Quarta-feira, 26 de Dezembro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Karajan - Lipatti

 

 

José Cutileiro

 

Elites

 

Há coisas antigas quanto a espécie humana. Em toda a parte, a guerra (a paz é uma invasão recente) vinda já de primos antepassados próximos - Cromagnon; Neandertal; alguns africanos - e, em quase toda a parte, o arranjo das gentes em mó de cima e mó de baixo, mesmo quando ainda não haja agricultura a separar quem tenha a terra de quem a trabalhe. De vez em quando, os da mó de baixo acham que a sua voz deveria ser mais ouvida do que o é e o bom povo passa de querer mal aos vizinhos – alfacinhas a tripeiros, portugueses a espanhóis, europeus a africanos, matéria prima da história tal como ela é (era ?)  ensinada nos liceus e atitude aprovada por pais da Pátria e por forças vivas  da nação - a querer mal a patrões se for por eles empregada e a ricos em geral se achar que  não pertence ao grupo.

 

A França é o país europeu que se especializou na segunda variedade e, como os vinhos, tem anos piores e anos melhores. 2019 promete, com os coletes amarelos na rua, a bloquear rotundas e pagamentos nas autoestradas e a proclamar urbi et orbi que o mundo é mal feito e que é preciso refazê-lo melhor (propondo muitos o referendo – cidadão, como eles dizem – processo seguro de enrolar o povo e abrir a porta a ditaduras). Quanto à contribuição directa dos coletes amarelos para organização social decente de aldeias, cidades, países e continentes onde porventura tomassem ou influenciassem o poder, pouco sabemos ainda mas, por outro lado, talvez saibamos já tudo. Se um deste dias a leitora se meter à estrada em França e passar por grupos aguerridos de coletes amarelos, se não levar à vista no para-brisas do seu carro um dos ditos coletes e não tocar muitas vezes a buzina fazem-na passar devagar e gritam-lhe insultos. Les gilets jaunes acreditam em « zero-sum games » como se diz agora, isto é, são incapazes de compromisso e, portanto, nocivos à democracia. Dito isto, repito o que já disse aqui muitas vezes: depois do colapso da União Soviética o capitalismo tomou o freio nos dentes (ou, pior ainda, passou a obedecer cegamente às instruções de uma clique que o controla e sabe muito bem o que quer, como dantes nas visões conspirativas dos comunistas mais néscios) de tal maneira que o fosso entre ricos (cada vez menos) e pobres (cada vez mais) continua a cavar-se muito depressa, levando a minha mulher a dias a ter inveja do meu BMW,  em vez de como dantes, na tradição das trente glorieuses, sentir nele uma segurança cobrindo o seu VW.

 

As elites? Escrevo no dia de Natal. Ainda deitado ao fim da manhã, chegaram-me lá a cima, vindos da sala no primeiro andar onde está a música, Lipatti ao piano e Karajan a dirigir a orquestra no andante do concerto para piano n°21 em dó maior de Mozart, no festival de Lucerna de 1950, gravado por auditor que o ouvia na telefonia e ressuscitado por técnicos no CD que eu tenho. Ramalhete de milagres de génio musical e tecnologias contemporâneas trouxe-me  bem-aventurança neste dia sagrado dos cristãos de 2018.

 

 

 

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Quarta-feira, 27 de Dezembro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

Reis Magos Marva

Cartão de Boas Festas (1965)

desenhado por Vasco Luís Futscher Pereira (1922-1984) e vendido nas Papelarias Progresso e da Moda.

