Quarta-feira, 21 de Agosto de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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José Cutileiro

 

Os nomes das coisas

 

A cozinheira – que veio com a casa onde estamos este Agosto, ganhou na televisão um concurso da sua arte, recusara por razões pessoais meter-se em empreendimentos comercias de grande restauração e trabalha para famílias de Cascais e amigos delas – tinha-nos feito já uma vez farófias (îles flottantes dizem a minha mulher e a minha cunhada, colocando as da cozinheira premiada muito alto na sua experiência francesa de sobremesas) e eu pedira-as outra vez para o jantar de ontem.

 

Vizinha de mesa de quem gosto há quase meio século, tem geralmente conversa hilariante, é bom garfo e óptimo copo (de bons tintos) chamou às farófias nuvens porque assim aprendera em pequena dos manos mais velhos. De resto toda a gente lá em casa, senhores, senhoras, criados e criadas, dizia nuvem e para ela tal era o nome da coisa.

 

Ela é do Norte eu do Sul de Portugal e o doce em questão, à primeira vista da minha ignorância, tanto poderia ter  vindo de serralhos muçulmanos quanto poderia ter saído de conventos do catolicismo de Trento. (Tem em todo o caso característica rara: a grande maioria dos doces de ovos usam gemas, aproveitadas do fabrico de vinhos que precisam das claras. As farófias usam claras em castelo; os bolos mais conhecidos de de Bordéus, terra dos melhores vinhos tintos jamais feitos são os canneletscozinhados com gemas de ovos, cujas claras ajudaram a criar nectares sublimes e a boa Mariana Alcoforado que os franceses conhecem por la religieuse portugaise há de se ter consolado com trouxas de ovos – se realmente existiu que os estudiosos não deixam nada quieto e há quem pretenda que as suas famosas cartas foram escritas por um homem).

 

O resto da mesa falava de coisas diferentes – greve, mundo (Mundo, mundo, vasto mundo/Se eu me chamasse Raimundo/Seria uma rima e não uma solução escreveu Carlos Drummond de Andrade e continuamos a ver hoje diante de nós mais rimas do que soluções) férias em outros lugares, maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices, trocavam-se  os epigramas e os calembourgs  – e eu não quis interromper-lhes o fim do jantar com farófias.

 

Além disso as diferenças entre o Norte e o Sul são fundas e podem levar a proclamações extremas. Amigo tripeiro assistia a jogo de futebol entre Salgueiros e Boavista e o árbitro, que era de Lisboa, tomou decisão desagradável para uma das claques que começou a insultá-lo: «Ah mouro, se num fossemos nós inda andabas de lençol à cabeça!». Amigo alentejano sustentava que Portugal era o Alentejo, porque do Tejo para cima eram beirões e os algarvios beirões faladores. Sobre a rivalidade entre alfacinhas e tripeiros, porquê Mário, porquê Cesariny, por quê, ó meu Deus, de Vasconcelos, escreveu a linha definitiva: «Lisboa, capital do Porto».

 

Não chegaríamos a tanto e, entretanto, como acontece em jantares, a conversa perdeu-se noutras. Foi pena porque fiquei sem saber qual a guloseima a que ela, desde pequena, chamava pegamócolo porque era assim que os manos diziam lá em casa.

 

 

 

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Quarta-feira, 12 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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 © drante/iStock

 

José Cutileiro

 

Calão

 

