Quarta-feira, 26 de Junho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

míssil hipersónico USAmíssil hipersónico norte-americano

 

José Cutileiro

Guerras

 

Leio no jornal que americanos, russos e chineses trabalham em mísseis hipersónicos capazes de viajar a mais de 15 vezes a velocidade do som, de atingir num quarto de hora alvos russos ou chineses se forem americanos (ou americanos se forem russos ou chineses), levando cargas explosivas e podendo perfurar as paredes mais resistentes de abrigos atómicos subterrâneos ou as couraças de porta-aviões americanos. Leio também que, ao contrário do que acontecera a partir de certa altura durante a guerra fria, não há conversas entre os protagonistas para criar regras de protecção mútua que ajudassem a lidar com acidentes ou mal-entendidos. Nesse como em qualquer género de  armamento, os americanos de Trump não estão interessados em nada que cheire a prevenção e os outros tampouco insistem.

 

«Messieurs les anglais tirez les premiers» disse o tenente Conde de Auteroche na manhã de 11 de Maio de 1745, durante a guerra da sucessão da Áustria quando franceses e ingleses, com aliados vários, (ao todo 47.000 homens de um lado e 51.000 do outro) apoiavam pretendentes diferentes, assim dando começo à batalha de Fontenoy, no que eram então os Países Baixos austríacos e é hoje a Valónia, na Bélgica.  Nessa altura e até à Revolução Francesa (e, a seguir, à explosão dos nacionalismos) as guerras eram o grande desporto da fidalguia. Auteroche convidou os ingleses a atirarem primeiro como quem, num jogo de ténis entre amadores, convide a bolar primeiro quem o defronte do outro lado da rede. Escrevendo poucas décadas depois, o Príncipe de Ligne diz que o seu maior desgosto fora a morte do filho, decapitado por tiro de canhão do exército revolucionário francês. Conta da relação estreitada por terem combatido juntos, de como chegara a pensar que seria bom serem feridos ao mesmo tempo. Já no começo do fim desse mundo, Napoleão Bonaparte lembrou que a coragem (física) é a única virtude que não se pode imitar. As ruas das cidades europeias estão cheias de nomes de batalhas ganhas - e de quem as ganhou – para não as deixar sair da memória colectiva.

 

A guerra é tão antiga quanto a humanidade (recente, e não sei se duradoura, é a paz); houve, na Europa e alhures, além da fidalga e da nuclear, outras maneiras de a fazer, e haverá mais no futuro sob formas que talvez nem imaginemos. Vivemos, seja como for, em tempo muito especial: toda a gente fala da brecha aberta entre as elites e o resto. Salvo em páginas de Madame de Staël que deu por divórcio assim em Paris, no começo da Revolução Francesa, não há memória de coisa parecida na história que conhecemos. Talvez a razão seja a mesma: explosões gigantescas de liberdade, a exigirem outros costumes. (Em 1917 na Rússia não chegou a haver liberdade: Os lagartos mudam de pele/Para salvar o coração./Nós mudamos de coração/Para salvar a pele escreveu poeta local coevo, prontamente executado).

 

Dito isto: 1 Não há nada mais parecido com a França de Versailles do que a França do Eliseu. 2 E os mísseis hipersónicos?

 

 

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Quarta-feira, 12 de Dezembro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

marc blochMarc Bloch

1886-1944

 

 

José Cutileiro

 

De uma esperança a outra

 

Lembro-me do Pai voltar de Madrid em 1939, logo a seguir ao fim da Guerra de Espanha, com fotografias de casas em ruínas. O país estava de rastos: durante muitos anos o contrabando passou a fazer-se de cá para lá, com nós a aldrabá-los a eles. No Passapoga da noite madrilena, uma mulher valia menos que no 3º andar do100 da rua do Mundo, em Lisboa. O escudo valia o dobro da peseta.