 

 

 

 

José Cutileiro

 

Ano Novo Feliz

 

 

 

Se, como acontecia quando fui viver para Inglaterra, o jornal The Times de Londres ainda tivesse a sua primeira página só com anúncios postos pelos leitores para vender fosse o que fosse, comprar fosse o que fosse, oferecer empregos, pedir empregos, anunciar acontecimentos privados, procurar notícias pessoais, dar notícias pessoais, eu teria há semanas posto nela a comunicação seguinte: “Mr. and Mrs. José Cutileiro [ou talvez Mr. José Cutileiro and Ms. Myriam Sochacki] of Rue Darwin, Brussels, wil not be sending Christmas cards this year” de maneira a que quem desse pela falta dos ditos cartões de Boas Festas no que carteiro lhe houvesse deixado durante a Quadra não julgasse que nos tinha acontecido qualquer coisa inibitória – morte, grava doença súbita, divórcio, fuga – e ficasse indevidamente preocupado com isso ou que nos tínhamos pura e simplesmente esquecido deles (ou decidido deliberadamente ignorá-los).

 

É a primeira vez que não mando cartões de Boas Festas mas o mundo já não é tão simples quanto era entre 1963, quando fui viver para Oxford e 1977, quando deixei definitivamente de viver em Londres. Logo em 1966 o Times - último jornal a fazê-lo, aguentando-se sozinho durante décadas - deixou de ter a sua primeira página dedicada a anúncios pessoais e passou, como os outros jornais do mundo inteiro, a pôr nela o que, em cada dia, pareça ter mais importância urbi et orbi. Alguns anos depois apareceu a internet que mudou os hábitos de comunicação letrada das pessoas. Antes de tudo isso, no começo do século XX quando o uso do telefone fixo não estava ainda disseminado, chegara a haver em Londres quatro distribuições de correio por dia – nessa altura namorados houve que se escreveram e responderam duas vezes, diariamente, durante as passagens mais intensas dos seus amores. O telégrafo fizera a primeira mossa, mas pequena. O telefone, quando se tornou corrente, fora mais grave. Mas os estragos causados pela internet são incomparavelmente maiores e em todos os países europeus se assiste à derrocada dos correios, sendo as suas instalações convertidas para outros fins. (Em Portugal, em meados do século XIX, a extinção das ordens religiosas libertou imenso casario, rapidamente ocupado pela introdução do serviço militar obrigatório. Nada se perde e nada se cria).

 

Juntamente com mudanças técnicas houve mudanças nas almas: na Europa há menos cristãos praticantes do que havia. Mas continuam a contar-se muitos adeptos fervorosos dos festejos de Natal, até entre ateus. Os cartões de Boas Festas, em cartolina mesmo (não imitações, às vezes com música, confinadas a écrans de televisão, fora do ambiente de uma casa) alinhando-se em lintéis de lareiras e diante de livros nas estantes, são ainda hoje parte indispensável da decoração. Mas certezas antigas acabaram: quem só receba meia dúzia de cartões, como se desembaraçará?

 

Comecei a escrever para desejar Bom Ano à leitora e acabo decidido a tornar a mandar cartões em 2018.

 

 

 

 

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Sábado, 23 de Dezembro de 2017

Bom Natal

 

 

Presépio Marva 2

 

Cartão de Boas Festas (1965)

desenhado por Vasco Luís Futscher Pereira (1922-1984) e vendido nas Papelarias Progresso e da Moda.

 

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Domingo, 25 de Dezembro de 2016

Boas Festas

 

 

468px-Piero_della_Francesca_041

 

Nativity, 1470-1475 - Piero della Francesca

 

 

 

 

 

 

 

 

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Domingo, 18 de Dezembro de 2016

brinquedos portugueses

 

 

Olavo 1.jpg

 

 

