Quarta-feira, 28 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Soufflé Grand-Marnier aqui

 

José Cutileiro

 

O bistrot do francês

 

 

Mais exactamente, Le Bistrot Pierre-Marie, na Rua da Torre, acima e do outro lado do cemitério da Guia, encostado a um 5 à Sec, deixou de existir. Durante alguns dias os vidros guardaram o nome embora o lugar estivesse fechado e vazio. Depois, desses vidros foram tirados todos os dizeres. Referências aos prazeres da mesa fora de casa, que se encostavam a referência mal disfarçada aos prazeres do adultério citadino no nome da franchise de limpeza a seco, desapareceram de vez. Assim acabou ali a joie de vivrefrancesa.

 

Por Facebook e outras artimanhas dos nossos dias sabemos que Pierre-Marie pretende voltar a dar-nos prazeres gustativos não mais longe, presumo eu, do que umas cinco léguas em redondo. Mas tais notícias são poucas e vagas; não  noto progresso nelas; não vivo cá todo o ano e cheguei a idade na qual, no dia para que se acorda de manhã, as estatísticas dizem que tanto se pode viver quanto morrer  pelo que o regresso de Pierre-Marie e do seu bistrot é para mim urgente porque a sua falta faz minguar a qualidade de minha vida.

 

É certo que ao longo da costa, para quem, passado Paço d’Arcos, venha de Lisboa pela Marginal  e, de vez em quando, bem para dentro dela, desde os Santos do Estoril até ao Guincho – ou até à Praia Grande para os mais aventureiros – os restaurantes se seguem que sabem grelhar peixe (com distinção muito especial para Lourdes, na Boca do Inferno e Suzette na Adraga) mas o bistrot do francês não tinha nada a ver com isso. Estabelecera-se ao lado de Cascais, a estrada que da Rotunda Pedro Monjardino deitava até à sua porta pouco se afasta do tradicional vôo do corvo e não chegará a cobrir um quilómetro mas ele não  estava ali para grelhar peixe. Sem pretensões, com bons preços e bom senso, criara como um pequeno restaurante parisiense de bairro, onde souflés de queijo – e ultimamente também de Grand Marnier – e outras joias da gastronomia francesa eram feitos para serem comidos por clientela como eu que sabia ao que viera e encontrava o que queria.

 

O bistrot não fechou por Pierre-Marie ter adoecido ou estar cansado ou tal lhe dar na real gana. Fechou porque o contrato de arrendamento (o bail, dizem os franceses) acabara e para o renovar, animado pela explosão teratológica do mercado em Lisboa e arredores, o senhorio pedia tal montante que Pierre Marie, homem de coragem e experiência, habituado a lidar bem com riscos em várias partes do mundo, decidiu não poder aceitá-lo. Assim, a subida escandalosa de preços num sector do mercado imobiliário, provocado sobretudo por oferta francesa inesperada de que tantos portugueses à procura de casa se queixam agora, negou-nos a presença de pequeno restaurante francês que nos trazia presença civilizada única, livre por um lado de exageros regionais e, por outro, de pretensões universais falhadas de guindar a gastronomia ao estatuto de oitava arte. Comia-se como em pequeno restaurante de bairro parisiense, competente e sossegado – e faz falta.

 

 

 

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Quarta-feira, 21 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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José Cutileiro

 

Os nomes das coisas

 

A cozinheira – que veio com a casa onde estamos este Agosto, ganhou na televisão um concurso da sua arte, recusara por razões pessoais meter-se em empreendimentos comercias de grande restauração e trabalha para famílias de Cascais e amigos delas – tinha-nos feito já uma vez farófias (îles flottantes dizem a minha mulher e a minha cunhada, colocando as da cozinheira premiada muito alto na sua experiência francesa de sobremesas) e eu pedira-as outra vez para o jantar de ontem.

 

Vizinha de mesa de quem gosto há quase meio século, tem geralmente conversa hilariante, é bom garfo e óptimo copo (de bons tintos) chamou às farófias nuvens porque assim aprendera em pequena dos manos mais velhos. De resto toda a gente lá em casa, senhores, senhoras, criados e criadas, dizia nuvem e para ela tal era o nome da coisa.

