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Calão
Dizem-me que a gente nova fala com constantes palavrões os quais no meu tempo (e mesmo no tempo do meu filho) seriam impensáveis em tal profusão salvo em pequenas bolsas de proletariado marginal, criminoso e embriagado, ou em meia dúzia de excêntricos e excêntricas bem nascidos para quem a ordinarice no falar era uma maneira de sublinhar superioridade impune. Lembro-me da Madalena Machado Macedo que fazia gala em praguejar como o proverbial carroceiro, no aeroporto de Lisboa de há sessenta anos, a querer entrar para a alfândega, que se via do hall através de grande vidro, para lá esperar o Manuel Eugénio. Guarda-fiscal parou-a dizendo-lhe que era proibido passar. «Porquê ?» «São ordens do Senhor Director.» «Diga ao Senhor Director que eu me chamo Madalena Espírito Santo Mello e passo sempre» respondeu ela e assim o fez. O calão dela, usado sobretudo em conversa com gente da sua roda, era chocante (e divertido) por ser usado por uma mulher, configurando transgressão muito mais severa do que a de um homem. O português, sobretudo o português escrito, língua franca de curas, tabeliões e academias é tão hostil ao calão quanto uma tia solteirona beata. Nesse português, palavrões ou falas sexuais são agressões postas de lado ou mandadas para trás como pedras no arroz ou vinho bouchonné. Talvez de resto se deva a essas restrições a necessidade e o gosto de exagero e espampanância no calão dos jovens. (Definição operacional de jovem: Criatura entre os 12 e os 35 anos, de qualquer dos sexos disponíveis, que se recusa a obedecer ao pai).
E é pena porque há histórias, exemplos dir-se-ia dantes, nessas falas interditas e, se a Vera me deixar, ousarei contar duas aqui, ligadas ao atelier do meu chorado Frederico George. Antes dos computadores, ateliers de arquitecto estavam cheios de desenhadores temperamentais e volúveis, entre artesão e artista).
No dia de 1968 em que Marcelo Caetano falou pela primeira vez como Presidente do Conselho à Assembleia Nacional eu tinha ido trabalhar com o Frederico para o Palácio Fronteira, onde ele vivia com a mulher, mãe do então Marquês. Para verem Marcelo na televisão, juntaram-se-nos a Maria João Mangualde e dois colegas com quem ela estudava medicina. No fim, depois deles saírem, Frederico perguntou-me: «Você já viu isto ?» «Isto o quê, Mestre?» «Você é doutor por Oxford, e estes estudantecos trataram-no por você!» «Nem reparei, Mestre, e não tem importância nenhuma.» «Ah tem, tem» concluiu o Frederico. «Eu, estas coisas tu cá, tu lá, pontapé na cona, não gosto!» Desenhador seu apaixonara-se por puta de um bordel e vivera lá mais de um mês a procurar tirá-la da vida. Sem sucesso - mas aprendendo, entretanto, novas maneiras eloquentes de dizer coisas.
Segundo exemplo. Uma tarde, armara-se no atelier discussão gabarola e animadíssima, sobre comprimentos de pénis. Ao fim de uma hora, Frederico George interveio a arrumar o assunto: «Essas coisas querem-se pequeninas. São para senhoras.»
Outros tempos.
fezada
fe.za.da
nome feminino
(de fé + z + sufixo ada)
Crença, convicção, grande fé. Porém, ao contrário da fé, cuja relação com a razão foi vasta e fundamentadamente explicada por Bento XVI, o «papa mau», ao tempo explicado assim às crianças e ao povo por certos sectores eclesiais, a fezada não carece de um fundamento absolutamente racional. Carece de vontade e de esperança, é certo, e em grandes quantidades; de wishful thinking, que o patriotismo linguístico tem limites, mas não se baseia em argumentos irrefutáveis, antes em sinais de leitura intransmissível. Radica no «palpite», na convicção íntima, inalienável e intimamente construída, na intuição -- mesmo certeza -- inexplicável. Ter fezada porque sim. No fundo, uma aposta contra as leis da probabilidade. Ter uma fezada no Euromilhões em dia de prémios grandes, ter fezada na vitória do Benfica em maré baixa contra um clube dado como inultrapassável. Há quem viva sem fé, não parece plausível que se consiga viver sem fezadas.
