanha que disponibilizou generosamente os álbuns do pai para digitaliação e partilha neste blog.
Notas:
O “II Rallye de Miramar” teve lugar em redor da praia de Miramar (Vila Nova de Gaia) no norte de Portugal, entre 26 e 28 de Agosto de 1949, com partida de Cacilhas.
A prova, promovida pela secção regional Norte do “Automóvel Clube de Portugal”, foi vencida pela equipa formada por Jorge Seixas e Martinho Lacasta, num «Allard» M Type.
Agradecimentos aos blogs Heróis, Restos de Colecção e João Saldanha, neto de Fernando Lezameta Simões.
Noronha da Costa, 1976
Tinta celulósica sobre tela fotosensível, 1200 x 800 mm
colecção P.O.P.
© Noronha da Costa
Imagem: "Abecedário", edição comemorativa/catálogo da recente exposição 40 anos do Ar.Co (1973-2013) no MNAC- Museu do Chiado.
Visite a exposição de Luís Noronha da Costa (obras de 1967 a 1974) patente no CAMB – Centro de Arte Manuel de Brito até 2 de Março de 2014.
Guiné-Bissau hoje aqui e aqui (English | Français| Português )
Eu vi um corvo coxo numa taberna de Santos e uma caravela em relevo no mármore de um chafariz e disseram-me que era Lisboa. Acreditei. As ruas escusas cheiram a gato e a manjerico; as artérias, a coiro da Rússia e a sangue azul, um poucochinho corado. Oh! que horizontes, do Castelo! e que betesgas, da Graça! Já lá vai Palmela com seus adarves no azul do Sul, e a Arrábida redonda e perdida no céu. Voici Sr. Neves retroseiro (on parle français a refugiados) e o inefável Poço do Borratém ainda com um olho encarnado ao luzir da noite alfacinha. Lisboa está florida de bandeiras, frutificada de nêsperas, semeada de cláxones de táxi. Ó ver a lista!, eh pá!, tás tu... — e lá lhe foram sete paus àquele, a quinze 'stões a bandeirada!...Se me vejo em Alcântara enterneço-me.
Os marinheiros comem tremoço saloio; as meninas da Promotora assomam de permanente às sacadas. Uma abada de glicínias — e é um palacete à Junqueira; um martelo-pilão — e é a massa compacta e gris do Porto de Lisboa. Chamo Cesário Verde, mas só vejo um retrato de adolescente numa sala fechada; ainda oiço a tesoura de podar guiando a videira diagalves. Mas já não há Liverpool na caligrafia dos escritórios do Cais do Sodré, nem encontro no Martinho da Arcada a luneta cristalizada de Álvaro de Campos, engenheiro. Da Ribeira Nova foram-se as naus e os galeões. Agora só Leontina lá bate sua tairoca de varina e manda-me dizer pela amiguinha feia se lhe eu compro um oleado para o fundo da sua canastra. Os pintores do meu país pintam o peixe e a flor no paninho adorado de Leontina, e a ferradura e a cabeça de cavalo no peitoral da égua do Aterro.
Se abro o batente ao bar da Rua Nova do Carvalho é tal qual a Cannebière: merci Marseille, quai des Belges... Além disso bebemos ginger-beer como qualquer inglês; capilé-copo-com-água. E ginjinha... No coração de Lisboa há um frémito dourado e um centilitro de sangue moiro, de má fama. Estes olhos pretos da Mouraria quem são? Que ardor é este que trago no peito e que levo pela Calçada dos Cavaleiros acima como um amolador leva a carreta e os panos do guarda-sol? De bombazina é que era! e uma mecha de cabelo furando pelo buraco da boina! Oh manhãs douradas de azeitona a tanto o selamin, com centelhas de prata tiradas pelo sol das clarabóias!
