Quarta-feira, 5 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Vicentes CarnavalCandeeiros (Os dias dos nossos carnavais) - Museu Vicentes, Madeira

 

 

 

José Cutileiro

 

Gemeinschaftzinho

 

 

«Vossas Excelências não têm nada a declarar? Não há malinhas de mão ?»

 

Assim pergunta de cais de estação de caminho de ferro florida, numa manhã cheia de sol, ‘fardeta agaloada’ e, dentro da carruagem, Zé Fernandes que acompanha o seu amigo Jacinto na primeira visita à terra dos antepassados deste, percebe que, havendo deixado para trás a rudeza da noite castelhana, tinham acordado em Portugal.

 

Malinhas, não malas, disse a fardeta na raia seca. «Já acabei de limpar a metralhadorazinha» diria algures em Angola, quase setenta anos depois, soldado raso a tenente miliciano do exército português. Este outro caso fora contado pelo miliciano em questão, depois de regressado à metrópole e desmobilizado, ao Gérard Castello Lopes que o contara ao Antonio Tabucchi que mo contara a mim. Gérard tinha uma teoria sobre o uso português dos diminutivos, não sei se verdadeira se falsa, mas que acho valer a pena expor à leitora. Segundo ela, nós usamos diminutivos para mostrarmos ser bem educados e darmos primazia ao nosso interlocutor. Da mesma maneira que em muitas pinturas medievais em que se vejam várias pessoas o tamanho de cada uma delas não varia segundo regras de perspectiva (quanto mais longe mais pequenas) mas segundo regras de hierarquia social (quanto mais importantes maiores) assim nas nossas trocas de palavras. Ao usarmos diminutivos, colocamo-nos em posição respeitosa perante a pessoa com quem falamos. Tal fizera, com efeito, a fardeta agaloada ao chamar malinhas de mão à bagagem dos viajantes sem sequer a ter visto. De caminho vinha sugestão de hospitalidade e bonomia, de rejeição de hostilidade, mais importantes ainda numa fronteira do que longe dela. (Mesmo antes de alguns horrores fronteiriços norte-americanos e europeus recentes devidos a questões de emigração terem chocado muita gente, fronteiras eram amiúde lugares onde a viajante – ou o viajante - se sentia insegura e indefesa. Lembro-me de malas abertas e roupa espalhada na alfandega paquistanesa em Lahore, lidando com passageiros vindos de avião de Nova Deli, cinco anos após as independências da Índia e do Paquistão a partir da Índia colonial governada por Vice-Rei mandado de Londres - os ingleses, neste caso, não dividiram para reinar; dividiram para se irem embora).

 

Talvez o Gérard tivesse razão – mas tal não explica a exuberância e a frequência actual de diminutivos, a torto e a direito – além do clássico um beijinho grande, o pezinho, o bracinho, o enfartezinho (do miocárdio), a escadinha (Magirus); presumo que por correcção política deixei de ouvir dois, correntes na minha infância: pretinho e pobrezinho. Numa espécie de primavera que se apossou ultimamente dos portugueses, talvez toda a gente queira estar bem com toda a gente e atiremos diminutivos uns aos outros como dantes, no Carnaval, se atiravam serpentinas.

 

Gérard, António – só me vem à cabeça o medievo Villon a lembrar-se de amigos idos: Repos aïent au Paradis/Et Dieu garde les demeurants.

 

 

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Quarta-feira, 3 de Abril de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Jnicholson6

Harold Nicolson e Vita Sackville West em 1932

 

 

 

José Cutileiro

 

  Pérfida Albion II

                          

The worst kind of diplomatists are missionaries, fanatics and lawyers

                                                             Harold Nicolson, Diplomacy, OUP, London, 1939

 

 

Quando a primeira edição do supra citado livro de Sir Harold Nicolson foi publicada não havia, depois do fiasco da Sociedade das Nações, organizações publicas internacionais como há agora e menos ainda qualquer coisa parecida com a União Europeia. Na realidade, foram precisos seis anos de guerra brutal como nenhuma outra antes e, a seguir a esta, a tenacidade e a visão de meia dúzia de europeus, (entre os quais um francês, Jean Monnet, exportador de cognac que não se formara em Normale Sup e aconselhara o Presidente Franklin Roosevelt), bem como boa vontade, apoio militar e ajuda financeira dos Estados Unidos da América para pôr de pé o projecto que levou à União, cuja trave mestra é invenção recente, a amizade franco-alemã, e está a atravessar o momento mais difícil da sua existência devido a incapacidade aparente do Reino Unido, de um lado, e dos seus vinte e sete parceiros, do outro, de encontrarem maneira aceitável para todos do Reino Unido sair dela a bem.