Dizem-me que a gente nova fala com constantes palavrões os quais no meu tempo (e mesmo no tempo do meu filho) seriam impensáveis em tal profusão salvo em pequenas bolsas de proletariado marginal, criminoso e embriagado, ou em meia dúzia de excêntricos e excêntricas bem nascidos para quem a ordinarice no falar era uma maneira de sublinhar superioridade impune. Lembro-me da Madalena Machado Macedo que fazia gala em praguejar como o proverbial carroceiro, no aeroporto de Lisboa de há sessenta anos, a querer entrar para a alfândega, que se via do hall através de grande vidro, para lá esperar o Manuel Eugénio. Guarda-fiscal parou-a dizendo-lhe que era proibido passar. «Porquê ?» «São ordens do Senhor Director.» «Diga ao Senhor Director que eu me chamo Madalena Espírito Santo Mello e passo sempre» respondeu ela e assim o fez. O calão dela, usado sobretudo em conversa com gente da sua roda, era chocante (e divertido) por ser usado por uma mulher, configurando transgressão muito mais severa do que a de um homem. O português, sobretudo o português escrito, língua franca de curas, tabeliões e academias é tão hostil ao calão quanto uma tia solteirona beata. Nesse português, palavrões ou falas sexuais são agressões postas de lado ou mandadas para trás como pedras no arroz ou vinho bouchonné. Talvez de resto se deva a essas restrições a necessidade e o gosto de exagero e espampanância no calão dos jovens. (Definição operacional de jovem: Criatura entre os 12 e os 35 anos, de qualquer dos sexos disponíveis, que se recusa a obedecer ao pai).

 

E é pena porque há histórias, exemplos dir-se-ia dantes, nessas falas interditas e, se a Vera me deixar, ousarei contar duas aqui, ligadas ao atelier do meu chorado Frederico George. Antes dos computadores, ateliers de arquitecto estavam cheios de desenhadores temperamentais e volúveis, entre artesão e artista).

 

No dia de 1968 em que Marcelo Caetano falou pela primeira vez como Presidente do Conselho à Assembleia Nacional eu tinha ido trabalhar com o Frederico para o Palácio Fronteira, onde ele vivia com a mulher, mãe do então Marquês. Para verem Marcelo na televisão, juntaram-se-nos a Maria João Mangualde e dois colegas com quem ela estudava medicina. No fim, depois deles saírem, Frederico perguntou-me: «Você já viu isto ?» «Isto o quê, Mestre?» «Você é doutor por Oxford, e estes estudantecos trataram-no por você!» «Nem reparei, Mestre, e não tem importância nenhuma.» «Ah tem, tem» concluiu o Frederico. «Eu, estas coisas tu cá, tu lá, pontapé na cona, não gosto!» Desenhador seu apaixonara-se por puta de um bordel e vivera lá mais de um mês a procurar tirá-la da vida. Sem sucesso - mas aprendendo, entretanto, novas maneiras eloquentes de dizer coisas.

 

Segundo exemplo. Uma tarde, armara-se no atelier discussão gabarola e animadíssima, sobre comprimentos de pénis. Ao fim de uma hora, Frederico George interveio a arrumar o assunto: «Essas coisas querem-se pequeninas. São para senhoras.»

 

Outros tempos.

 

 

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Quarta-feira, 27 de Março de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Xultimatum

Outros tempos

José Cutileiro

 

Pérfida Albion

 

Para crítico perspicaz Theresa May e os seus sucessivos negociadores queriam que acordo comercial perfeito com a União Europeia, soberania nacional pura e nenhuma fronteira com a Irlanda fizessem parte do contrato de saída da União a assinar pelo Reino Unido e os 27 estados membros restantes. Quando, a pouco e pouco, foram percebendo que tal vontade não era realizável sem ajustes que ajeitassem as contradições, já May tomara medidas e fizera declarações desastrosas (exemplos: assim que escolhida para chefe do partido promover eleições que perdeu e, com elas, a maioria absoluta; declarar, repetidamente, que no dealera preferível a um bad dealsem ter percebido que esta negociação não era como as outras; marcar linhas vermelhas exactamente onde precisava de espaço para negociar) que a revelaram incompetente e incapaz de resistir aos Brexiters extremos que, desde Thatcher, atormentam quem mande no partido Tory.

 

Um fraco rei faz fraca a forte gente e a podridão da cabeça chegou ao corpo todo. Colaboradores directos foram-se demitindo e contradizendo, até mesmo na última semana, à qual se chega em estado da maior confusão graças a inépcia de governo de Londres (exemplo: o homem que provavelmente media melhor o que estava em jogo, o embaixador do Reino Unido junto da União à data do referendo, foi expeditamente levado à demissão). O desejo de May de aplacar os Brexiters nunca abrandou: mesmo agora quando um prazo longo de adiamento da data de Brexit faria todo o sentido, limitou-se a pedir 30 de Junho – Brexiters receavam que mais tempo animasse mais compatriotas seus a afinal ficarem na União.

