Em tempos, quando o Menino Jesus, ou tu, faziam anos, a família e os amigos da casa ofereciam-te objectos desconcertantes e inúteis, chamados brinquedos. Tu, está claro, ficavas muito contente com os presentes, por virem embrulhados em papéis vistosos, por constituírem uma novidade, aliás provisória (lamentável defeito da novidade!) mas principalmente por ser costume ficarmos contentes quando alguém nos oferece qualquer coisa. Na verdade, ou seja, no dia seguinte (a verdade só é completa no dia seguinte), verificavas que os tais brinquedos não correspondiam às tuas secretas ambições. Ah! O dia seguinte do brinquedo! Como é rápida a decadência do brinquedo, uma vez arrancado ao arranjo da montra da loja, onde brilhou, rodeado por outros brinquedos, valorizado por luzes hipócritas! Os brinquedos deviam ficar eternamente na suas caixas bonitas, ou penduradas nos tectos dos estabelecimentos para serem apontados pelos dedos indicadores dos meninos. É raro um brinquedo corresponder à imaginação da criança que o recebe. Deves lembrar-te de que, por volta dos teus seis anos, não achavas graça nenhuma a um boneco, por mais bonito que ele fosse. Eu, pelo menos, não achava. O que eu queria era um martelo verdadeiro para pregar pregos verdadeiros onde me apetecesse. A lei natural dos contrastes convida as crianças a desejarem ser adultas. Por exemplo: um cavalo vivo, com arreios de “cow-boy”, é artigo muito querido de todos os meninos. Pistolas autênticas, das que dão tiros homicidas, bicicletas de duas rodas, serrotes, etc., são objectos apreciadíssimos pela infância, que também aceita, resignadamente, as respectivas imitações, de lata, de três rodas, e sem dentes.
Tenho um amigo um bocado parecido comigo nestes assuntos de educação infantil. Tem dois filhos a quem tudo permite e a quem gostaria de realizar todos os sonhos. Há tempo, um dos pequenos pediu-lhe um serrote com dentes afiados, e o pai fez-lhe a vontade. O serrote marcou época em casa do meu amigo. Vários móveis de estimação foram serrados pelo garoto que, trocadilho aparte, tem «bicho carpinteiro». O pai do serrador desgostou-se com a proeza do filho e julgo que lhe tirou o serrote. Mas teve desgosto quando lhe tirou o serrote. Disse-me, confidencialmente, que nunca mais o seu querido filho teria um brinquedo que lhe desse satisfação comparável à daquele serrote verdadeiro. «Resta saber — concluiu — se é melhor evitar a perda de móveis insubstituíveis ou a perda duma partícula da alegria de viver do meu filho». Mas, repito, não ê possível apertar em tão poucas linhas a extensa filosofia do brinquedo.
[...] As crianças portuguesas já trazem de longe, quando nascem, uma indisciplina, uma desordem que não lhes consente manusear dinamite sem perigo de explosões. Logo, não as podemos presentear, aos dez anos, como acontece aos meninos alemães, com espingardas de tiro rápido, nem com cavalos de carne e osso, como é uso conceder às crianças inglesas. Sejamos prudentes com os nossos filhos, deliciosamente meridionais, imaginativos e bravos! Fabriquemos, para eles, alguns brinquedos mansos e já consagrados, mas tanto quanto possível aportuguesados.
Olavo d’Eça Leal
in Revista Panorama, número 12, ano 2º, 1942
Olavo d’Eça Leal (1908-1976) pertenceu à geração de intelectuais e artistas portugueses que colaboraram na revista Contemporânea e no Salão dos Independentes. Escritor e célebre radialista da Emissora Nacional, a sua obra inclui o teatro, a poesia, as artes plásticas, a ficção e a literatura infantil. Escreveu e produziu dezenas de peças para a rádio e televisão, foi jornalista, ilustrador, e coleccionador ecléctico.