 

Essa incapacidade assumiu recentemente, do lado do Reino Unido, facetas mais de opera buffa do que de negociação internacional, exercitando as melhores cabeças do jornalismo e da academia na busca de uma saída que fosse aceitável para a Câmara dos Comuns em Londres. Entre a quantidade de descrições interpretativas do que aconteceu até agora e do beco – ou becos – a que se chegou, muitas tendem a culpar a maneira como a negociação fora conduzida desde o princípio por Theresa May, escolhida para Primeiro Ministro pelo partido conservador  depois do chefe anterior deste, David Cameron – responsável pelo referendo em que os britânicos deviam escolher entre permanecer na União Europeia ou sair dela - se demitir. Deixo tudo isso de lado mas não sem recordar que parte do problema reside no facto dos ingleses levarem o seu parlamento muito mais a sério do que os continentais (o que é sinal de saúde política e não sintoma de doença).

 

No Verão passado, historiador expatriado meu amigo, falando do Brexit, perguntou-me « Eles, lá em Bruxelas,  estão conscientes da tragédia que isto é tudo ? » Infelizmente, com raríssimas excepções, julgo que não estivessem nem estejam. Há imensa gente a saber tudo sobre todas as árvores e quase ninguém capaz de ver a floresta. Ora Brexit, se não for tratado com muito cuidado, precipitará mudança tectónica indesejável no equilíbrio do Ocidente. E quer o fado que, à falta de grande estadista que agarrasse este gato pela pele do pescoço, se junte muito do pessoal que Nicolson mais receava. Do lado do Continente, de várias cores políticas, abundam os federalistas – e não há mais missionário; do lado das Ilhas, metendo medo ao governo, vociferam os Brexiters de base – e não há mais fanático. Dum lado e doutro, o terreno está polvilhado de assessores jurídicos, isto é, de advogados.

 

Azar dos Távoras.

 

 

 

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Quarta-feira, 27 de Março de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Xultimatum

Outros tempos

José Cutileiro

 

Pérfida Albion

 

Para crítico perspicaz Theresa May e os seus sucessivos negociadores queriam que acordo comercial perfeito com a União Europeia, soberania nacional pura e nenhuma fronteira com a Irlanda fizessem parte do contrato de saída da União a assinar pelo Reino Unido e os 27 estados membros restantes. Quando, a pouco e pouco, foram percebendo que tal vontade não era realizável sem ajustes que ajeitassem as contradições, já May tomara medidas e fizera declarações desastrosas (exemplos: assim que escolhida para chefe do partido promover eleições que perdeu e, com elas, a maioria absoluta; declarar, repetidamente, que no dealera preferível a um bad dealsem ter percebido que esta negociação não era como as outras; marcar linhas vermelhas exactamente onde precisava de espaço para negociar) que a revelaram incompetente e incapaz de resistir aos Brexiters extremos que, desde Thatcher, atormentam quem mande no partido Tory.

 

Um fraco rei faz fraca a forte gente e a podridão da cabeça chegou ao corpo todo. Colaboradores directos foram-se demitindo e contradizendo, até mesmo na última semana, à qual se chega em estado da maior confusão graças a inépcia de governo de Londres (exemplo: o homem que provavelmente media melhor o que estava em jogo, o embaixador do Reino Unido junto da União à data do referendo, foi expeditamente levado à demissão). O desejo de May de aplacar os Brexiters nunca abrandou: mesmo agora quando um prazo longo de adiamento da data de Brexit faria todo o sentido, limitou-se a pedir 30 de Junho – Brexiters receavam que mais tempo animasse mais compatriotas seus a afinal ficarem na União.