 

A incapacidade política abissal de May não explica tudo. Por um lado, em Ocidente que perdeu o comando do mundo e onde o fosso entre poucos ricos cada vez mais ricos e muitos pobres cada vez mais pobres aumenta dia a dia e com ele o mau viver, os governados estão fartos dos governantes, protofascistas ganham votos e, no Reino Unido, campanha pela saída da União entusiástica e descaradamente aldrabona, levou a melhor de defesa honesta e tíbia do statu quo. (The best lack all conviction while the worst/Are full of passionate intensity).

 

Por outro lado, a percepção do mundo dos ingleses é especial. Não têm Constituição escrita. Lords, o mais célébre terreno de cricket do mundo, conta 5 portas: East Gate, South Gate, North Gate, Grace Gate e Gate Number 6. Universitários desorientam-se para cá da Mancha por ignorarem o comprimento de 1 quilómetro. Antiquário do sul de Inglaterra entrevistado pelo New York Times não sabia há dias que com no deal os móveis que compra em França para vender mais caros em Inglaterra passariam a pagar direitos. Em 1955, quando o mano João andava na Slade School of Fine Arts, pediu num Workers Cafe (os restaurantes mais baratos da altura) bacon and eggs. Resposta: You can have the bacon, you can have the eggs but you can’t have bacon and eggs because it’s Wednesday. Etc.

 

NB Se a leitora achar que o Conselho de Ministros de May é parecido com um Workers Cafe talvez tenha razão. Dez anos depois do fim da guerra, regras de racionamento de comida estavam ainda nas memórias (e algumas em vigor) recorda o meu amigo Fernando. Em país sem Constituição escrita memórias de precedentes fazem lei e às vezes não são bem lembradas.

 

 

 

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Quarta-feira, 30 de Janeiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

brexit cartoon

 

José Cutileiro

 

Pouca paciência

 

                                                                                         

A ministra dos negócios estrangeiros sueca disse não desculpar aos ingleses terem-nos metido a todos numa broncalina do camandro – ou numa Bernardette do caboz, poderia preferir dizer pedante de linguajares alfacinhas mas afinal é o mesmo, salvo para tais pedantes. Cada um tem os seus gostos.

 

E a mulher tem carradas de razão. Os ingleses nunca se habituaram a terem deixado de ser os patrões do mundo, embora tal tivesse acontecido há um século com a Paz de Versailles (oportunamente confirmado em 1945, quando os patrões do mundo passaram a ser os Estados Unidos da América, com a Rússia, durante 70 anos, a tentar roubar-lhes o poleiro) e, de maneira característica, meteram-se a partir de então a sentirem-se ofendidos por não o serem. Partilhar poder custa-lhes mais do que a outros – a «indirect rule» colonial era estratagema hábil: os sobas mandavam nos seus e os ingleses mandavam nos sobas, o que lhes garantia o poder, mantendo os outros com algumas plumas – e na União Europeia nunca perceberam bem o essencial: que, com a Alemanha desarmada e depois pouco armada, eles eram os mais fortes, ofenderam-se com ninharias e, por fim, sobretudoToriesmas também muitosLabour, julgaram que « a Europa» era o que os impedia de serem grandes como antes, em vez de perceberem que era, pelo contrário, o que lhes permitia conservarem parte dessa grandeza. Acompanhado tal estado de espírito permanente por erupções patrioteiras muitas vezes ridículas, a incompetência dos políticos fez o resto.