 

Ela é do Norte eu do Sul de Portugal e o doce em questão, à primeira vista da minha ignorância, tanto poderia ter  vindo de serralhos muçulmanos quanto poderia ter saído de conventos do catolicismo de Trento. (Tem em todo o caso característica rara: a grande maioria dos doces de ovos usam gemas, aproveitadas do fabrico de vinhos que precisam das claras. As farófias usam claras em castelo; os bolos mais conhecidos de de Bordéus, terra dos melhores vinhos tintos jamais feitos são os canneletscozinhados com gemas de ovos, cujas claras ajudaram a criar nectares sublimes e a boa Mariana Alcoforado que os franceses conhecem por la religieuse portugaise há de se ter consolado com trouxas de ovos – se realmente existiu que os estudiosos não deixam nada quieto e há quem pretenda que as suas famosas cartas foram escritas por um homem).

 

O resto da mesa falava de coisas diferentes – greve, mundo (Mundo, mundo, vasto mundo/Se eu me chamasse Raimundo/Seria uma rima e não uma solução escreveu Carlos Drummond de Andrade e continuamos a ver hoje diante de nós mais rimas do que soluções) férias em outros lugares, maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices, trocavam-se  os epigramas e os calembourgs  – e eu não quis interromper-lhes o fim do jantar com farófias.

 

Além disso as diferenças entre o Norte e o Sul são fundas e podem levar a proclamações extremas. Amigo tripeiro assistia a jogo de futebol entre Salgueiros e Boavista e o árbitro, que era de Lisboa, tomou decisão desagradável para uma das claques que começou a insultá-lo: «Ah mouro, se num fossemos nós inda andabas de lençol à cabeça!». Amigo alentejano sustentava que Portugal era o Alentejo, porque do Tejo para cima eram beirões e os algarvios beirões faladores. Sobre a rivalidade entre alfacinhas e tripeiros, porquê Mário, porquê Cesariny, por quê, ó meu Deus, de Vasconcelos, escreveu a linha definitiva: «Lisboa, capital do Porto».

 

Não chegaríamos a tanto e, entretanto, como acontece em jantares, a conversa perdeu-se noutras. Foi pena porque fiquei sem saber qual a guloseima a que ela, desde pequena, chamava pegamócolo porque era assim que os manos diziam lá em casa.

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

CaminhadasCaminhadas na Serra de Sintra aqui

 

 

José Cutileiro

 

Se o verniz estalar?

 

Vai para três meses que dei pelos portugueses – ou, pelo menos, os alfacinhas e gentes de seus arredores, outrora saloiada entalada entre mouros e cristãos – contentes, pela primeira vez na minha vida, ao reencontrá-los vindo de fora. E tenho experiência disso: a primeira vez que os reencontrei vindo do estrangeiro tinha dezassete anos; hoje tenho oitenta e quatro e, tirante entre os dezoito e os vinte e oito, quando saí pouco, não tenho deixado de o fazer ano nenhum, amiúde várias vezes por ano. E as reacções não mudaram – ‘Então?’ ‘Estou pior, pá!’; ‘Tudo bem?’ ‘Que remédio…’; Les portugueux sont toujours gueux (Alexandre O’Neill dixit) – durante sessenta e sete anos, desde desembarque de Madrid, achando o Diário de Notícias lido no avião da TAP pessimamente escrito – por razões longas de enumerar tinha estado longe de Portugal nove meses, só levara livros bons comigo e, nessa altura, longe era longe e não vira nenhum jornal lusitano – as pessoas na rua vestidas como se fossem para um casamento e toda a gente com cara de enterro. Essa tristeza iria acompanhar-me seis décadas, sempre que voltava a pôr pé na Pátria.

 

Tudo mudou nesta Primavera, a começar pela tripulação da TAP que me trouxe a Lisboa, gente nova e bem disposta, sem sequer lamúrias quanto à decadência da companhia (e à situação aberrante, acrescento eu, de ainda agora ser ainda um bocadinho da leitora e um bocadinho minha). E outros e outras a ela se seguiram, prestáveis, divertidos, afirmando o seu sotaque entre o dos brasileiros e brasileiras circundantes. É claro que há muitos turistas e também grande quantidade de reformados sobretudo, ao que me dizem, de franceses a quem são dadas aqui condições fiscais bem favoráveis (e porque não? Quando grandes empresas nossas estão sediadas fiscalmente nos Países Baixos e no Luxemburgo em vez de pagarem os seus impostos na ocidental praia lusitana, acho bem que o nosso fisco faça o que possa para trazer para aqui algum dinheiro ganho alhures). Até agora tudo bem – ou so far so good como, por enquanto, quem quiser pode ainda dizer em Hong-Kong sem apanhar com mangueirada de água ou ser despachado para a China a toque de caixa.