 

A incapacidade política abissal de May não explica tudo. Por um lado, em Ocidente que perdeu o comando do mundo e onde o fosso entre poucos ricos cada vez mais ricos e muitos pobres cada vez mais pobres aumenta dia a dia e com ele o mau viver, os governados estão fartos dos governantes, protofascistas ganham votos e, no Reino Unido, campanha pela saída da União entusiástica e descaradamente aldrabona, levou a melhor de defesa honesta e tíbia do statu quo. (The best lack all conviction while the worst/Are full of passionate intensity).

 

Por outro lado, a percepção do mundo dos ingleses é especial. Não têm Constituição escrita. Lords, o mais célébre terreno de cricket do mundo, conta 5 portas: East Gate, South Gate, North Gate, Grace Gate e Gate Number 6. Universitários desorientam-se para cá da Mancha por ignorarem o comprimento de 1 quilómetro. Antiquário do sul de Inglaterra entrevistado pelo New York Times não sabia há dias que com no deal os móveis que compra em França para vender mais caros em Inglaterra passariam a pagar direitos. Em 1955, quando o mano João andava na Slade School of Fine Arts, pediu num Workers Cafe (os restaurantes mais baratos da altura) bacon and eggs. Resposta: You can have the bacon, you can have the eggs but you can’t have bacon and eggs because it’s Wednesday. Etc.

 

NB Se a leitora achar que o Conselho de Ministros de May é parecido com um Workers Cafe talvez tenha razão. Dez anos depois do fim da guerra, regras de racionamento de comida estavam ainda nas memórias (e algumas em vigor) recorda o meu amigo Fernando. Em país sem Constituição escrita memórias de precedentes fazem lei e às vezes não são bem lembradas.

 

 

 

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Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Hino pauta

 

 

 

José Cutileiro

 

As luzes estão apagar-se na Europa

 

 

Assim disse estadista inglês no começo da Primeira Guerra Mundial. Esse novo caminho para a escuridão está a ser trilhado agora, de maneira convencida não só na Polónia que parece vítima de maldição perene (Un polonais, un charmeur; deux polonais, une bagarre; trois polonais, la question polonaise, escreveu Voltaire que morreu antes da Revolução Francesa) e na Hungria, onde Victor Orban está metodicamente a enfraquecer democracia parlamentar por  governação autoritária e corrupta, com a cumplicidade do Partido Popular Europeu (que não o expulsa nem autoriza a Comissão Europeia a cortar-lhe finanças, continuando a pretender, contra toda a evidência, que o levará a mudar de rumo a bem) mas também em outros países da Europa de Leste onde se prestam agora homenagens a militares pro-nazis dos anos 30 e 40 do século passado - tratados de criminosos de guerra há  50 anos.

 

Na Europa dantes dita Ocidental a preocupação também é grande. Na Alemanha, talvez de todos os países europeus, aquele em que o apego à democracia parlamentar é maior (salvo na antiga Alemanha de Leste, envenenada à nascença pela mentira que a criara) o partido da Alternativa ganha terreno. Na Itália evoca-se abertamente saudade de Mussolini, e a coligação extrema direita/extrema esquerda que desgoverna agora o país entende-se em pouco mais do que no desprezo da democracia parlamentar e do estado de direito. Na Inglaterra, políticos desnorteados ou mal norteados transformam séculos de grande história to a trouble of fools (com vénia minha a Yeats). Em Espanha, pela primeira vez desde 1975, partido franquista ganha deputados em parlamento regional e lugar à mesa das pessoas de bem da política. Em França, há catorze fins de semanas, os gilets jaunes manifestam em ruas, estradas e rotundas, destroem propriedade, insultam o presidente da república e pedem democracia directa em vez de representativa (os lugares em que democracia directa foi tentada acabaram em ditadura mas ou não sabem isso ou é isso que querem). Paisagem retocada por antissemitismo renascente, que nestas coisas configura o tradicional canário da mina.