 

Portugal estava dividido: em casa do Nuno Bragança celebraram a última Cruzada; na minha sofreu-se porque a democracia tinha sido derrotada. Mau sinal para a segunda Grande Guerra? Não tanto: confiança inabalável na vitória das democracias foi premiada em 1945. Poucos dias depois de Salazar ter posto a nossa bandeira a meia-haste nos edifícios públicos e ter mandado pêsames ao governo alemão pela morte de Hitler, a seguir à rendição incondicional da Alemanha, houve grande manifestação em Lisboa, atrás da bandeira inglesa, da bandeira americana e, entre as duas, de mastro sem bandeira hasteada. (A seguir à invasão da URSS por Hitler, os comunistas tinham defendido a causa aliada). O Estado Novo aguentou ainda 29 anos mas a oposição era mais forte do que equívoco em que assentava. Este parecia ter ficado resolvido em 1975, quando Mário Soares e o MFA puseram partidos contra as Comunidades Europeias e a OTAN fora do alcance do arco governativo.

 

Voltando à esperança. 1974 e 1991 foram anos bons, sobretudo para aqueles que tinham entendido que comunismo, marxismo-leninismo, trotskismo facção Lambert, todas as variedades conhecidas dessa visão, estavam fundamentalmente erradas e não era por aí que o gato iria às filhoses. Mas, entretanto, tudo se complicou outra vez. Progresso técnico a ritmo inédito e vontade de enriquecer de intensidade rara desde Nova Iorque a Shangai, passando por todo o resto do mundo, juntaram-se os dois à esquina. Até agora não se lhes consegue deitar a mão e a maldade de cada humano, com um computador à frente, pinta a manta como quer – não só nos Estados Unidos onde o espalhar de mentiras foi glorificado por Presidente que usou e encorajou o método para chegar ao poleiro mas também na França de hoje onde a extrema-direita de Marine Le Pen e Steve Bannon , desonesta até à medula, quer que o povo veja no acordo sobre o clima de Marraquexe uma conspiração contra os estados-nação europeus e os seus valores. A 10 de Dezembro de 1948, a Declaração Universal dos direitos humanos nasceu em Paris. Desde então, melhorámos. Em 1948, a África do Sul não a assinou porque os pretos valiam menos do que os brancos; os países árabes porque as mulheres valiam menos do que os homens; a União Soviética (e satélites) porque os povos valiam menos do que partidos e governos.

 

Até a maldade humana ser desunhada outra vez vai passar tempo: talvez venha a ser precisa guerra grande e à antiga. Em 1944 Marc Bloch, que os alemães iam fuzilar, escreveu: “Nous sommes les vaincus provisoires d’un injuste destin”. É a nossa esperança.

 

 

 

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Quarta-feira, 20 de Junho de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

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Zona de treino militar em Grafenwoehr, Alemanha. 

Christof Stache/AFP via Getty Images 

 

 

José Cutileiro

 

 

A ver se o homem entende

 

 

 

Pedro Pires de Miranda, o ministro dos negócios estrangeiros português mais inteligente com quem trabalhei (ou, pelo menos, aquele com quem aprendi mais - um dia, era eu director político do MNE, informei-o: ‘Senhor Ministro, eu com três pessoas não consigo tratar disso’; ‘Já experimentou com duas?’ veio a resposta), percebeu o que escapara aos outros e a ele dava gosto: ‘A política externa é óptima. Só se têm inimigos!’

 

Não só os portugueses são afectados por essa cegueira idílica. Os europeus – primeiro 6; depois 9; depois 10; depois 12; depois 15; depois 24 (aí o caldo começou a entornar-se); hoje 28 e amanhã 27 – estiveram esquecidos disso desde a invenção das Comunidades Europeias até à eleição de Donald Trump e mesmo, depois desse feito americano (Hillary Clinton ganhou por três milhões o voto popular) julgaram que o exercício do poder iria tornar o homem muito parecido com os seus predecessores. Grande e breve engano - mais duro ainda, a seguir a 8 anos de Barack Obama, o menino querido da maioria dos eleitores europeus dessa época.