 

Mas será que vai durar? Apesar de altos e baixos damos uns novecentos anos de garantia que é muito mais do que o geral dos estados membros das Nações Unidas seriam capazes de fazer. Mas há costumes e maneiras que parecem escondidos agora e poderão reaparecer, impôr-se de um momento para o outro – e está o caldo entornado. O hábito de aldrabar como se fosse a coisa mais natural do mundo (e entre muitos de nós é capaz de ser…). Por exemplo, a naturalidade com que médicos passam atestados falsos para justificarem segundas chamadas. As perenes cunhas para tudo. São teimas antigas: em 1934, quando o meu Pai, finalista de Medicina, fez exame de Obstetrícia, a primeira coisa que o professor lhe perguntou foi: «O Senhor não tem vergonha de vir fazer exame sem uma recomendaçãozinha?»

  

 

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Quarta-feira, 7 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Max Weber imagem aqui

 

José Cutileiro

 

As coisas são como são

 

Há uns vinte anos, em Princeton, li no jornal de um escândalo em Wall Street, pequeno por padrões a que a ganância, nesta época de financeiros desregulados e sindicatos enfraquecidos, nos tem levado a adoptar mas suficiente para entreter leitores do New York Times. Homem importante e tido por super honesto daquela praça financeira fora parar à cadeia, culpado do delito de informação privilegiada. Até aqui nada de especial mas li a seguir que o pai dele, urologista reformado com mais de 80 anos, a quem o filho informara e assim pudera vender a tempo a poupança de uma vida inteira e evitar a ruína, fora também condenado. E aí o caso mudou de figura porque o imaginei, leitora, em Portugal.

 

Quem atiraria a primeira pedra ao filho que salvara o pai? Quem acharia que ele se deveria ter submetido às obrigações de uma moral universalista que trata igualmente, segundo regras gerais aplicadas a todos, o filho predilecto da leitora e os ciganos que devem com certeza ter roubado a trotinete eléctrica da filha do vizinho da sua mulher a dias? Quem o condenaria em tribunal? E, se fosse mesmo condenado, quantos tratariam de arranjar maneira de lhe encurtar a pena ou até de o amnistiar?

 

Na Idade Média, desenvolveu-se na ponta noroeste da Eurásia sistema de regras de convivência entre quem tinha a terra e quem a trabalhava ou tinha misteres correlativos a que se chamou feudalismo, que foi ensinando a toda a gente como se comportarem uns com os outros e irem vivendo em paz, sobreviveu às matanças das grandes guerras religiosas europeias e chegou ao nosso tempo sob a forma de democracias parlamentares e de monarquias que reinam mas não governam. Entretanto, fiéis ofendidos não só por alguns dogmas da Igreja Católica mas também pela depravação do Vaticano (em festa dada ao papa Alexandre Borgia, cinquenta cortesãs dançaram primeiro vestidas, depois nuas, apanhando no fim - com as vaginas - castanhas do chão de mármore), com Lutero e Calvino à frente, reformaram o cristianismo. Os fieis passaram a ler a Bíblia e a falar directamente com Deus. A moralidade tornou-se ingrediente indispensável da salvação, e integrou o progresso material. No começo do século XX, o sábio alemão Max Weber publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo que pareceu fazer sentido a muitos, enquanto este florescia, primeiro na ponta noroeste da Europa, depois nos Estados Unidos – e hoje no mundo inteiro, China à cabeça.

 

A ponta sudoeste da Europa onde nós estamos, não conheceu tais vivências. Enquanto a norte, em princípio, se acredita em estranho que nos fale e o poder que haja é legítimo, no sul desconfia-se do estranho e o poder que haja nunca é tão legítimo quanto isso. Com União Europeia ou sem ela, levará muito tempo e muitas dôres de cabeça legislativas acertar as peças que fechem este puzzle.