 

Os políticos são como os vinhos: há anos bons e anos maus. Na Europa, a seguir ao colapso da União Soviética, as colheitas não têm sido das melhores, com gente na sua maioria medíocre no que era dantes a Europa Ocidental e gente hábil na conquista do poder mas fiel às tradições fascistoides do lugar no que era dantes a Europa Oriental, tradições vindas dos anos 20 e 30 do século passado, exemplificadas pelo húngaro Orban e o gémeo polaco sobrevivente. Em Inglaterra, passadas  grandeza de Churchill, nervo de Thatcher e a ‘terceira via’ de Blair (arte de cortar pensões a velhinhas, com boa consciência) vieram pequenezes a coincidirem com o grande debate nacional – e da Magna Carta passou-se a desordem inédita. Salvo nos horrores próprios aos nacionalismos, costumavam-se encontrar nos ingleses mais decência e bom senso do que de costume. Foi chão que deu uvas.

 

Há quem julgue que longos períodos de paz impedem a aparição de grandes homens de Estado mas a ciência política (slow journalism, chamava-lhe o meu amigo Herb) não dá para certezas assim e poucas generalizações que não sejam triviais se poderão fazer a partir dela. É o que temos por agora, depois se verá – e, seja como fôr, «dos Lloyd Georges da Babilónia/Não reza a história nada» lembrou o Poeta, pondo pontos nos is.

 

Voltando aos ingleses. Só conheci um português como eles, juiz que vinha às vezes a Estrasburgo: «Não domino idiomas estrangeiros e sinto-me mal fora do território nacional».

 

 

 

 

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Quarta-feira, 9 de Janeiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Caution FS

 

José Cutileiro

 

 

De desejos do bem a práticas do mal

 

 

«All politics is local politics» disse famosamente Tip O’Neill, muitos anos presidente da Camara dos Representantes em Washington, que nunca pôs os pés na Embaixada Britânica porque como todos os O’Neill era descendente de irlandeses e ha ódios de honra que mesmo que não se sintam (deu-se sempre bem com os embaixadores britânicos) se devem simbolicamente significar. Ódios que estão agora a subir de dia para dia em quase toda a parte, numa espécie de moda que de Trump a Bolsonaro, de Erdogan a Putin, de Duterte a Orban, de Le Pen a Salvini, e por aí fora, vão envenenando as relações entre pessoas, tribos, nações e tornando cada vez menos improváveis guerras que os europeus, depois de cinquenta anos no casulo do abrigo atómico fornecido por destruição mútua garantida às mãos de Washington, Moscovo ou ambas durante a paz da Guerra Fria, julgavam tão extintas como a varíola nesta península da Ásia, tão linda que Zeus um dia se transformou em touro para dormir com ela.

 

Não estavam. E, neste ‘cada-um-a-querer-o-seu-e-ou-tudo-ou-nada’, talvez nos devessemos preocupar com nossos filhos e netos. (Embora, a avaliar pelo pouquíssimo que se faz para deixar o Planeta vivável por quem venha a seguir, a ideia de sacrificar prazer de hoje a prazer futuro - sobretudo se esse prazer futuro já não for nosso – não pareça ser regra geral de vida mas mania de muito poucos). Deveríamos, pelo menos, ser capazes de contradizer  as mentiras inventadas  e orquestradas para deitar abaixo decência de viver que, com uma origem distante no lugar do homem no mito cristão, se começou a impôr no Renascimento, a seguir no Iluminismo, ganhou duas Grandes Guerras e, depois do fim da segunda, derrotados nazismo e fascismo, estabeleceu o Plano Marshall e o Pacto do Atlântico e veio a meter o comunismo no caixote do lixo da História.

 

Contra o que Talleyrand julgava, la douceur de vivre é muito maior e chegou a muito mais gente depois da Revolução. Dos seus caboucos fazem parte arranjos constitucionais que enquadram direitos e deveres de quem governe e de quem seja governado. Quando se toca neles – como agora na Polónia e na Hungria – está-se a fazer mal ao Homem, abrindo caixa de Pandora  cheia de víboras. As fake news que nos bombardeiam enfraquecem a defesa da decência, sem a qual a vida seria muito mais dura e brutal mas é difícil acabar com elas. Por exemplo, lembra o historiador-guru israelita Yuval Noah Harari, a Bíblia está cheia delas  e embora sejam raros os que creem ainda que o Mundo começou há 5.760 anos ou que Nossa Senhora concebeu virgem, muitos acreditam em outras inverosimilhanças.