 

Donald Trump é deliberadamente ordinário e malcriado; é um mentiroso sistemático e o que se sabe de muitos dos seus sentimentos, gostos e vontades deveria exclui-lo do convívio de gente decente, tê-lo impedido de ser escolhido para inquilino da Casa Branca. Dito isto, é o Presidente dos Estados Unidos da América e tem razões de queixa legítimas dos europeus no que diz respeito a despesas de defesa. Terá outras ainda no comércio internacional, mas a sua maneira de tentar corrigir desequilíbrios contra si com a imposição de tarifas irá desencadear guerras comerciais e ajudar a destruir a ordem internacional baseada em regras aceites por todos em que o mundo vive pacificamente há mais de meio século e de que o principal beneficiário são os Estados Unidos.

 

Na defesa é diferente. O Tratado do Atlântico Norte de 1949 – que levou a organização a que chamamos OTAN ou, à inglesa, NATO – de que Portugal foi membro fundador mesmo sem ser uma democracia tinha em vista defenderem-nos do perigo soviético. O arsenal nuclear americano (existem também o britânico e o francês mas, como Mitterrand disse uma vez a propósito do segundo: ‘Soyons sérieux, messieurs…’) e as forças convencionais americanas eram de longe as maiores da Aliança mas, se houvesse invasão soviética, esta seria dos países europeus. Depois da Guerra Fria, sem risco dessa invasão, a NATO continua essencial para nossa defesa mas acordou-se em partilhar o fardo de outra maneira. Cada Aliado gastaria pelo menos 2% do seu PIB em defesa. Apesar de décadas  de insistência de Washington, só o Reino Unido o faz.

 

Assim, quando Trump tweeta que a Alemanha deixou entrar tantos emigrantes que o crime aumentou (o que é mentira) a Alemanha deveria chamar o embaixador em Washington para consultas. Mas deveria também ser capaz de informar o embaixador americano em Berlim de que a despesa alemã de defesa subira acima de 2% do PIB.  

 

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Quarta-feira, 28 de Março de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

pain_au_chocolat

pain au chocolat

 

José Cutileiro

 

 

Nova Iorque dos Pobres e Espírito de Contradição

 

 

 I

Há muitos anos chamei a Bruxelas a Nova Iorque dos pobres e dá sempre gosto ao inventor verificar que a coisa inventada existe. (Tem riscos, como tudo quanto seja levado ao excesso; Camões lembrou-o cruelmente: Torna-se o amador na coisa amada/Por virtude de muito imaginar).

 

Hoje, em minúscula clínica dessas que há agora onde a gente se sente muito melhor do que num hospital, de tal maneira que os anestesistas para nos porem a dormir precisam só da quarta parte do líquido que nos injectam nos ditos hospitais, fizeram-me pequena intervenção. O cirurgião era grego, a anestesista polaca, a enfermeira uruguaia, eu português (a minha mulher, cujo telefone lhes dei, é francesa). Belga, só talvez a recepcionista que, nos cinco minutos que passei na sala espera, desembaraçava-se em francês e no holandês que se fala aqui – 60% no país,12% em Bruxelas. Na meia hora de chá preto e pain au chocolat que passei entre acordar e ir-me embora, a conversa terá sido mais variada e divertida do que teria sido na Mãe Pátria sobre mexeriquices de colegas, amigos, parentes e os altos e baixos do Desporto Rei. À uruguaia lembrei embaixador reformado inglês encontrado em Londres na casa de amigos ingleses, há mais de meio século, que em Montevideo fora raptado pelos «Tupamaros», terroristas urbanos, todos de boas famílias e educadíssimos que o trataram sempres bem e foi libertado incólume, aprendendo, todavia uma lição: nunca acreditar em quem prometa paraíso futuro onde só se possa chegar através de inferno intermédio (foi a enfermeira que me lembrou o nome dos guerrilheiros). A anestesista, que tem vergonha do actual governo polaco, fez-me pensar em Geremek, o grande medievalista e ministro dos negócios estrangeiros polaco da Solidarnosc, a contar-me, em Varsóvia, cena entre Walesa e Ieltsin,os dois bêbados, com o russo a garantir ao polaco que deixava a Polónia juntar-se à OTAN enquanto os seus colaboradores lhe repetiam que não podia ser, e o electricista de Gdansk perguntava, do outro lado: «Quem é que manda na Rússia ? És tu ou são eles ?». E ao cirurgião, que trouxera ele mesmo o pain au chocolat e me explicara não haver razões para preocupação, disse que ele conseguira criar, no coração de Bruxelas, uma espécie de Atenas sem corrupção. (Grego nosso conhecido impressionara-nos há dias com a aventura de conseguir internar e tratar bem a sua velha e lúcida mãe num hospital privado de Antenas: só mediante gorjetas e subornos tais que me indignaram, e eu sou d’Évora, não de Oslo nem de Helsinquia. No Peloponeso, assim se vive e se acha natural viver. Viva a Nova Iorque dos pobres!