 

George Orwell escreveu algures que, de vez em quando, as pessoas queriam o mal, se batiam por ele. Madame de Stäel, no Paris revolucionário, sentira hiato entre políticos e povo, entre quem mandava e quem era mandado, como nunca sentira antes. Cesário Verde faz pensar: A dor humana busca amplos horizontes/E tem marés de fel como um sinistro mar. Mas ao lado de reflexões luminosas depressa surgem feitos medonhos, do terror de Robespierre às matanças de Pol Pot - e é para feitos assim que a Europa se está a pôr a jeito.

 

Portugal parece escapar à maré de fel. Em 1942, na inauguração do Estádio Nacional o governo salazarista fez espalhar de avionete milhares de panfletos rezando em grandes letras O QUE NÓS QUEREMOS É FUTEBOL. Se em inauguração próxima o governo democrático fizesse o mesmo o povo também haveria de gostar.

 

 

 

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Quarta-feira, 30 de Janeiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

brexit cartoon

 

José Cutileiro

 

Pouca paciência

 

                                                                                         

A ministra dos negócios estrangeiros sueca disse não desculpar aos ingleses terem-nos metido a todos numa broncalina do camandro – ou numa Bernardette do caboz, poderia preferir dizer pedante de linguajares alfacinhas mas afinal é o mesmo, salvo para tais pedantes. Cada um tem os seus gostos.

 

E a mulher tem carradas de razão. Os ingleses nunca se habituaram a terem deixado de ser os patrões do mundo, embora tal tivesse acontecido há um século com a Paz de Versailles (oportunamente confirmado em 1945, quando os patrões do mundo passaram a ser os Estados Unidos da América, com a Rússia, durante 70 anos, a tentar roubar-lhes o poleiro) e, de maneira característica, meteram-se a partir de então a sentirem-se ofendidos por não o serem. Partilhar poder custa-lhes mais do que a outros – a «indirect rule» colonial era estratagema hábil: os sobas mandavam nos seus e os ingleses mandavam nos sobas, o que lhes garantia o poder, mantendo os outros com algumas plumas – e na União Europeia nunca perceberam bem o essencial: que, com a Alemanha desarmada e depois pouco armada, eles eram os mais fortes, ofenderam-se com ninharias e, por fim, sobretudoToriesmas também muitosLabour, julgaram que « a Europa» era o que os impedia de serem grandes como antes, em vez de perceberem que era, pelo contrário, o que lhes permitia conservarem parte dessa grandeza. Acompanhado tal estado de espírito permanente por erupções patrioteiras muitas vezes ridículas, a incompetência dos políticos fez o resto.

 

Os políticos são como os vinhos: há anos bons e anos maus. Na Europa, a seguir ao colapso da União Soviética, as colheitas não têm sido das melhores, com gente na sua maioria medíocre no que era dantes a Europa Ocidental e gente hábil na conquista do poder mas fiel às tradições fascistoides do lugar no que era dantes a Europa Oriental, tradições vindas dos anos 20 e 30 do século passado, exemplificadas pelo húngaro Orban e o gémeo polaco sobrevivente. Em Inglaterra, passadas  grandeza de Churchill, nervo de Thatcher e a ‘terceira via’ de Blair (arte de cortar pensões a velhinhas, com boa consciência) vieram pequenezes a coincidirem com o grande debate nacional – e da Magna Carta passou-se a desordem inédita. Salvo nos horrores próprios aos nacionalismos, costumavam-se encontrar nos ingleses mais decência e bom senso do que de costume. Foi chão que deu uvas.

 

Há quem julgue que longos períodos de paz impedem a aparição de grandes homens de Estado mas a ciência política (slow journalism, chamava-lhe o meu amigo Herb) não dá para certezas assim e poucas generalizações que não sejam triviais se poderão fazer a partir dela. É o que temos por agora, depois se verá – e, seja como fôr, «dos Lloyd Georges da Babilónia/Não reza a história nada» lembrou o Poeta, pondo pontos nos is.

 

Voltando aos ingleses. Só conheci um português como eles, juiz que vinha às vezes a Estrasburgo: «Não domino idiomas estrangeiros e sinto-me mal fora do território nacional».