Em tempos, quando o Menino Jesus, ou tu, faziam anos, a família e os amigos da casa ofereciam-te objectos desconcertantes e inúteis, chamados brinquedos. Tu, está claro, ficavas muito contente com os presentes, por virem embrulhados em papéis vistosos, por constituírem uma novidade, aliás provisória (lamentável defeito da novidade!) mas principalmente por ser costume ficarmos contentes quando alguém nos oferece qualquer coisa. Na verdade, ou seja, no dia seguinte (a verdade só é completa no dia seguinte), verificavas que os tais brinquedos não correspondiam às tuas secretas ambições. Ah! O dia seguinte do brinquedo! Como é rápida a decadência do brinquedo, uma vez arrancado ao arranjo da montra da loja, onde brilhou, rodeado por outros brinquedos, valorizado por luzes hipócritas! Os brinquedos deviam ficar eternamente na suas caixas bonitas, ou penduradas nos tectos dos estabelecimentos para serem apontados pelos dedos indicadores dos meninos. É raro um brinquedo corresponder à imaginação da criança que o recebe. Deves lembrar-te de que, por volta dos teus seis anos, não achavas graça nenhuma a um boneco, por mais bonito que ele fosse. Eu, pelo menos, não achava. O que eu queria era um martelo verdadeiro para pregar pregos verdadeiros onde me apetecesse. A lei natural dos contrastes convida as crianças a desejarem ser adultas. Por exemplo: um cavalo vivo, com arreios de “cow-boy”, é artigo muito querido de todos os meninos. Pistolas autênticas, das que dão tiros homicidas, bicicletas de duas rodas, serrotes, etc., são objectos apreciadíssimos pela infância, que também aceita, resignadamente, as respectivas imitações, de lata, de três rodas, e sem dentes.

 

 

 

Olavo 2.jpg

 

 

 

Tenho um amigo um bocado parecido comigo nestes assuntos de educação infantil. Tem dois filhos a quem tudo permite e a quem gostaria de realizar todos os sonhos. Há tempo, um dos pequenos pediu-lhe um serrote com dentes afiados, e o pai fez-lhe a vontade. O serrote marcou época em casa do meu amigo. Vários móveis de estimação foram serrados pelo garoto que, trocadilho aparte, tem «bicho carpinteiro». O pai do serrador desgostou-se com a proeza do filho e julgo que lhe tirou o serrote. Mas teve desgosto quando lhe tirou o serrote. Disse-me, confidencialmente, que nunca mais o seu querido filho teria um brinquedo que lhe desse satisfação comparável à daquele serrote verdadeiro. «Resta saber — concluiu — se é melhor evitar a perda de móveis insubstituíveis ou a perda duma partícula da alegria de viver do meu filho». Mas, repito, não ê possível apertar em tão poucas linhas a extensa filosofia do brinquedo.

 

 

 

Olavo 3.jpg

 

 

[...] As crianças portuguesas já trazem de longe, quando nascem, uma indisciplina, uma desordem que não lhes consente manusear dinamite sem perigo de explosões. Logo, não as podemos presentear, aos dez anos, como acontece aos meninos alemães, com espingardas de tiro rápido, nem com cavalos de carne e osso, como é uso conceder às crianças inglesas. Sejamos prudentes com os nossos filhos, deliciosamente meridionais, imaginativos e bravos! Fabriquemos, para eles, alguns brinquedos mansos e já consagrados, mas tanto quanto possível aportuguesados.

 

 Olavo d’Eça Leal

in Revista Panorama, número 12, ano 2º, 1942

 

 

 

 

Olavo-dEa-Leal10.jpg

 

Olavo d’Eça Leal (1908-1976) pertenceu à geração de intelectuais e artistas portugueses que colaboraram na revista Contemporânea e no Salão dos Independentes. Escritor e célebre radialista da Emissora Nacional, a sua obra inclui o teatro, a poesia, as artes plásticas, a ficção e a literatura infantil. Escreveu e produziu dezenas de peças para a rádio e televisão, foi jornalista, ilustrador, e coleccionador ecléctico.

 

Em 1939 publica um livro para crianças, Iratan e Iracema, os Meninos mais Malcriados do Mundo, com ilustrações de Paulo Ferreira, que recebe o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Esta história ao jeito de folhetim radiofónico infantil foi lida pelo autor aos microfones da Emissora Nacional no programa "Meia Hora de Recreio" em trinta e oito fragmentos. Em 1943 é editada a sua História de Portugal para os Meninos Preguiçosos (1943) ilustrada por Manuel Lapa.