Só me falta morar às Escolas Gerais e passar os serões do meu último inverno numa farmácia ao pé. Quem quer avenidas e bairros bonitos — pois também tem ! Há desde o azul ao diplomático, e do pátio às casas económicas é tudo roupinha lavada e cheirinho a café, graças a Deus! Mas eu quisera ardor mavioso e solidó! Uma violeta é pouco se o jornal da tarde trás a bola... Ao Domingo iríamos ambos ao Campo Grande andar de bicicleta e, pelo Arco de Cego, com flechas de Cupido, juraríamos eterna comunhão. Tenho um tio que mora na Parada dos Prazeres, um amigo na Praça da Alegria. Que mais queres? Com o fado da Triste-Feia era uma tarde bem passada... Mas já não querem dar valor e apreço às coisas sérias! Um homem não pode estar sempre a fingir que é só aquilo que come e o chapéu que tira às pessoas, pois também há o desejo, o dia de domingo, a estufa fria, o viaduto da auto-estrada — e a alma que quer e nada encontra... Lisboa é boa. Tem torres, garages, ardinas; tem tudo o que é preciso para se chegar no paquete e se partir de avião. Nossa Senhora do Monte vê a neblina no Tejo e o fumo no Cata-que-Farás. Às 8 da manhã o destroyer entrou a barra. Cheira a goivos! Cheira a goivos no Alto de S. João!
Vitorino Nemésio
Panorama, Revista Portugesa de Arte e Turismo
Número 32 e 33, Ano V, 1947
Edição do Secretariado nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo
Vitorino Nemésio
Retrato de António Dacosta
Audições no fim do ano lectivo na Academia de Amadores de Música*, Lisboa, Junho 1969.
Miguel Azevedo e Sílvia Camilo. Flauta de bisel. Professora: Catarina Latino
São 23 obras para piano, compostas ao longo de três décadas por Fernando Lopes Graça para aniversários, bodas e outros acontecimentos como a inauguração de uma casa ou um simples convívio de amigos.
"Umas são pequenas, outras maiorzinhas. É uma colecção que eu tenho: uma comemoração disto, uma comemoração daquilo, uns anos deste, um casamento daquele... São "Músicas Festivas" (F.L.G. fev. 1986).
Em 1962, ano em que inicia a composição das Músicas Festivas, Fernando Lopes-Graça muda-se de Lisboa, onde ainda compõe a primeira peça deste ciclo, para um apartamento na Parede. Aí, um pequeno gabinete com um piano vertical passará a ser a oficina do compositor até à sua morte. Após uma fase emocionalmente dilacerante que culminará nessa obra-prima que é Canto de Amor e de Morte (1961), este ciclo de Músicas Festivas parece inaugurar, simbolicamente, uma nova fase na vida do compositor. (1)
partitura original
A colecção inédita — das 23 peças 13 nunca foram tocadas em público e 18 nunca foram gravadas — será registada em múltiplos suportes para permitir a criação de conteúdo não efémero. A iniciativa partiu de um grupo de amigos de que hoje fazem parte três dos dedicatários das Músicas Festivas, entre outros colaboradores, e todas as acções vão por diante apesar de os apoios terem sido muito escassos.
Um Concerto no Centro Cultural de Belém a 16 de Dezembro de 2012 incluirá a maior parte das peças, interpretadas pelo pianista António Rosado e com uma introdução do musicólogo Rui Vieira Nery . Na mesma data serão lançados os quatro volumes das partituras (em papel) e o primeiro volume do CD das Músicas Festivas [2]. Os autores do projecto criaram igualmente um sítio web [3] e um álbum de fotografias digital [4]. Mais tarde será produzido um DVD incluindo o concerto ao vivo e um documentário, com depoimentos dos dedicatários e outras pessoas próximas do compositor.
Além do seu interesse cultural manifesto, esta edição multimédia das Músicas Festivas de Fernando Lopes Graça é sem dúvida um modelo inspirador de "Álbum de Família" ou, melhor dizendo neste caso, de "Livro dos Amigos".
Fernando Lopes Graça (1906-1994)
retratado por Cecília Pinto
Notas:
1 Texto integral de João Espírito Santo (Outubro de 2012) aqui
2 CD: integral Músicas Festivas pelo pianista António Rosado
3 sítio web aqui
4 álbuns de fotografias aqui
5 um perfil de Fernando Lopes-Graça aqui
6 De todos os materiais produzidos serão entregues exemplares ao Museu da Música Portuguesa - Casa Verdades de Faria para serem integrados no espólio do compositor. aqui
7 Imagens deste post encontradas aqui
8 Fernando Lopes-Graça e a Academia de Amadores de Música aqui
Véra Obolensky, São Petersburgo, 2010
Foto: Jean-François Blézot
uma entrevista com Véra Obolensky aqui