 

 

 

 

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Quarta-feira, 2 de Janeiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Manif 1970Manifestação de mulheres em Portugal na década de 1970

 

 

José Cutileiro

 

Europa não. Portugal, nunca!

 

Tal era o grito de guerra, princípio de vida, lema de campanha do malogrado Mário Viegas quando se candidatou à presidência da nossa República. Não me lembro de apelo mais lúcido vindo de nenhum país europeu, substituindo Portugal pelo nome de qualquer dos outros 28 – um dia destes 27, se rasgo de bom senso britânico que parece extinto ou vítima de convulsões suicidárias, não pedir, como pode ainda fazer sem autorização seja de quem for, a anulação do seu fanfarronado anúncio de saída, ficando tudo como dantes. Se tal não acontecer (e se as duas Câmaras de Westminster, a dos Comuns e a dos Lordes, não aceitarem o plano de Theresa May) o dia a dia dos ingleses (e escoceses, galeses, irlandeses do Norte) será muito mais caro, laborioso, incerto e irritante do que é agora, o PIB receberá um rombo de que levará muitos anos a recuperar e – isso são favas contadas - a Irlanda do Norte resvalará outra vez para a guerra civil.

 

Toda esta tragédia - não há outro nome a dar-lhe, a não ser quiçà opera buffa - porque meia-dúzia de tontos nostálgicos de grandezas imperiais mitificadas, de súcia com aprendizes de ditador fartos do rame-rame da paz democrática, mentiram escandalosamente aos súbditos de Sua Magestade Britânica (é assim que se diz; cidadãos é nas repúblicas) sobre as consequências de sair da União (contaram ao povo que ficariam mais ricos quando, se tal chegar a acontecer, ficarão garantidamente mais pobres). O Partido Conservador que se dilacera há mais de 20 anos sobre a questão europeia deu provas de nem perceber o que a saida acarretava nem saber negociá-la. Os Trabalhistas são dirigidos por esquerdista irreformável da velha escola, que agrada à ala mais barulhenta e descerebrada do Partido e torna este alternativa de poder inaceitável para a maioria dos eleitores que, com um Tony Blair ou um Gordon Brown do outro lado da « Casa » já teria mandado os Tories às ortigas.

 

Vou deixar os «bifes» pela mão de um deles - «O patriotismo é o último refúgio do tratante» disse o Dr. Johson que na sua terra é quase tão citado como Shakespeare e do lado cá do Canal da Mancha passa por indústria farmaceutica – e voltar à Pátria. Na primeira Grande Guerra, médico mobilizado, amigo do meu avô, pavoneava-se por Évora já fardado para a Flandres, enquanto em Lisboa movia influências que o deixaram ficar em Portugal. Inglês da Várzea de Colares espantava-se por eu dizer tanto mal de Portugal e ele só dizer bem. Expliquei-lhe que ele gostava do país e eu o amava: caso houvesse uma broncalina do camandro, ele punha-se ao fresco e eu, se preciso fosse, ficava e morria. (Quem ama a Pátria é assim; depois há os que a namoram como Eça achou que Pinheiro Chagas fazia).

 

A maior exigência tem de ser com os nossos. Os Pais jantavam num hotel em Sevilha quando grupo palreiro de portugueses entrou. Sem combinação prévia, passaram a falar francês um com o outro. Nessa altura em Portugal havia nós e eles. Hoje não é tão simples.

 

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Quarta-feira, 3 de Outubro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Taxi-Driver

 "Taxi Driver" de Martin Scorsese, 1976

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

O povo é quem mais ordena?