 

Desenhos, pinturas, livros e objectos de Olavo d’Eça Leal reunidos ao longo dos últimos quarenta anos pelo seu filho Tomaz encontram-se expostos na Casa da Pinheira [The House of the She-Pine Tree] - Casa-Museu e Guest House situada numa antiga quinta do século XIX próximo da aldeia do Sabugo.

 

 

 

 

 

Agradecimentos: Tomaz d’Eça Leal, Casa da Pinheira , Hemeroteca DigitalAlmanak Silva, Restos de Colecção, JuvenilbaseWikipedia

    

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Sexta-feira, 25 de Dezembro de 2015

Before the Ice

 

 

árvore VFP 2007.jpg

 

Aguarela de Vasco Futscher Pereira (2007)

 

 

 

 

Before the ice is in the pools, 
Before the skaters go, 
Or any cheek at nightfall 
Is tarnished by the snow, 
Before the fields have finished, 
Before the Christmas tree, 
Wonder upon wonder 
Will arrive to me!



Emily Dickinson

 

 

 

 

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Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

presépio - Novais 1936.jpg

 Presépio de Estremoz. Alentejo, Portugal.   

Foto: Estúdio Novais, 1936 

 

 

 

 

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

 

Natal

 

 

 

Há meio século, quando eu vivia em Oxford e ia muitas vezes a Londres (ou uns anos mais tarde quando eu vivia em Londres e ia poucas vezes a Oxford) o Luís de Sousa (que nessa altura vivia em Londres e agora vive em Oxford) contou-me que um professor de história de arte de cujo nome me esqueci e dava aulas já não sei em qual dos colégios da Universidade de Londres, quando chegava às escolas ou maneiras da pintura europeia das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX ensinava aos alunos: “No Impressionismo, pinta-se o que se vê; no Expressionismo, pinta-se o que se sente; no Neorrealismo, pinta-se o que se ouve” (as aulas eram em inglês e o professor dizia social realism em vez de neorrealismo mas é o mesmo).

 

A sentença ficou-me gravada no canto da memória onde estão arrumados os julgamentos estalinistas dos anos trinta na Rússia, quando centenas e centenas de funcionários do partido comunista da União Soviética, dos mais altos aos mais baixos na nomenklatura, em tribunal confessaram falsamente (com boa consciência) terem traído a pátria e o partido, às vezes ao serviço de potências estrangeiras, sendo condenados à morte e executados, para exemplo do povo em geral e opróbrio de suas famílias, bem como arrumada nesse canto está a lembrança de um dia no Outono de 1991 em Argel, em visita oficial, com a cidade, entre europeia e africana, pobre, mal cuidada mas ainda bonita ao sol, fazendo-me pensar que Lisboa seria assim se Vasco Gonçalves se tivesse aguentado uma dúzia de anos no poder – e como vai ser também guardado o momento contado por amiga que há dias num elevador apinhado de Luanda, ouviu jovem triste do MPLA responder ao “Então?” matinal de um colega, dizendo: “Sofremos felizes”. 

                                  

Sou um dos muitos portugueses que consideram que o país, logo a seguir ao 25 de Abril, ficou a dever a liberdade da democracia à visão e à coragem de Mário Soares. Durante quatro décadas não tive disso a menor dúvida e não a tenho agora. Pelo contrário: nas últimas semanas, maus augúrios levam-me a recear mais pobreza e mais demagogia inspiradas de cima – e a apreciar melhor ainda a barragem de bom senso e decência oposta por Soares a disparates de esquerda e de direita.

 

Mas é semana de Natal, não neva na província, esqueço estas coisas todas e lembro um poema (neorrealista?) de que gosto muito.