 

Entretanto, o afilhado da sobrinha do irmão do presidente da câmara que fez fornecimentos sem concurso pode continuar a dormir em sossego.

 

 

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Quarta-feira, 17 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Samora Machel

Samora Machel     -  foto aqui

 

 

José Cutileiro

 

Correcção política

 

1982. Recepção do Presidente da República ao corpo diplomático em Maputo. À entrada, Samora Machel saúda os embaixadores e outros chefes de missão que o vão cumprimentando. Chega a minha vez:

«Senhor Presidente… »                                                                                                         

«Olá, patrão» e, olhando pedagogicamente para a cara atónita do embaixador da Alemanha Federal, logo atrás de mim na bicha – nessa altura havia duas Alemanhas, a Federal com capital em Bona, membro da OTAN, expiando convicta a pena dos seus crimes de guerra e a Democrática, com capital em Berlim, membro do Pacto de Varsóvia, convencida de que a conversão ao comunismo a limpara dos ditos crimes (e, de caminho, dirigindo e executando toda a intelligence da República Popular de Moçambique, incluindo as escutas a nossas casas) - social-democrata dedicado à cooperação com o Terceiro Mundo, acrescentou: «Ele era o meu patrão…»

 

E Samora Machel era assim. Disse-me um dia, a propósito dos cooperantes que agora vinham da URSS, dos países de Leste, da Escandinávia, dos Estados Unidos: «Vocês tratavam-nos como pretos. Estes gajos tratam-nos como macacos». E, doutra vez, que Agostinho Neto, então presidente de Angola, não era um preto – era um branco pintado de preto, porque não sabia rir-se. Eu conhecera, anos antes e muito ao de leve, o Dr. Agostinho Neto à saída do Hospital de Santa Marta em Lisboa, onde ele trabalhava salvo erro com o Dr. Carlos George: de paletó e colete, camisa branca e gravata às listas, parecia de facto doutor tão sizudo quanto os outros. O Natas, de sua graça António Vaz Pereira, meu predecessor em Maputo, falou-me de outro momento memorável que lhe fora contado por Chissano, então ministro dos negócios estrangeiros, que a ele assistira. Samora, fardado de camuflado, como nessa altura fazia sempre em tais ocasiões, ia receber as cartas credenciais do embaixador do Lesoto. Quando ao fundo da sala a cortina foi corrida e o embaixador, gordo e baixo, de casaca preta coberta de condecorações, apareceu e começou a caminhar na direcção de Machel, este, sem qualquer expressão no rosto, sem mexer a cabeça nem olhar para ele, disse a Chissano, perfilado a seu lado: «Ai o preto…»

 

Lembrei-me hoje de Machel porque, ouvido nessa altura, já era muitas vezes uma lufada de ar fresco, e recordado agora, o é ainda mais nestes tempos de correcção política – tão excessiva que até leva a absurdos contrários como quando Antonio Tabucchi, em Princeton, perguntou a minha opinião sobre assinar papel que lhe fora passado por Susan Sontag a pedir desculpa aos pretos americanos pela escravatura que trouxera de África os seus antepassados e eu lhe respondi que talvez fizessem melhor em pedir desculpa aos pretos da África ocidental por os seus antepassados não terem sido trazidos também.

 

NB Nada a ver com a Dra Fátima Bonifácio que, embora culta e informada, esquece pelo menos o Preste João e Desmond Tutu.

 

 

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Quarta-feira, 3 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

nuno bragançaNuno Bragança (foto aqui )

 

 

José Cutileiro

 

Coisas de cá e lá fora

 

Não vi o Expresso de há duas semanas mas li o Vasco Pulido Valente segunda-feira no Público e encontrei lá o Nuno Bragança. Ao contrário do Vasco eu gostava do Nuno e do que ele escrevia; acho que a primeira linha de A Noite e o Riso– « Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me desembaracei na arte de estender os braços.» – ficará pequenina pérola da nossa literatura. E achei bons esse seu primeiro romance e o terceiro, Square Tolstoi; o do meio tinha tanto em directo, chamava-se Directa,da vida do Nuno (e da Leonor) que decidi a certa altura parar de o ler e não sei avaliá-lo.