 

 

 

A hora é dos gladiadores.Dos leigos de todas as fés. Do ditador futuro que dorme em quem eu sou, em quem tu és – escreveu poeta pessimista aí há meio século, época incómoda mas mais previsível que do que a nossa, malgrado (ou devido a) União Soviética florescente e Dr. Salazar ainda a mandar na tropa que o pusera no poder, aquém e alem mar em África. No Verão de 2016, motorista de taxi nova-iorquino anunciou a passageira que ia votar Trump. Ela perguntou-lhe porquê. « Porque ele me diverte!». A passageira, jornalista, contou isto agora, assustada com o facto de que o presente e o futuro próximo não só do seu país mas do mundo inteiro passarem a depender em grande parte de alguém que é uma autoridade em divertir audiências de televisão escandalosa, fazendo rir americanas e americanos e, não sendo autoridade em mais coisa nenhuma, levou apenas dois anos de vida politica para chegar a Presidente dos Estados Unidos. Fica a gente alarmada com a qualidade da concorrência ou a perspicácia dos eleitores ou ambas…

 

E se uma das duas democracias mais gabarolas do mundo – a outra é a britânica, que também foi enrolada, metendo-se a referendo quando ninguém a isso a obrigava e é o pé de cabra preferido de todos os demagogos – enreda o país que dela tanto se orgulha numa teia de aldrabices agressivas porque em política mentir e dizer a verdade passaram agora valer o mesmo para a maioria dos americanos, correndo risco de guerras a curto prazo e de ruína a médio (a dívida externa nunca foi tão grande, detida sobretudo pela China), estamos fritos - para usar expressão predilecta do meu antigo motorista Tomé.

 

O progresso técnico sempre teve costas largas. Em O Crime do padre Amaro, 1875, cónego de Leiria explica que o caminho-de-ferro é invenção do Diabo porque viajantes podem morrer num desastre, longe demais de padre que lhes desse a extrema-unção. Agora a conversa é outra. Facebook e outras redes sociais validaram com crédito que lhes dão, disparates nocivos. (Em Itália, governante populista desautorizou vacinas muito atacadas nessas redes de que dependem a saúde – às vezes a vida – de crianças pequenas). A ciência é o núcleo da resistência contra essa nova maré de obscurantismo – não é por acaso que fake newsnão medram em áreas onde escolhas de vida ou de morte são claramente conhecidas. A cirurgia cerebral, por exemplo, é uma dessas áreas; de maneira diferente, também o é a construção de pontes – e tantas mais. De muitas outras, porém, onde o conhecimento comum – fanfarrão, vago e auto-contraditório – se faz passar por conhecimento filosófico – modesto, preciso e coerente – muitas leitoras e ouvintes têm sido por enquanto levadas em erro.

 

Mas novo conhecimento está a ser construído, novos algoritmos congeminados e em pouco tempo saberemos viver com redes sociais como aprendemos a viver com telégrafo, telefonia, televisões, computadores e, antes disso, com livros de Gutenberg em vez de incunábulos manuscritos.

 

 

 

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Quarta-feira, 8 de Agosto de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Marks-Spencer-Mens-Pure-Cotton-Trunks-3

cuecas de Marks & Spencer

 

 

José Cutileiro

 

 

 

O Macho da espécie

 

 

 

O homem, isto é, o macho da espécie, sejam quais forem a côr da sua pele, o desenho dos seus olhos, a sua estatura grande, meã ou pequena, as suas inclinações metafísicas e religiosas – judias, cristãs, mussulmanas, de outros monoteísmos, dos incontáveis animismos que vigoram até em recantos esquecidos do Planeta, alguns tão pequenos que quando alguém mais morrer acabou uma outra eternidade, de afirmações de ateísmo tenazes mesmo neste tempo em que tantos de nós cling to their guns and to their Gods, na expressão feliz do então presidente Barack Obama (ao falar em privado de brancos pobres americanos mas estava lá microfone que não fôra desligado e a privança acabou-se) -, sejam quais forem também as suas preferências sexuais, o seu feitio bom ou mau, é sempre ser inseguro de si, desconfiado de que outros machos da espécie, piores mas mais astutos do que ele, o queiram fazer passar por parvo ou pior ainda, susceptível como primadona e bruto como arruaceiro de claque clubista, convencido contra abundância de evidência que a ele serve também, como fato feito por medida pelo falecido Mendonça da extinta Piccadilly ou em Saville Row, o nome que Isabel a Católica deu ao nosso Rei D. João Segundo: El Hombre.