 

 

Natal

 

 

Foi numa cama de folhelho,

entre lençóis de estopa suja

num pardieiro velho.

Trinta horas depois a mãe pegou na enxada

e foi roçar nas bordas dos caminhos

manadas de ervas

para a ovelha triste.

E a criança ficou no pardieiro

só com o fumo negro das paredes

e o crepitar do fogo,

enroscada num cesto vindimeiro,

que não havia berço

naquela casa.

E ninguém conta a história do menino

que não teve

nem magos a adorá-lo,

nem vacas a aquecê-lo,

mas que há-de ter

muitos reis da Judeia a persegui-lo;

que não terá coroas de espinhos

mas coroas de baionetas

postas até ao fundo do seu corpo.

Ninguém há-de contar a história do menino.

Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

 

 

 

Álvaro Feijó

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                                                                                                                                                        

    

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Quinta-feira, 25 de Dezembro de 2014

O Natal Português

 

 

Natal Anunciador.jpg  Anunciador simbólico da missa do galo

 

 

País de tão poéticas tradições natalícias como o nosso, em verdade, nada precisa de ir buscar à casa alheia, nem sequer o maçudo e empanturrante Bolo-Rei — o francês Gâteau des Rois  — nem de incutir na imaginação da infância, agora dotada de precoce discernimento, o mito dos saptinhos na chaminé. Dêm brinquedos às crianças, muitos brinquedos, mas eduquem-nas na compreensão de que só pelas graças do Menino Jesus é que os pais conseguiram os meios de lhos oferecer.

 

E depois de tudo isto, ainda um apelo final é de fazer. Não haverá por aí alguém que se disponha a cometer o belo crime de atacar a serrote a Árvore de Natal e a estafar de uma vez para sempre esse intruso e barbaçudo Pai-Natal da floresta germânica, de blusão e botifarras?

 

Que belos dias passados na prisão para expiar esse delito!

 

 

Francisco Lage

in "O Natal Português na Igreja, no Teatro, na Tradição, na Rua e na Família"

Panorama, nº 4, III série , Dezembro 1956

 

Foto: Mário Novais

 

 

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Quarta-feira, 24 de Dezembro de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

flight-into-egypt-1.jpg

 Fuga para o Egipto, Giotto 1311

 

 

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

Boas Festas

 

 

 

A quadra de presentes é propícia ao calibrar das posses de cada um e sente-se no ar um perfume de luta de classes de que não me lembrava há muito tempo (“consciência de classe que parecia adormecida”, escreve-me amiga em Portugal). Apesar de distracções na televisão, na telefonia, nos jornais, na internet, nas redes sociais - guerra sem quartel entre sunitas e xiitas; tropelias de Putin; aquecimento global provocado pelo homem (brinca, brincando, crescemos de dois mil para sete mil milhões em pouco mais de meio século: europeus, porém, somos cada vez menos); epidemias que resistem a remédios - mau viver insidioso alastra em cada vizinhança.

 

Como só más notícias se vendem – e compram – entram-nos desgraças pela casa dentro amanhadas “de cinco maneiras diferentes”, como os linguados do restaurante Sua Excelência quando o Queiroz recitava o menu. Contra mim falo, mas parece às vezes haver hoje mais comentadores do que coisas a comentar. Entretanto, espreguiçando-se estremunhada, a luta de classes que ninguém é capaz de definir mas em que muitos gostam de acreditar – um bocadinho assim como a Graça de Deus – arreganha os dentes. Já tínhamos passado por isso e eu julgava que o assunto estivesse arrumado. Nem pouco mais ou menos.