 

II

John Bolton, como Conselheiro Nacional de Segurança de Trump, poderá ser benéfico. Um defeito de Trump é o espírito de contradição e desconfia tanto dos conselheiros que talvez agora, para mostrar que não depende de Bolton, passe a usar de bom senso. (Estariam ambos melhor em Rilhafolhes mas não se pode ter tudo…)

 

 

 

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Quarta-feira, 31 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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 Nuer

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Variações sobre o Bey de Tunis

 

 

 

30 de Janeiro

 

É terça-feira, já passou o meio do dia e estou a escrever em Notes taken at “Oitavos”, trazido do hotel para o avião que me leva de volta à chuva e ao escuro de Bruxelas, depois de três dias de sol e de luz no Guincho, após ter feito esta manhã keynote speech no Instituto de Defesa Nacional, abrindo colóquio sobre as relações transatlânticas de segurança, que continuava depois da minha saída, com Ricardo Alexandre a moderar painel dedicado às relações políticas entre europeus e norte americanos. Saí antes do fim, com bastante pena minha porque a conversa entre Carlos Gaspar, Vasco Rato e um rapaz americano da Brookings Institution era interessante e a regência (como de um maestro) de Ricardo dava gosto: estimulava os oradores a levarem água aos seus moinhos, o que eles faziam com eloquência, mas de maneira que tudo passasse sempre por fim pelo moinho do moderador. Trabalho de artista, sempre bom de ver. Peter Carrington, quando era Secretário-Geral da OTAN (vulgo NATO), fazia-o de tal maneira bem que um dia eu disse ao António Vaz Pereira, nosso embaixador lá, que, em vez de receber ordenado, deveria ser ele a pagar pelo privilégio de assistir a tais espectáculos. Pese a Carrington (e a Ricardo) porém, o mais extraordinário desempenho a que tive a sorte de assistir foi de Giulio Andreotti quando era ministro dos negócios estrangeiros de Itália numa reunião do Conselho da Europa em Estrasburgo, falando em italiano e chegando por isso a quase todos nós à roda da mesa através de intérpretes (no meu caso, para inglês; eu fora lá com Eduardo Azevedo Soares, que era secretário de estado). Andreotti era de serenidade equânime; nunca levantava a voz; fazia com os dedos pequenos gestos de chefe de orquestra e despachou agenda longa em tempo curto, a contento de todos. Quando ao fim da tarde deixamos Estrasburgo o pequeno avião dele estava parado perto do nosso. Italianos da diáspora pertencentes a sua clientela política tinham vindo saudá-lo e vi um deles cair sobre um joelho no tarmac e beijar-lhe a mão.