 

Mas talvez eu esteja a exagerar. Antes de escrever o parágrafo acima tinha-me lembrado do Marks & Spencer de quando eu chegara a Londres há quase meio século (já Marks fora nobilitado e tomara nos Lords partido pelos trabalhistas), comerciantes sábios que fidelizavam a clientela e na secção de roupas de homem tinham cuecas de três tamanhos. Em ordem decrescente: Large, Medium e Average. Small não havia – e nessa altura não ocorreu a ninguém processar a companhia por descriminação; nem nessa altura nem desde essa altura, com tantas feministas à solta que por aí há. Em 1963, o Império já fora abandonado e muita gente vinda dele e de alhures pegava-se a Londres como moscas a papel para apanhar moscas mas de outras partes do mundo vinha muito menos gente do que agora. Nesse tempo, por exemplo, quase ninguém conseguia saír da U.R.S.S. e dos países do Leste da Europa; por toda a parte, excepto em bizarrias folclóricas tais como o País Basco espanhol e a Irlanda do Norte, a Guerra Fria impedia ou matava no berço zaragatas menores de vizinhos ou fanáticos, evitando assim, inter alia, as múltiplas e desgraçadas migrações a que assistimos agora, algumas das quais transformaram o Mediterrâneo num cemitério marinho, desta vez verdadeiro. Londres tem gente de muitos lugares mas talvez não de todos os conhecidos e, por isso, a minha generalização foi indevida: em vez de ‘sempre’ eu deveria ter dito ‘se for cliente ou potencial cliente das lojas Marks & Spencer de Londres’.

 

De resto, para lá do caso presente, a mania das generalizações ou, como dizia Wittgenstein em inglês, sua língua profissional, ‘the craving for generalizations’, faz muito mal ao hábito de pensar, criando problemas onde não os haveria e erros escusados.

 

 

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Quarta-feira, 30 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

os-batoteiros-caravaggio-1595

 Caravaggio (1595)

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Os cotovelos da Europa

 

 

… eram a Inglaterra e a Itália, decidiu o nosso Fernando Pessoa no começo do seu único livro de versos publicado em vida, « Mensagem », que apresentou a concurso organizado pelo Secretariado de Propaganda Nacional do governo do Dr. Salazar onde lhe deram menção honrosa (o 1° Prémio foi para « Romaria », do padre Vasco - do apelido esqueci-me - de quem toda a gente se esqueceu também). Um dos cotovelos era a Inglaterra, o outro era a Itália. Com tais cotovelos no estado em que estão hoje a Europa arriscar-se-ia a cair de caras o que seria mau para nós porque para o compincha de Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e mais rapaziada (não havia meninas) o rosto da Europa era Portugal.

 

A Inglaterra foi sempre pedra no sapato da Europa e o Brexit, quando veio, não espantou ninguém. Por outro lado, como a prosperidade dos ilhéus depende de relações mutuamente vantajosas com o resto da União, há cada vez mais gente a querer que, por fim, não haja saída ou que haja saída tão parecida com não a ter havido que ninguém dê por isso (que não se sinta diferença no tinir dos dobrões no bolso, diria o meu amigo Henrique). Se Putin continuar, sempre, a meter medo e Trump continuar a meter, às vezes, medo maior ainda, talvez a prudência leve a resultado que nos enriqueça a todos em vez de nos empobrecer.

 

O susto agora não vem desse cotovelo. Vem do outro, do italiano. A Itália, um dos seis países fundadores do que é agora a União Europeia (mas o único cujos chefes não podiam voltar de automóvel para dormirem em casa depois de jantarem todos em Bruxelas, por ser longe de mais), país rico com manhas de país pobre onde a vergonha é opcional, tem a maioria dos eleitores contra a Europa pela primeira vez desde as Comunidades Europeias. A leitora saberá de peripécias recentes: eleições puseram no topo A Liga, partido de direita dura, racista, xenófoba, nostálgica de Mussolini e o 5 Estrelas, partido meio virado para o infinito meio virado para bardamerda, ramalhete de fantasias irresponsáveis italianas que recebeu ainda mais votos do que o outro. Nada os une salvo ódio à Europa, ao euro, às elites políticas tradicionais do país, de Berlusconi a Renzi, e à estrangeirada – pretos e alemães à cabeça. O Presidente da República encarregou de formar governo nulidade aldrabona por eles indicada mas recusou-se a aceitar para ministro das finanças economista que advogara saída do euro. Impasse: a nulidade retirou-se, os dois partidos bateram a porta, o Presidente encarregou tecnocrata (tão amigo da austeridade que lhe chamam O Tesouras) para formar governo de gestão e daqui a poucos meses haverá novas eleições.