bimbo
bim.bo
nome e adjectivo com 2 géneros
(origem incerta; talvez do italiano bimbo, criança)
Esta é uma daquelas palavras de invenção urbana e significado volátil que se usa como categoria de desclassificação. Originalmente «pacóvio», «parolo», «provinciano», «rústico», «ingénuo», por extensão passou a indicar rudeza, falta de maneiras, mau gosto e, de um modo geral, uma inadequação aos valores e representações sociais e estéticos do locutor, que assim se exclui e distancia da categoria apontada e desdenhada. Um marcador social. Por tal razão, bimbo designa com frequência o matarruano, o labroste ou lapuz, o simplório; mais raramente aponta o ignorante, o estupor, o pedante, o pretensioso, o inculto e o idiota encartado nas suas múltiplas e ramalhudas derivações modernas. O tempo fez, porém, estragos neste cenário, e a rudeza, a falta de maneiras e o mau gosto revivem em glória nos ademanes e costumes de urbanos e suburbanos, de diversa extracção e notoriedade, que se arrogam o direito de também se diferenciarem dos «bimbos». Sinal dos tempos. Mas é terreno resvaladiço, quando o significado, com tanta e sucessiva extensão, se desprende ou perde das palavras. E do juízo de quem as usa.
já-agora
já.a.go.ra
advérbio + advérbio
(do latim: jam + hac hora, nesta hora)
Bem sei que o dicionário regista palavras, unidades lexicais, e esta entrada é formada por duas, dois advérbios de tempo de significado similar, usados em conjunto em muitíssimas situações. Como noutros casos, aqui o resultado não é igual à soma das partes, o que torna ainda mais difícil explicar de forma lógica o sentido do seu uso. É uma das expressões do português mais difíceis de traduzir e de explicar, por exemplo a um estrangeiro. A saudade tem fama de não ter equivalentes, mas o «já agora» é um caso bem bicudo. Nem sequer é fácil substituir este par por outra expressão equivalente. A sinonímia que alguns dicionários propõem não é completamente convincente. Talvez a expressão «visto isto» se aproxime, mas é isso mesmo, uma aproximação. Só com uma perífrase se consegue explicitar o sentido oportunístico da expressão: «já que aqui estou», «já que é assim», «já que pergunta», etc. A expressão traduz um sentido de oportunidade em que o locutor procura tirar partido de uma dada situação. Vejamos as diferenças e as semelhanças de uso nos seguintes contextos:
1.
- Quer beber alguma coisa enquanto espera?
- Já agora bebo um café, obrigado.
2.
- Vou levar o carro à revisão e já agora mando arranjar o espelho partido.
3.
- O maioral agarra, viril, a moçoila e com a outra mão desabotoa a berguilha, quando ela escapa com um safanão. Vendo-se de mãos a abanar e de berguilha aberta, o maioral diz para si, «já agora mijo».
eles
e.les
pronome pessoal masc. pl.