 

Devo mandar o texto do Bloco-Notas à Vera até ao fim do dia de terça-feira para ela ter tempo de encontrar ilustração que nos agrade aos dois e pôr tudo no ar (no éter? Na web?) quarta-feira. Até hoje nunca falhei mas tenho sempre medo. Telefonei ontem, segunda–feira, à Vera para lhe dizer que desta vez só podia garantir o texto no computador dela quarta-feira à hora de almoço. Ela tem sempre imensa paciência: riu-se e disse que não tinha importância.

 

31 de Janeiro

 

Já é quase hora de almoço em Lisboa, o texto ainda não está pronto e o céu aqui em vez de ser azul como no Guincho é em fifty shades of grey. Os Nuer do Sudão do Sul que vivem da pastorícia têm 50 palavras para dizer boi, conforme as características do bicho. Porque é que os belgas não fazem o mesmo com cinzento? De maneira a percebermos logo se vai chover muito, pouco ou nada? Ou se vai nevar? Ou daqui a quantos meses fará sol?

 

 

 

 

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Quarta-feira, 22 de Novembro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

tambor barcelos

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Já mesmo na mó de baixo? Ou só a querer chegar lá?

 

 

 

“Isto está preto. E não chove.” Assim amiga muito querida se associou à minha indignação pela incúria com que Presidente, governo, parlamento, jornais, televisões, telefonias, Facebook & quejandos, parecem nem dar pelo estado das nossas defesa e segurança. Incúria antiga, que seria injusto atribuir à “geringonça” ou até, indo mais atrás, à Democracia que vigora desde 1976, ou ao Estado Novo chegado em 1926 ou à Primeira República instalada em1910. Ou sequer à Monarquia Liberal.

 

Algures na história da Europa, entre um Pacheco fortíssimo e os temidos Almeidas por quem sempre o Tejo chora, Albuquerque terríbil, Castro forte e outros em quem poder não teve a morte, e a fuga de D. João VI e da corte para o Brasil, deixando os marechais do corso a tomar conta da gente e a roubar-nos património, aquela mayonnaise firme de vontade, de coragem e de lucidez que nos fizera passar ainda além da Taprobana, talhou dentro das nossa almas e nunca mais fomos os mesmos. Tal mayonnaise talhada - caruncho, osteoporose, reumatismo - foi-nos esfarelando por dentro. A pouco e pouco, fomos perdendo o hábito de ganhar e fomos ganhando o hábito de perder. Em tudo, de todas as maneiras, de forma explícita ou implícita, de entrada talvez com algum incómodo, depois quase já sem nos apoquentarmos com isso e, por fim, como se tal pertencesse à ordem natural e inquestionável das coisas.

 

Quando eu era pequeno ouvia-se cantiga muito espalhada que não sei quando, nem onde, nem por quem fora composta, presumo que já no século XX mas talvez antes e talvez também, na direcção oposta, tendo deitado até ao tempo da leitora que porventura se lembrará dela. Começava assim:

 

Lá em cima está o tiro-liro-liro,                                                                                              

Cá em baixo está o tiro-liro-ló.

 

Anos a fio, de vez em quando a ouvi, de vez em quando a cantarolei, sem nada achar de esquisito. Até que um dia me ocorreu, de repente, como uma revelação, que não poderia ter sido cantada por um inglês ou por um chinês, ou por alguém que, viesse donde viesse, tivesse gosto e orgulho em ser de lá. Quem quer que fosse senhor do seu nariz, que fosse de um só parecer, um só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer, cantaria outra cantiga que pareceria quase igual à primeira mas seria, na realidade, o oposto dela:

 

Cá em cima está o tiro-liro-liro,                                                                                              

Lá em baixo está o tiro-liro-ló.

 

Porque não lhe passaria pela cabeça dizer o contrário. Porque não traria consigo a visão do saguão e o instinto da porta de serviço que parecem terem passado a ser apanágio de nós todos.