 

Não importa. Metamos entre parêntesis os Deuses de cada um, e ataquemos mentiras sobre o que esteja provado lógica ou empiricamente. Que eu saiba não vingam fake news sobre o teorema de Pitágoras, o princípio de Arquimedes ou as teorias  da relatividade de Einstein - e por aí abaixo. A eito e sem tréguas, senão adeus douceur de vivre.

 

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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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© Tjeerd Royaard

 

 

José Cutileiro

 

 

 

 

Quem são os maus da fita?

 

 

Escrevo para este bloco-notas na terça-feira, como faço quase sempre, a fim de enviar à Vera texto pronto para ela escolher ilustração e pôr no ar o seu blog na quarta. Quando aquelas e aqueles a quem o mando directamente o recebem mais tarde, na quinta, às vezes na sexta, a culpa não é da Vera – é minha e só minha. O que faz de mim o mau desta fita – mas não era de mim que eu queria falar agora.

 

Aprendi da leitura do Expresso Curto de hoje que as acções do clube de futebol italiano Juventus subiram imenso quando Ronaldo fora para lá jogar – e desceram há dias quando se soube de desavença sua em Las Vegas com pequena bem formada (julgo que tivesse sido modelo) aqui há anos. Elle m’a dit d’un ton sévère / Qu’est-ce que tu fais là? / Mais elle m’a laissé faire / Les filles c’est comme ça cantava Georges Brassens, mas as raparigas já não são o que eram e, como tudo na América, a diferença exprime-se em dólares. 325.000 nesse caso - foi o que o número 7 tinha amigavelmente pago para a calar mas isso era antes do #MeToo: agora só a destruição moral dele (ou dela: nestes casos as opiniões dividem-se, com bandos ululantes de um lado e doutro, como o caso recente do juiz do Supremo Brett M. Kavanaugh mostrou) será considerada fim aceitável da polémica. Mas também não é ao Ronaldo - ou à pequena – que eu quero chamar mau da fita.

 

A notícia que me fez ouvir campainhas – para pôr a Leitora na calha – foi que o triunfo republicano no caso Kavanaugh fez subir as bolsas mais ainda do que Trump tem feito só por ser Presidente. Imensa gente bem-pensante na Europa e nos Estados Unidos detesta Trump (em parte por ser bruto e malcriado), na África ao Sul do Saará e na Ásia ele é um branco muito mais parecido com os outros brancos do que com africanos ou asiáticos. Mas do nosso lado do mundo, não. Aí (cá) o que conta é que toda a legislação de Trump contra tentativas de salvar o meio ambiente, contra poder sindical que modere ganância do patronato, contra visão económica que vise a diminuir o fosso entre pouquíssimos muito ricos e muitíssimos muito pobres, indigna toda a gente menos os que seriam seus eleitores, se pudessem votar nele do lado de cá do Atlântico. Quem não se vira contra ele é a gente do dinheiro - fazendo orelhas moucas a palavras sensatas e, para encherem os bolsos, metendo-nos a todos cada vez mais no fundo do buraco. E eu que, quando o namorado da filha do milionário lhe diz “eu não trocava a minha consciência pelo seu dinheiro” e o milionário lhe responde “e você pensa que eu trocava o meu dinheiro pela sua consciência?”, estive sempre até hoje do lado do milionário, dou por mim a achar que o pateta do namorado talvez tenha razão.

 

Se o mundo físico se tornar cada vez mais invivível e o mundo social cada vez mais uma luta de “nós contra eles” ou de “eles contra nós” ou de ambos, alguém terá de voltar a meter a capitalistas desenfreados o medo salutar que a União Soviética lhes metia. São eles os maus da fita.