Em 1939 publica um livro para crianças, Iratan e Iracema, os Meninos mais Malcriados do Mundo, com ilustrações de Paulo Ferreira, que recebe o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Esta história ao jeito de folhetim radiofónico infantil foi lida pelo autor aos microfones da Emissora Nacional no programa "Meia Hora de Recreio" em trinta e oito fragmentos. Em 1943 é editada a sua História de Portugal para os Meninos Preguiçosos (1943) ilustrada por Manuel Lapa.
Desenhos, pinturas, livros e objectos de Olavo d’Eça Leal reunidos ao longo dos últimos quarenta anos pelo seu filho Tomaz encontram-se expostos na Casa da Pinheira [The House of the She-Pine Tree] - Casa-Museu e Guest House situada numa antiga quinta do século XIX próximo da aldeia do Sabugo.
Agradecimentos: Tomaz d’Eça Leal, Casa da Pinheira , Hemeroteca Digital, Almanak Silva, Restos de Colecção, Juvenilbase, Wikipedia
Anunciador simbólico da missa do galo
País de tão poéticas tradições natalícias como o nosso, em verdade, nada precisa de ir buscar à casa alheia, nem sequer o maçudo e empanturrante Bolo-Rei — o francês Gâteau des Rois — nem de incutir na imaginação da infância, agora dotada de precoce discernimento, o mito dos saptinhos na chaminé. Dêm brinquedos às crianças, muitos brinquedos, mas eduquem-nas na compreensão de que só pelas graças do Menino Jesus é que os pais conseguiram os meios de lhos oferecer.
E depois de tudo isto, ainda um apelo final é de fazer. Não haverá por aí alguém que se disponha a cometer o belo crime de atacar a serrote a Árvore de Natal e a estafar de uma vez para sempre esse intruso e barbaçudo Pai-Natal da floresta germânica, de blusão e botifarras?
Que belos dias passados na prisão para expiar esse delito!
Francisco Lage
in "O Natal Português na Igreja, no Teatro, na Tradição, na Rua e na Família"
Panorama, nº 4, III série , Dezembro 1956
Foto: Mário Novais
Aparador da Consoada
Composição do natural, de Francisco Lage*
Rabanadas da consoada (Douro)
Pão de forma 1
Ovos 6 a 8
Manteiga 50 gramas
Açúcar 1 quilo
Canela q.b.
Põe-se o açúcar a ferver com água suficiente e deixa-se tomar ponto de espadana.
Corta-se o pão às fatias finas, não se utilizando as dos topos. Batem-se os ovos e neles se mergulham as fatias até ficarem bem repassadas. Fritam-se logo a seguir na calda, a que se juntou a manteiga, até que os ovos que as emvolvem fiquem bem cozidos. Com uma escumadeira vão-se retirando as fatias e colocando numa travessa funda. Polvilham-se de canela e regam-se com o resto da calda em que se fritaram.
*
Sonhos fofos
Ovos 6
Farinha 1 chávena
Manteiga 60 gramas
Açúcar 90 gramas
Canela q.b.
Sal q.b.
Fermento em pó 1 colher de chá
Calda de açúcar q.b.
Põem-se a ferver o leite, a manteiga, o açúcar, a canela e o sal; levantando fervura vaza-se-lhe para dentro, de repente, a farinha e mexe-se até que fique enxuta e cozida.
Deixa-se então esfriar um pouco e juntam-se o fermento e os ovos, um a um, ligando-os muito bem com a massa. Amassa-se com a mão até ficar uma massa leve. Fritam-se colheradas desta massa em bastante óleo ou azeite fervente. As colheres devem ser de sobremesa e pequenas pois os sonhos crescem bastante enquanto se fritam.
Cobrem-se depois os sonhos com calda de açúcar não muito espessa e aromatizada com baunilha e servem-se frios.