 

Assim vamos vivendo do lado de cá do Atlântico, longe da inteligência artificial dos engenhocas de Silicone Valley, onde robots vão mandar na gente, e da estupidez natural da cintura bíblica do Alabama, onde o Mundo começa circa 5.500 a.C.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 15 de Novembro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

soldado-na-bandeira-da-união-europeia

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Incompetência a mais

 

 

 

23 dos 27 países que constituirão a União Europeia depois da saída do Reino Unido lançaram no dia 13 uma Cooperação Estruturada Permanente em Defesa. Esta iniciativa crucial, em estudo há vários meses, abre novas formas de os europeus reforçarem a sua segurança. Todas as capitais europeias sabem que num mundo muito perigoso, com inimigos a Leste (a Rússia de Putin) e a Sul (o terrorismo islâmico) e com aliado a Oeste que parece ter deixado de ser incondicional (os Estados Unidos de Trump), a nossa segurança poderá não ser garantida apenas pelos meios de que dispomos hoje, nomeadamente as forças de cada um e as capacidades da OTAN a que 22 de nós pertencemos. A Irlanda, no mesmo dia, anunciou ir em breve juntar-se aos outros.

 

Ficaram de fora, como já se esperava, a Dinamarca que, quando aderira às Comunidades Europeias em 1973 declarara que nunca participaria em iniciativas militares no quadro desta (a ideia, nessa altura, era não se associar a qualquer eventual enfraquecimento da OTAN, risco que já há anos deixou de existir) e Malta que não é membro da OTAN e é signatária de documentos do seu tempo de país “não-alinhado”. Surpreendentemente, por decisão nossa, ficou também de fora Portugal, signatário em 1949 do Tratado do Atlântico Norte de Washington e, por isso, membro fundador da Organização deste, vulgo NATO.

 

Quando na segunda-feira a notícia me chegou pelo écran do meu computador, dei – literalmente – um salto na cadeira. A leitora que não entenda a vivacidade dessa reacção, conto porquê. Pertencer à NATO é a trave mestra da defesa nacional, isto é, da segurança do nosso país, desde muito antes do 25 de Abril. Embora só depois de passarmos a ser uma democracia, em 1976, tenhamos sido admitidos como candidatos às Comunidades Europeias (hoje, União Europeia), às quais aderimos, ao mesmo tempo que a Espanha, em 1986, necessidades estratégicas nossas e do Ocidente em geral fizeram pôr de parte esse requisito quanto a defesa e segurança, no nosso caso. (A Espanha só pôde entrar na NATO depois de ser uma democracia).

 

Apesar de ocasionais expressões francesas de antiamericanismo o primado da NATO nunca foi posto em causa. Depois do fim da Guerra Fria, porém, certas coisas mudaram. Por um lado, a reunificação alemã fez a França perceber que precisava mais dos Estados Unidos do que julgava; por outro lado, a passagem da Rússia de potência mundial a potência regional levou os Estados Unidos a entenderem que os europeus deveriam pagar mais pela sua própria defesa (pagamos escandalosamente pouco). E aqui entra a necessidade urgente e vital de desenvolver as capacidades potenciais de defesa da União Europeia.

 

Que Portugal não se meta nisso, logo à cabeça, é muito mau sinal. Dada a matéria, precisar do apoio comunista deixa o governo em apneia patriótica mas atacar Costa nesta altura faz a oposição parecer desmiolada e pouco patriótica também. Já não há 5 de Outubro, 28 de Maio ou 25 de Abril. Como ganhar ânimo?

 

O autor foi Secretário-Geral da União da Europa Ocidental, à época a única organização europeia de defesa, de 1994 a 1999.