 

As graças dele divertiam-me, embora conceda que eram de humor especial, o qual nem sempre agradava aos ouvintes ou sequer era por estes entendido como humor. Recebi um dia em Oxford postal dele da antiga Jugoslávia – técnico salvo erro do ministério das corporações o Nuno fazia muitas viagens de trabalho – datado de Liubliana, que rezava assim: «Vi ontem à noite numa taberna de Liubliana um bêbado igual ao Vasco Pulido Valente que fazia o elogio de Estaline. E fiquei a saber quem é o Vasco: um bêbado numa taverna de Liubliana fazendo o elogio de Estaline».

 

Uma quinzena em Londres falámos várias vezes. Ele viera pelo ministério para estágio onde não ia, e as suas ajudas de custo davam só para quarto de hotel incómodo e exíguo. Eu viera de Oxford ler na British Library e ficava num dos quartos simpáticos que a Gulbenkian punha à disposição de bolseiros na província que tivessem de vir a Londres. Quando eu saía de manhã o Nuno entrava para escrever o que viria a ser A Noite e o Riso na mesa do meu quarto. Jantamos várias vezes juntos e na véspera de ele voltar a Lisboa perguntei-lhe o que achara de Londres. (Era a sua primeira visita a Inglaterra mas havia toque especial: ele tivera uma nanny em pequeno e falava inglês como um nativo). Respondeu-me assim: « Sei que levaria muito tempo a adaptar-me a viver aqui. Mas sei também que em Portugal não me vou adaptar nunca». Viveu mais de vinte anos depois dessa conversa mas acabou por se matar numa casa de saúde para maluquinhos, perto de Lisboa.

 

Lá fora. Escrevo terça-feira na Marinha de Cascais e à hora de aqui deixar estas linhas não há ainda resultado de reunião do Conselho Europeu começada ontem para escolher os mandachuvas da União para os próximos 5 anos: o dito Conselho, a Comissão Europeia, o pseudo ministério dos Negócios Estrangeiros europeu e o nosso Banco Central. Há dias que as discussões prosseguem (entre 27 países) e o que se vai sabendo das conversas não é edificante mas não é isso que me agasta: Bismark dizia que nunca se deve visitar uma fábrica de salsichas. O que zanga é, por um lado, ver Merkel ser agora maltratada por anões políticos e, por outro, ver Timmermans, defensor activo dos valores europeus ser posto de parte para satisfazer exactamente os chefes nacionais – húngaro, polaco - que mais desrespeitam esses valores. Casos destes enchem a gente de fé.

 

 

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Quarta-feira, 19 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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José Cutileiro

 

A visão do saguão e o instinto da porta de serviço

 

Quando era diplomata, lembro-me de ter achado de vez em quando que quem mandava em nós - os nossos chefes políticos - abundava nesses atributos pelintras porventura impostos pela miséria da pátria (várias bancarrotas desde o liberalismo monárquico até à república de Abril, sempre vistas como pecaminosas por protestantes do Norte). A visão do saguão e o instinto da porta de serviço não são manhas de pobre – essas também por cá as temos – são, por assim dizer, coordenadas cartesianas do modo subalterno de viver. Vêm juntas com a desconfiança do dinheiro de muitos católicos – por exemplo, do Papa Francisco – e também de muitos comunistas, como aquele, à época secreto no Portugal de Salazar, que me louvava, contristado, comadre sua comerciante, diligente e cada vez menos pobre: «É boa rapariga a Antónia; só tem aquela coisa do lucro…».

 

O contrário absoluto desses atributos também existe e o encontrei: por exemplo, em Pedro Pires de Miranda ao dizer-me, radiante, um dia quando eu entrava no seu gabinete nas Necessidades: «A política externa é óptima: só se têm inimigos !». Mas realidade assim ou sequer tendência no mesmo sentido são raras, o que eu acho estranho porque há na língua, no português que há vários séculos e ainda hoje falamos, pelo menos um sinal forte do contrário. Enquanto em francês se diz garde de corpse em inglês bodyguard, em português diz-se guarda-costas, o que implica que só se for atacado pelas costas um português precisará de outro homem para o ajudar a defender-se. Se o ataque for de frente, bastará ele próprio. Sinal inequívoco do papel constituinte da honra na definição de qualquer português, é curioso que coabite nalguns dos nossos chefes políticos contemporâneos com preocupações maníacas de segurança pessoal. (Mas ao considerar matérias assim, correríamos o risco de resvalar do mundo simples dos valores medievais, com o Bem e o Mal cada um em seu sítio e o Marquês de Sade na Bastilha, antes de esta, assaltada por bandidos armados, ter passado a dia nacional francês e mascote de todos os revolucionários do mundo ao mundo complicado dos nossos dias, cheio de teoremas sem prova, de puzzles a que faltam peças, de chineses que acham ser ainda cedo para avaliar as consequências da Revolução Francesa e daqueles que acham que foi com essa que o caldo se entornou e evitam passar por Paris que continua a celebrá-la sem vergonha).