M.A.M. [pseud. colectivo de Maria Adelina Monteiro Grillo e Margarida Futscher Pereira]
in Cozinha do mundo português [p. 661 e p.664]
Porto: Livr. Tavares Martins, 1962
* Imagem: Foto Mário Novais
Revista Panorama, Número 4, III Série, Dezembro de 1956
in Caderno "O Natal Português" de Francisco Lage
FELIZ NATAL
Presépio popular de Barcelos
Panorama nº 24 - III Série - Dezembro de 1961
Associação Portugal à Mão aqui
Figuras de barro de Estremoz
foto: capa de Revista Panorama nº 12, III Série, Dezembro 1958
Bom Natal
Outro presépio de Estremoz neste blog aqui
Mais sobre bonecos de barro aqui e aqui
Blog do Museu Municipal de Estremoz aqui
Nas praias solitárias da ilha de Timor as frondes e as palmas sacodem já uns vagos restos de neblinas. Vale de Lahane acima vão fugindo esgarçadas pelos fustes mais altos; alcandoram-se, por fim, ameaçadoras, nas ramagens sombrias da verde floresta de eucaliptos. As linhas de cumiada cobrem-se de uma vegetação estranha. As árvores são as mesmas, os eucaliptos de tronco rugoso e escuro, mas em vez de folhas pegam-se aos ramos e raminhos os farrapos de musgo, cor do nevoeiro. Estranha paisagem, repito, como a de um país do Norte, onde a voz se escoa em surdina e o olhar descobre formas deambulantes e translúcidas, por entre a profusão de fetos arborescentes, polipódios, «ninhos de ave» e outras plantas que recordam os primeiros tempos da Terra. Verdadeiramente, uma paisagem de sonho onde a solidão caminha a nosso lado e se insinua connosco nas profundidades inenarráveis do mistério. Quando, porém, o sol devassa aquela penumbra esverdeada e evapora de todo os nevoeiros, é ainda a solidão que nos espera, mas uma solidão alheia aos secretos apelos da vida. A natureza remoça, temporariamente, mas sem a omnipresença das seivas criadoras. E o mistério perdeu-se.
Era o tempo de abrir a alma aos quatro ventos, subir para as alturas e aspirar o ar fino e frio; de me sentir o senhor da Terra, «Rainai» de Timor, absorto... Das grandes alturas a vista imensa abarca montes e montes, serranias cruzadas, dois a três mil metros rolando, como as vagas de um mar fortemente encapelado. A ilha sente ainda a proximidade do anel de fogo que nas Flores e em Lomblem ascende em majestosos vulcões; do Tata-Mai-Lau posso abranger em dias claros de Setembro o maior comprimento, e de ambos os lados o mar sem fim, limitado ao Norte pelos maciços das restantes ilhas do grande arquipélago: Alor, Ataúro, Liran, Wetter, Kissar...
Mas ensimesmado pelo sortilégio vegetal da minha ilha havia de descer aos vales umbrosos onde me esperam tantas surpresas e deslumbramentos. Para que lado me dirigir? A costa norte é já sobejamente conhecida desde Maubara a Lautem. Com pequenas variantes, acidentes de rocha, sobretudo, a charneca doirada onde os eucaliptos de tronco estrangulado e alvadio, como de róseo marfim, os coqueiros da beira-mar, os «akadiros» e as palapas, — figuras extáticas do classicismo dos trópicos —, se misturam às acácias de para-sol, às casuarinas das margens dos ribeiros e ainda às manchas viridentes, contrastadas, dos bosques marítimos. Viria, passados tempos, a descobrir-lhe as surpreendentes belezas, quando, saciado dos vergéis e selvas misteriosas da costa sul, viesse repousar na sombra acariciante dos parques de tamarindo e jujubeiras? E ao ouvir o cristalino acento de um regato perdido na solidão ardente, saberia então olhar os elementos de que era feita a paisagem desprezada? E aprenderia a amar as grandes linhas sóbrias de uma praia solitária, de uma escarpa descida verticalmente no mar, de uma encosta onde a erosão abria profundas feridas, ...as colinas ondulantes e, sobretudo, a pureza luminosa que se filtrava na tarde calma pela folhagem clara da floresta aberta do Eucaliptus alba?