 

Bruxelas suspirou de alívio; Macron saudou a coragem do Presidente. Eu tenho dúvidas. No governo, a coligação depressa daria ditos por não ditos, exporia sua incompetência e se desfaria. Assim ganhou capital de queixa populista e será mais difícil de combater no futuro.

 

“Ai esta Europa, esta Europa…” diria a Avó Berta.

 

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Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Cópia de Exílio da Família Real

D. Manuel II a embarcar para o exílio na Ericeira (1910) 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Presidente a vida inteira

 

 

O Presidente Joseph Kabila, filho e herdeiro do presidente Laurent-Désiré Kabila, inimigo figadal de Mobutu e, depois da deposição deste último, mandachuva um ror de anos do Congo – que antes de se chamar Congo outra vez, como no tempo da administração belga, fora o exemplo mais brutal, mais egoísta e mais deletério dos colonialismos europeus em África (exemplo seguido a seguir à independência, mutatis mutandis, que uma colónia é uma colónia, um estado soberano é um estado soberano e agora se chamava Zaire, pelo ex-sargento Mobutu – os belgas não tinham formado um só oficial congolês - tratando os seus tão mal quanto o colonizador), o Presidente Kabila filho, dizia eu, que tendo ascendido ao poder dez dias depois do assassinato do pai, acabou o seu segundo e constitucionalmente último mandato há um ano mas insiste em não se ir embora enquanto o país desliza para mais uma guerra civil, esperando contra a esperança que lhe deem terceiro mandato, deve ter tido estes dias uma alegria inesperada quando lhe chegou notícia, talvez pela televisão, talvez por algum conselheiro solícito, talvez – muito improvavelmente mas nunca se sabe – pelo embaixador chinês em Kinshasa, frisando que o fazia a título pessoal, que as autoridades chinesas resolveram não dar só dois mandatos ao Presidente Xi Jinping como acontecera a todos os seus predecessores desde a morte de Mao, mas deixarem-no ficar no poder até vir a mulher da fava, dito por outras palavras, passar a ser Presidente perpétuo como é o Presidente da Academia Francesa e como era dantes o Papa em Roma.

 

Não há nada de estranho nem pouco habitual no chefe de um povo, de um país, de um Estado, ser perpétuo e hereditário, isto é que tenha herdado o título e o passe por herança a quem de direito (com sorte, filho ou filha; com menos sorte, parente mais distante). Temo todos, habitantes do globo terrestre - a maioria de nós, desde que nascemos -, exemplo vivo no mundo de hoje: a Rainha Elizabeth do Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte (Dona Isabel Segunda, chamar-lhe-íamos nós). Em sociedades da nossa civilização que, num pequeno canto da Eurásia, fizeram transição sábia do feudalismo para a democracia, as monarquias subsistem. “Aquelas criaturinhas pouco ou nada fazem mas têm o condão de manter o povinho unido”, dizia há 50 anos a D. Adelaide, da nossa embaixada em Oslo, Deus lhe tenha a alma em descanso.

 

Fora desse ramalhete feliz e de poucos outros casos, porém, as monarquias deram par o torto e perderam o pé. A decapitação de Luís XVI em 1793 criou moda que ficou. Hoje há sobretudo repúblicas e, com elas, pese aos Orbans, Erdogans e Kabilas deste mundo, há limites aos mandatos de poder. Quando o maior país, a segunda economia e o arauto convencido do seu papel de mentor do futuro, quer voltar a ter chefe perpétuo, prega um grande susto às democracias. E, de Havana a Moscovo, de Ancara a Caracas, de Damasco a Kinshasa, dá alma nova à sacanagem.

 

 

 

publicado por VF às 11:35
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