 

O entre-parêntesis foi longo sem nos levar longe. Que acontece aqui? Florença tem séculos de turistas, milhões desde a segunda guerra mundial, mas não perdeu um átomo de identidade – quem venha de fora que se ajeite. Aqui é confuso: admitem-se imigrantes pobres fazendo seu pé de meia de gorgetas de imigrantes ricos ou não tão pobres quanto eles, e os indígenas mudam maneiras de cozinhar ou de rasgar portas e janelas para inglês (ou francês, ou alemão) ver (e comprar e alugar). ‘Cadê Portugal ?’ perguntaria Balsonaro. É esse o perigo.

 

 

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Quinta-feira, 13 de Junho de 2019

Santo António de Lisboa

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Tronos 19

Livraria Sá da Costa, Montra da Rua Serpa Pinto, Lisboa

Esta iniciativa integra-se na exposição de rua “Tronos de Santo António´19”, organizada pela EGEAC, com o objectivo de estimular a participação de todos no espaço público da cidade de Lisboa durante o mês das festas da cidade.

 

 

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Quarta-feira, 12 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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 © drante/iStock

 

José Cutileiro

 

Calão

 

Dizem-me que a gente nova fala com constantes palavrões os quais no meu tempo (e mesmo no tempo do meu filho) seriam impensáveis em tal profusão salvo em pequenas bolsas de proletariado marginal, criminoso e embriagado, ou em meia dúzia de excêntricos e excêntricas bem nascidos para quem a ordinarice no falar era uma maneira de sublinhar superioridade impune. Lembro-me da Madalena Machado Macedo que fazia gala em praguejar como o proverbial carroceiro, no aeroporto de Lisboa de há sessenta anos, a querer entrar para a alfândega, que se via do hall através de grande vidro, para lá esperar o Manuel Eugénio. Guarda-fiscal parou-a dizendo-lhe que era proibido passar. «Porquê ?» «São ordens do Senhor Director.» «Diga ao Senhor Director que eu me chamo Madalena Espírito Santo Mello e passo sempre» respondeu ela e assim o fez. O calão dela, usado sobretudo em conversa com gente da sua roda, era chocante (e divertido) por ser usado por uma mulher, configurando transgressão muito mais severa do que a de um homem. O português, sobretudo o português escrito, língua franca de curas, tabeliões e academias é tão hostil ao calão quanto uma tia solteirona beata. Nesse português, palavrões ou falas sexuais são agressões postas de lado ou mandadas para trás como pedras no arroz ou vinho bouchonné. Talvez de resto se deva a essas restrições a necessidade e o gosto de exagero e espampanância no calão dos jovens. (Definição operacional de jovem: Criatura entre os 12 e os 35 anos, de qualquer dos sexos disponíveis, que se recusa a obedecer ao pai).

 

E é pena porque há histórias, exemplos dir-se-ia dantes, nessas falas interditas e, se a Vera me deixar, ousarei contar duas aqui, ligadas ao atelier do meu chorado Frederico George. Antes dos computadores, ateliers de arquitecto estavam cheios de desenhadores temperamentais e volúveis, entre artesão e artista).