 

 

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Quarta-feira, 26 de Setembro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Ilustração de Ragni Svensson 

 

José Cutileiro

 

 

Corrupção, família, crimes

 

 

Quando eu vivia na costa oriental dos Estados Unidos, jornais de Nova Iorque deram notícia da condenação a penas de prisão de personagem importante de Wall Street - e do pai dele. O C.E.O. de um hedge fund cometera delito de iniciados, salvando com este pequena fortuna, dentro da grande que já tinha feito. O pai, cirurgião reformado, evitara a ruína, pois havia posto quase toda a sua poupança nas acções que, avisado a tempo pelo filho, oportunamente vendera.

 

Moral da história em Nova Iorque ou em Londres: procuradores diligentes e íntegros tinham devidamente feito punir dois velhacos que se tinham criminosamente servido de informação privilegiada. Moral da história em Braga ou em Évora: banqueiro pusera amor filial acima de obrigações descoroçoadas impostas pelas manigâncias da bolsa e evitara justamente a ruína do velho.

 

Há mais de um século – ou melhor dito, desde que professor alemão chamado Max Weber publicou um livro chamado A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo - que historiadores do dinheiro e das ideias procuram lidar com tais contrastes (incluindo os que acham essa tese um disparate pegado e recordam a fulgurância de banqueiros e homens de negócios do Norte de Itália, católicos apostólicos romanos, desde o fim da Idade Média) e que o público leitor em geral e políticos desonestos em particular – o mais notável dentre estes, na última década, sendo Angela Merkel – às vezes se aprazam em proclamar moral a gente do Norte da Europa e imoral a gente do Sul da Europa; mais ao sul passam a ser morais outra vez, se o comportamento ético da Chanceler alemã servir de padrão (de standard, em português contemporâneo). Com efeito, por um lado, a Senhora tratou a insolvência grega como se pecado de todo um povo se tratasse, exigindo castigo até ao pagamento total da dívida (e fazendo indemnizar bancos alemães, parceiros em negócios falhados, com dinheiro destinado a aliviar os gregos) enquanto, por outro lado, considerou centenas de milhares de candidatos a asilo político africanos e asiáticos vítimas de infortúnio exigindo ajuda incondicional.

 

É claro que coisas assim nunca são simples. Por exemplo, a primeira vez que lidei com corrupção, sem lhe dar nome nem conhecer o conceito (e como ‘corruptor’, não como ‘corrompido’) tinha 8 anos. Por razões longas de enumerar fiz a quarta classe de casa do avô em Évora enquanto os pais ficaram em Lisboa. Da Rua da Mouraria, onde vivíamos, à escolinha da D. Maria Prego na Travessa da Capelinha era preciso atravessar a cidade; o avô contratou criado antigo (o Velho Madeira) para me acompanhar. A vergonha que tive perante outros meninos e meninas foi tal que, logo no segundo dia, propus pagar da minha semanada ao Velho Madeira para ele me deixar a meio caminho, na Praça do Geraldo. Ele aceitou logo e assim fizemos, à ida e à vinda, durante todo o ano lectivo.

 

Corrupção ou não? Conheci protestantes entendidos na matéria; nunca me lembrei de lhes perguntar.

 

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Quarta-feira, 25 de Julho de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Ouroboros @ wikipedia

 

 

José Cutileiro

 

 

Versões do Mito do Eterno Retorno

 

 

 

Federico Garcia Lorca achava que no Verão o calor em Granada era tão grande que era impossível fazer fosse o que fosse. E exemplificava: no Verão, em Granada, dois e dois nunca chegam a ser quatro. Quedan siempre y solamente dos y dos.

 

O poeta de ‘Romancero Gitano’ e dramaturgo de ‘La Casa de Bernarda Alba’, mesmo que, um serão no começo da guerra civil em Espanha (1936-1939), não tivesse sido levado à força por voluntários franquistas de casa de amigos em Granada com quem insistira em ir passar uns dias em vez de aceitar convite da actriz Margarita Xirgu e ir com ela para Buenos Aires, e morto a tiro e enterrado sem cerimónia em vala comum andaluza, certamente por ser esquerdista e homossexual, não teria quase de certeza chegado aos nossos dias porque, até hoje, nunca homem, mulher ou transgender chegou a fazer 120 anos. Senão teria visto os costumes mudarem no seu país ao ponto das pessoas se poderem casar umas com as outras, independentemente do sexo que tenham, e tal ser considerado progresso por muitos. 