Timor, Páginas de um Diário Poético
Ruy Cinatti
"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"
Números 36 e 37, ano de 1948
Foto: Ruy Cinatti (1947)
A vegetação de Timor, ao contrário do que se imagina, não é composta, exclusivamente, por agrupamentos de natureza tropical, nem oprime o espírito ao ponto de nos considerarmos irremediavelmente à mercê do poder dos elementos da selva. A oito graus de latitude sul, a ilha oferece-nos o espectáculo incomparável de uma vegetaçãoo cintilante e vária que, conforme as regiões, se sintetiza em paisagens dos mais diferentes países do mundo. As florestas do «Eucalyptus obliqua» transportam-nos à Nova Gales do Sul e à Tasmania, já perto do círculo antártico; os parques de «Tamarindus» e de «Ziziphus» a certos espaços do nosso Alentejo; os planaltos de Fuiloro lembram os campos e os bosques do norte da Europa, a verdura luminosa dos condados ingleses; e, na estação seca, as florestas de paus-rosa», dir-se-iam imitar os maciços arbóreos do Buçaco ou Gerez. A par disso é um prolongamento de Samatra, Java e outras ilhas de vegetação genesiaca, mas harmoniosamente equilibrada. Não admira que o espírito sensível de Alberto Osório de Castro fosse levado a confessar: «A flora de Timor, misteriosa e fremente, em mim, produz, por vezes o mesmo « grand songe terrestre», igual vertigem e ardente ebriedade pânica à que me dão certos poemas... » (Ruy Cinatti)
«Troncos colossais, majestosos, encordoados, de quatro a cinco metros de circunferência, raízes poderosas que se torcem sobre o pavimento da rua...» (Armando Pinto Correia)
«Os palavões brancos (Eucalyptus alba) das encostas xistosas do litoral, diziam-me já a soledade adusta do “Bush” australiano, não distante.» (Alberto Osório de Castro)
Timor, Páginas de um Diário Poético
Ruy Cinatti
"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"
Números 36 e 37, ano de 1948
Fotos: Ruy Cinatti
« De qualquer forma por que as populações timoresas se estudem..., o caos surge desnorteante e quase impenetrável, revelando-se a disparidade de raças que na ilha e fora dela se cruzaram para produzir os tipos e os dialectos que naquele país se encontram. Dir-se-ia que da mais ocidental das terras sundanesas até às Filipinas e destas para o sul, e deste até Timor e às Fidji, todos os povos se mestiçaram e emigraram de forma a criar a Babel de elementos somatológicos que é a ilha de Timor. » (Leite de Magalhães)
«As raparigas de Oékussi, de uma tez de âmbar gris claro, feições delicadas, lembram sundanesas ou burmesas de distantes origens indús.» (Alberto Osório de Castro)
Timor, Páginas de um Diário Poético
Ruy Cinatti
"Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"
Números 36 e 37, ano de 1948
Fotos: Ruy Cinatti (1947)
O Timor de Ruy Cinatti de Peter Stilwell | PDF in Revista Camões nº14 aqui
História-Antropologia TIMOR LESTE aqui
«Mani-meta são os edifícios cujo pau de fileira se ornamenta, com pontas de búfalo, conchas marinhas e paus trabalhados em forma de pássaros. Assentam, como as construções sagradas, em oito prumos, os quatro primeiros cravados no terreno e segurando um tabuleiro, espécie de terraço sem paredes, onde se recebem visitas, as mulheres tecem panos e às vezes se cozinha.» (Armando Pinto Correia)
«Julguei que, sendo aquela a mais distante e a menos conhecida das terras do nosso Império, todos os que por lá andaram, e porventura a sentiram e amaram como eu, se não podiam furtar ao dever nacional de contar à Metrópole um pouco do que sabem a respeito de Timor.» (Armando Pinto Correia)
Fotos: Ruy Cinatti (1947)
Timor, Páginas de um Diário Poético
Ruy Cinatti
in "Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo"
Números 36 e 37, ano de 1948