 

No dia de 1968 em que Marcelo Caetano falou pela primeira vez como Presidente do Conselho à Assembleia Nacional eu tinha ido trabalhar com o Frederico para o Palácio Fronteira, onde ele vivia com a mulher, mãe do então Marquês. Para verem Marcelo na televisão, juntaram-se-nos a Maria João Mangualde e dois colegas com quem ela estudava medicina. No fim, depois deles saírem, Frederico perguntou-me: «Você já viu isto ?» «Isto o quê, Mestre?» «Você é doutor por Oxford, e estes estudantecos trataram-no por você!» «Nem reparei, Mestre, e não tem importância nenhuma.» «Ah tem, tem» concluiu o Frederico. «Eu, estas coisas tu cá, tu lá, pontapé na cona, não gosto!» Desenhador seu apaixonara-se por puta de um bordel e vivera lá mais de um mês a procurar tirá-la da vida. Sem sucesso - mas aprendendo, entretanto, novas maneiras eloquentes de dizer coisas.

 

Segundo exemplo. Uma tarde, armara-se no atelier discussão gabarola e animadíssima, sobre comprimentos de pénis. Ao fim de uma hora, Frederico George interveio a arrumar o assunto: «Essas coisas querem-se pequeninas. São para senhoras.»

 

Outros tempos.

 

 

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Quarta-feira, 5 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Vicentes CarnavalCandeeiros (Os dias dos nossos carnavais) - Museu Vicentes, Madeira

 

 

 

José Cutileiro

 

Gemeinschaftzinho

 

 

«Vossas Excelências não têm nada a declarar? Não há malinhas de mão ?»

 

Assim pergunta de cais de estação de caminho de ferro florida, numa manhã cheia de sol, ‘fardeta agaloada’ e, dentro da carruagem, Zé Fernandes que acompanha o seu amigo Jacinto na primeira visita à terra dos antepassados deste, percebe que, havendo deixado para trás a rudeza da noite castelhana, tinham acordado em Portugal.

 

Malinhas, não malas, disse a fardeta na raia seca. «Já acabei de limpar a metralhadorazinha» diria algures em Angola, quase setenta anos depois, soldado raso a tenente miliciano do exército português. Este outro caso fora contado pelo miliciano em questão, depois de regressado à metrópole e desmobilizado, ao Gérard Castello Lopes que o contara ao Antonio Tabucchi que mo contara a mim. Gérard tinha uma teoria sobre o uso português dos diminutivos, não sei se verdadeira se falsa, mas que acho valer a pena expor à leitora. Segundo ela, nós usamos diminutivos para mostrarmos ser bem educados e darmos primazia ao nosso interlocutor. Da mesma maneira que em muitas pinturas medievais em que se vejam várias pessoas o tamanho de cada uma delas não varia segundo regras de perspectiva (quanto mais longe mais pequenas) mas segundo regras de hierarquia social (quanto mais importantes maiores) assim nas nossas trocas de palavras. Ao usarmos diminutivos, colocamo-nos em posição respeitosa perante a pessoa com quem falamos. Tal fizera, com efeito, a fardeta agaloada ao chamar malinhas de mão à bagagem dos viajantes sem sequer a ter visto. De caminho vinha sugestão de hospitalidade e bonomia, de rejeição de hostilidade, mais importantes ainda numa fronteira do que longe dela. (Mesmo antes de alguns horrores fronteiriços norte-americanos e europeus recentes devidos a questões de emigração terem chocado muita gente, fronteiras eram amiúde lugares onde a viajante – ou o viajante - se sentia insegura e indefesa. Lembro-me de malas abertas e roupa espalhada na alfandega paquistanesa em Lahore, lidando com passageiros vindos de avião de Nova Deli, cinco anos após as independências da Índia e do Paquistão a partir da Índia colonial governada por Vice-Rei mandado de Londres - os ingleses, neste caso, não dividiram para reinar; dividiram para se irem embora).

 

Talvez o Gérard tivesse razão – mas tal não explica a exuberância e a frequência actual de diminutivos, a torto e a direito – além do clássico um beijinho grande, o pezinho, o bracinho, o enfartezinho (do miocárdio), a escadinha (Magirus); presumo que por correcção política deixei de ouvir dois, correntes na minha infância: pretinho e pobrezinho. Numa espécie de primavera que se apossou ultimamente dos portugueses, talvez toda a gente queira estar bem com toda a gente e atiremos diminutivos uns aos outros como dantes, no Carnaval, se atiravam serpentinas.

 

Gérard, António – só me vem à cabeça o medievo Villon a lembrar-se de amigos idos: Repos aïent au Paradis/Et Dieu garde les demeurants.

 

 

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