 

Mas, se deitasse até aos 140 (agora estarei a futurar demais) seria capaz de assistir a retrocesso nos costumes e nas leis e encontrar a populaça nativa contente com tais recuos. E, apesar disso, olhando desta ponta da Europa e comparando-a com o resto do mundo, sentir-se-ia perigosamente só na sua vida, na sua liberdade, e na sua busca da felicidade, como náufrago em jangada no mar alto.

 

A história é um vaivém ou pelo menos assim parece agora, por um lado porque a grande aventura imaginada com princípio, meio e fim a caminho do Paraíso na Terra que tomou conta de metade do mundo durante bem mais de meio século e oferecia Criação e Juízo Final sem Deus a cortar as voltas, era afinal uma aldrabice enfeitada com crimes. E que, por outro lado as mudanças são agora cada vez mais rápidas do que costumavam ser. Até à revolução industrial, criar uma criança era ajudar a fazer com que ela se parecesse com o pai em crescida, se fosse menino ou com a mãe, se fosse  menina. Em Portugal, onde o que o pouco que houve de revolução industrial chegou mais tarde do que a outros países e onde o grosso da grei continuou graniticamente analfabeta quando tal já não acontecia em quase toda a Europa ocidental, o bonheur de vivre de que falava Talleyrand durou quase até ao tempo da minha escola primária.

 

Onde isso já vai tudo – tão longe que pode dar a volta. O que se fazia em várias gerações não leva hoje metade da vida de um homem a fazer. Lorca teria visto o progresso tornar os seus sonhos reais – mas se continuasse a sobreviver arriscar-se-ia a que nova realidade se instalasse e os tornasse irreais outra vez. Trump, Duterte, Erdogan, Orban, Bolsonaro - uma espécie de Trump tropical - outros ainda e candidatos a sê-lo. Para não falar do Império do Meio que, ao contrário do que a gente julgava desde Den Xiao Ping, acha que os nossos valores não são universais e acabou de instaurar a sua Monarquia Absoluta.

 

 

 

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Sexta-feira, 20 de Julho de 2018

Evora-Africa

Até 25 de Agosto de 2018 em Évora

O programa completo pode ser consultado em http://evorafrica.pt/

 

 Chéri Samba

Chéri Samba

© http://www.magnin-a.com

 

A exposição de arte contemporânea "African Passions", no Palácio Cadaval, com curadoria de André Magnin e Philippe Boutté - a primeira que realiza em Portugal - inclui obras de artistas plásticos e fotógrafos do Congo, Costa do Marfim, Moçambique, Mali, Senegal, Benim, África do Sul e Madagáscar.

 

O festival "Evora Africa", que se prolonga até 25 de Agosto, apresenta um diversificado programa de exposições, concertos, performances, conferências e DJ'S e reúne trinta artistas plásticos contemporâneos, músicos e performers africanos. 

 

 

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Omar Victor Diop, Série Diáspora

© http://www.magnin-a.com

 

Para além do Palácio Cadaval, o Templo Romano, o Cromeleque dos Almendres e a Biblioteca Pública de Évora serão palco de espetáculos da Orquestra Ballaké Sissoko, Costa Neto, Irmãos Makossa, Rita Só, Johnny Cooltrane, Mbye Ebrime, DJ Rycardo, Companhia Xindiro e os jovens dançarinos, Celeste Mariposa, Bambaram, Bassekou Kouyate, Selma Uamusse, Bubacar Djabaté, Áfrika Aki, The Zaouli de Manfla, Miroca Paris, DJ Ibaaku, Sara Tavares, Congo Stars de Vibration, Dj Lucky, Lady G Brown.