 

Os muito ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Muita gente na finança – banqueiros e para-banqueiros, grandes, médios e pequenos – tomou o freio nos dentes desde que a União Soviética colapsou e deixou de ter medo fosse do que fosse. Sem perceber que o fim do comunismo não fora a irradicação de uma doença mas sim o fracasso de um remédio – nunca é demais repeti-lo – abandonou o cuidado dos outros. Mas enquanto os Estados Unidos, arrancando com um programa de estímulo, saíram da crise que lá começara em 2008, a Europa, com a grilheta da austeridade a arrastar-lhe os pés, abeira-se da deflação. Irlanda, Grécia e Portugal devem mais do que deviam quando os programas de ajuda começaram - e nunca poderão pagar. Uma falsa convicção germânica de virtude obnubila responsáveis políticos e fá-los insistir no mau caminho.

 

Quando a economia, em vez de crescer, mirra, e os filhos vivem pior do que viveram os pais, os europeus, desabituados há muito tempo de tais desconfortos, tornam-se agressivos. Xenofobia pavoneia-se em França, na Alemanha, na Grã-Bretanha; protecionismo empobrece as nações. Quando não haja estrangeiros nem infiéis para bode expiatório avança a “luta de classes” - exemplo da tentação universal de fazer passar inveja por virtude - com tradição em Portugal, primeiro às escondidas da PIDE, depois posta ao léu pela Revolução dos Cravos. Esquecida a seguir – e lembrada agora.

 

A menos que os políticos entendam, percam medo da Alemanha, esqueçam austeridade e se metam a ajudar a economia com bom senso e coragem precisos, o que espera a Europa é - com vénia a Mestre António Garcia - uma broncalina do camandro ou uma Bernardette do caboz.

 

Boas Festas, mesmo assim.

 

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Terça-feira, 23 de Dezembro de 2014

Consoada

 

Natal consoada Panorama.jpg

 

 Aparador da Consoada

Composição do natural, de Francisco Lage*

 

 

Rabanadas da consoada  (Douro)

 

 

Pão de forma                          1

Ovos                                         6  a  8

Manteiga                                50  gramas

Açúcar                                    1  quilo

Canela                                    q.b.

 

 

Põe-se o açúcar a ferver com água suficiente e deixa-se tomar ponto de espadana.

 

Corta-se o pão às fatias finas, não se utilizando as dos topos. Batem-se os ovos e neles se mergulham as fatias até ficarem bem repassadas. Fritam-se logo a seguir na calda, a que se juntou a manteiga, até que os ovos que as emvolvem fiquem bem cozidos. Com uma escumadeira vão-se retirando as fatias e colocando numa travessa funda. Polvilham-se de canela e regam-se com o resto da calda em que se fritaram.

 

 

 

 *

 

 

Sonhos fofos

 

 

Ovos                                        6

Farinha                                  1  chávena

Manteiga                              60  gramas

Açúcar                                   90  gramas

Canela                                   q.b.

Sal                                          q.b.

Fermento em pó                1  colher de chá

Calda de açúcar                  q.b.

 

 

Põem-se a ferver o leite, a manteiga, o açúcar, a canela e o sal; levantando fervura vaza-se-lhe para dentro, de repente, a farinha e mexe-se até que fique enxuta e cozida.

 

Deixa-se então esfriar um pouco e juntam-se o fermento e os ovos, um a um, ligando-os muito bem com a massa. Amassa-se com a mão até ficar uma massa leve. Fritam-se colheradas desta massa em bastante óleo ou azeite fervente. As colheres devem ser de sobremesa e pequenas pois os sonhos crescem bastante enquanto se fritam.

 

Cobrem-se depois os sonhos com calda de açúcar não muito espessa e aromatizada com baunilha e servem-se frios.

 

 

 

M.A.M. [pseud. colectivo de Maria Adelina Monteiro Grillo e Margarida Futscher Pereira]

in Cozinha do mundo português [p. 661 e p.664] 

Porto: Livr. Tavares Martins, 1962

 

* Imagem: Foto Mário Novais

Revista Panorama, Número 4, III Série, Dezembro de 1956

in Caderno "O Natal Português" de Francisco Lage

 

 

 

 

FELIZ  NATAL 

 

 

 

publicado por VF às 10:55
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