(do latim ille)
O contexto de utilização deste pronome que interessa aqui evidenciar é o da referência a uma entidade ao mesmo tempo indefinida e abstracta, embora de natureza colectiva, da qual o locutor se separa e distancia ao referir-se a «eles». Um trabalhador de uma empresa, digamos, por exemplo, caixa do supermercado, referir-se-á ao conjunto de regras que tem de cumprir e à cadeia hierárquica a que tem de obedecer – isto é, referir-se-á à empresa que integra – como «eles». Num outro exemplo, um professor referir-se-á ao Ministério a cujos quadros pertence como «eles». Em ambos os casos, o locutor exclui-se da pertença às entidades que menciona. E neste «eles» há um travo a ressentimento e a hostilidade. É toda uma visão do mundo. «Eles» são o «sistema», a autoridade, a organização. O «eu» não faz parte dessa pandilha, que olha com desconfiança (não raro justificada, diga-se). Nesse caso, constitui um enunciado de desresponsabilização: «eles» é que têm a culpa, «eles» é que disseram para fazer assim. «Eles» são, por exemplo, o hospital ou o centro de saúde, o banco, a escola, as finanças, a administração pública, a meteorologia (eles dizem que vai chover), o corpo director da empresa, a polícia, os transportes, e, mais recentemente, a internet, o Google e similares. E, no repúdio e na indignação, dir-se-á, na versão suave, «quero que eles se lixem!». O que comporta sempre um certo risco, porque «eles» estão em toda a parte e têm ouvidos de tísico. O que vale é que a gente não tem medo deles.
ludíbrio
lu.dí.bri.o
nome masculino
(do latim ludibrium)
Embuste, engano; habilidade ou manha conducentes ao logro. A primitiva acepção de escárnio incorporou-se no significado que vingou na língua actual, envolvendo a menorização ou o desprezo pelo ludibriado, que, não sendo propriamente néscio, faz figura de otário. Engano ou ilusão obtidos com acinte e malícia premeditados. Intrujice. Por extensão, significa também cilada, emboscada. Por analogia com o futebol, diz-se que fulano foi «fintado» com o significado de «enganado com habilidade»; ou «toureado» se a analogia for de natureza tauromáquica. Logro astucioso da percepção elevado, por vezes, à categoria de arte: com minúscula ou mesmo com maiúscula.
locupletar
lo.cu.ple.tar
verbo transitivo e pronominal
(do latim locupletare, «enriquecer»)
O termo latino tende a desaparecer em favor da palavra bárbara («rico» tem etimologia gótica) com que se explica o significado do primeiro. Ainda utilizada no vocabulário jurídico brasileiro, no português europeu parece por vezes ultrapassar o significado de «ficar rico», «encher-se», «abarrotar-se» para significar também «abarbatar» ou «abarbatar-se», o que se abeira já de terrenos escorregadios. E, como é sabido, o locupletamento levanta demasiadas vezes um rol de interrogações sobre a sua origem. Como este dicionário pessoal é também um dicionário de autoridades, quem melhor do que Camilo para nos interpelar sobre temas pungentes em bom português: «No abatimento da minha pobreza estúpida ainda me resta o olho penetrante da consciência para ver e admirar a perspicácia dos homens que se locupletam, e mais ainda dos locupletados que conservam, com aplauso público, o rótulo da sua honestidade. Isto é que é saber, isto é que é a prova do grande alcance do intelecto humano!» (Vinte Horas de Liteira, 1864).
tento
ten.to
nome masculino
(do latim tentus, part. pass. de tenere, ter, segurar)
Cuidado, cautela, precaução, sentido, atenção, mas também, por extensão, tino, juízo, contenção. Palavra que tende a cair em desuso, como outras, cilindrada pelo estreitamento lexical que caracteriza o «português contemporâneo». Subsiste, apesar de tudo, na expressão «ter tento», ter cuidado ou juízo, e em particular na expressão idiomática «ter tento na língua», ter cuidado com o que se diz. Porém, a expressão subsiste largamente pela mesma razão que o «sim» supõe a existência do «não», isto é, o que justifica o uso é a ausência de tento. Por isso se usa sobretudo em contextos de advertência (tem tento na língua, para não dizeres disparates ou tem tento na língua para não falares de mais ou para não seres deselegante) ou de observação a posteriori (aquele não se safou porque não teve tento na língua). O termo subsiste porque o cuidado e o tino vão desaparecendo e o sinal disso é a incontinência verbal, observável desde logo no discurso público (o microfone é uma das formas modernas da tentação; o telemóvel parece que também). O «tento» dos comentadores desportivos, com o significado de «golo», tem um étimo diferente (talentum), embora também nesta área haja pouco tento, na outra acepção.