 

 

Malick Sidibé | Courtesy Galerie MAGNIN-A, Paris

 Malick Sidibé, Nuit de Noël (Happy Club), 1963

© http://www.magnin-a.com

 

 

 

Centro de Arte Quetzal, Vidigueira

 

No contexto do festival, o Centro de Arte Quetzal apresenta uma selecção de trabalhos dos artistas sul-africanos Marlene Dumas, Moshekwa Langa e William Kentridge, incluindo a série de curtas-metragens de animação (Dez desenhos para projecção 1989-2011), e um mural tipográfico da artista egípcia e libanesa Bahia Shebab, com o título Mil Vezes Não.

 

W Kentrridge

William Kentridge Levitation 1996

 

 

 

Marlene Dumas

Marlene Dumas Cain+Abel (Twins) 1989

 

 

 

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Quarta-feira, 23 de Maio de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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Oscar Wilde por Max Beerbohm

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

Novos e velhos

 

 

Janus Onyszkiewicz, dissidente polaco virado ministro da defesa no intervalo feliz  entre o fim do comunismo e o regime beato e bruto que está a agarrar a Polónia e a tentar tornar a fazer dela uma penitenciária, disse-me que, nisto de novos e velhos, decidira há muito que todos os que tivessem a sua idade ou menos eram novos e todos os que tivessem mais idade do que ele eram velhos. (Velhos ou velhas; novos ou novas. Para não tornar este escrito uma sucessão de solavancos, tal fica subentendido para todo o texto – salvo evidentemente quando não faça sentido nenhum). À volta da meia-idade que ele tinha na altura esta partilha ajuda a genica de um homem. Uns anos mais tarde, se a cabeça continuar viva, faz dele um velho espirituoso. Mais uns anos ainda e é disparate a evitar por quem não goste que o julguem senil. (Seja como for, há casos impossíveis. Oscar Wilde dizia de Max Beerbohm, escritor e desenhador seu contemporâneo em Oxford, tinham os dois vinte anos, que os Deuses  haviam contemplado Max com ‘o dom da velhice perpétua’, ‘the gift of perpetual old age).

 

Conheci senhor português de mais de 70 anos que chorou de emoção perante tanto progresso científico e técnico quando o sputnik de Yuri Gagarin deu lá em cima um par de voltas à terra e toda a gente cá em baixo soube disso in real time. E um bom meio milénio antes, o navegador Juan Ponce de Leon que, no dia de S. João, morreu à vista de terra a que nenhum europeu chegara antes e que hoje chamamos Florida, entrou na história pelas palavras que então pronunciou: « Gracias te seam mi San Juan bendito, que he mirado algo nuevo ! »

 

Se deste lado da curva de Gauss saltitam velhos vivos da costa, do outro lado dela jazem a espreguiçar-se novos com alma de velho – que podem revelar-se de maneira divertida. Há anos sem fim, estava eu a jantar num restaurante de caça em Hampstead com a minha mulher e casal amigo, todos nós ainda novos (todos portugueses), e falou-se do Brasil, talvez por eu ter estado dias antes em festa londrina de brasileiros e portugueses da qual guardara - e guardo ainda – duas sentenças lapidares. Primeira: uma brasileira disse-me “Vocês si detestam!” (‘Vocês’ eram os portugueses; não só os que estavam ali, todos, em geral). Segunda: tendo eu dito de alguém “É o último dos imbecis”, brasileiro ao meu lado sugeriu “Não diga último; diga penúltimo. Deixe sempre lugar para um cara.” Rimo-nos todos à mesa quando contei dessa festa, o meu amigo sentiu pulsão interior e exclamou: “Gostava de ir ao Brasil!”. Depois parou, calou-se um instante, reflectiu e acrescentou “Não. O que eu gostava era de já ter ido e de ter gostado.”

 

Achei a formulação excelente, contei-a a várias pessoas e agora, meio século depois, de repente, ocorre-me que é sinal de velhice,  confortada por vida bem vivida, mas velhice. Emoção simétrica à de Fernando Pessoa quando se lembra de momento bom da infância e acrescenta: “Era eu feliz então? Não sei. Fui-o outrora agora.”

 

 

 

 

publicado por VF às 09:00
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