 

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Quarta-feira, 19 de Julho de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Lord_Carrington

 Lord Carrington numa cerimónia da Ordem da Jarreteira, de que é Grão-Mestre

foto Philip Allfrey

 

José Cutileiro

 

 

 

Lembrança da Guerra das Falklands

 

 

 

 

Lord Carrington foi o primeiro ministro dos negócios estrangeiros - Foreign Secretary - de Margaret Thatcher. Na altura da formação do governo, ele tinha-lhe discretamente mandado dizer que não lhe admitiria más criações, o aviso fora acatado, e deram-se os dois como Deus com os anjos até ao fim da vida dela (Carrington fez 98 anos em Junho e está em forma). Mas a relação institucional fora abruptamente interrompida. Em 1982 a Argentina invadiu as Ilhas Falklands e no dia seguinte Carrigton demitiu-se. Entendia que o ministério dos negócios estrangeiros britânico se deveria ter apercebido do que os argentinos estavam a preparar e, como responsável político, entregava a pasta.

 

O seu sucessor foi logo nomeado e Carrington passou a backbencher (membro da Câmara dos Comuns ou da Câmara dos Lords, que não faz parte do governo nem das chefias da oposição) depois de muitos anos de responsabilidade política. Militar de formação – após Eton fizera a academia militar de Sandhurst em vez de Oxford ou Cambridge – condecorado durante a Segunda Guerra Mundial, saiu de cena com a sua honra não só intacta mas reforçada.

 

A Inglaterra ganhou a guerra e recuperou as ilhas (que os argentinos chamam Malvinas); a junta militar que a começara e governara criminosamente a Argentina foi deposta e vários dos seus membros presos e condenados por tratamento atroz de centenas de oposicionistas incluindo muitos assassinatos. A democracia foi restaurada no país.

 

Entretanto, poucos anos depois de se demitir do Foreign Office, Lord Carrington foi convidado a voltar à cena política, desta vez como Secretário-Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, vulgo NATO, (ou, em momentos pedantes de aficionados da nossa língua – às vezes também os tenho – OTAN). O mandato do Secretário-Geral da NATO é por cinco anos, pode ser renovado mas Carrington não o quis. Assisti, por acaso, ao último Conselho a que presidiu. No último ponto da agenda, leu o comunicado do Conselho quase até ao fim e antes do último parágrafo que fazia o seu elogio e anunciava o seu sucessor, passou assim a leitura para o MNE do Luxemburgo, presidente protocolar : « And now Jacques you come over here and shoot me ».

 

Foi presidir Christie’s, os leiloeiros de arte, e o seu prestígio era tanto que em 1991 foi convidado a presidir a Conferência de Paz sobre a ex-Jugoslávia, o que fez durante um ano do seu gabinete no Christie’s.

 

Um homem de honra leva vida bonita e tem sempre futuro. Infelizmente, nestas matérias, o sul da Europa não goza de grande fama. No prefácio da sua célébre história da luta pelo poder na Europa no século XIX, AJP Taylor conta que, nessa época, os embaixadores eram ou grandes fidalgos ou grandes figuras intelectuais; num caso ou noutro, sempre homens de honra. Nota de pé de página : « Excepto os italianos. Como seria enfadonho estar sempre a repetir esta advertência, fica aqui para o livro todo ».

 

Portugueses são italianos tristes.  

 

 

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Quarta-feira, 12 de Abril de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

Patrie

 

 

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Pátria

 

 

 

Em Novembro de 1994 fui escolhido para Secretário-Geral da União da Europa Ocidental, em Bruxelas. Havia quatro candidatos: um belga que desistiu quando outro belga, Willie Claes, foi escolhido para Secretário-Geral da OTAN; um político italiano substituído a certa altura por um diplomata italiano, fidalgo competente muito bem-educado – foi dele que recebi o primeiro telefonema de parabéns depois de ser eleito – e um espanhol, Enrique Barón Crespo, ex-ministro de Felipe Gonzalez, ex-Presidente do Parlamento Europeu, que a França tomara de ponta quando ele quisera mudar o Parlamento Europeu de Estrasburgo para Bruxelas (crime de lesa-majestade para qualquer alto funcionário francês, cujo lema é: L’État c’est (aussi) moi).

 

Um mês depois recebi uma carta manuscrita com estampilha francesa, remetida por Joaquín Romero Maura. Estivéramos juntos em St. Antony’s, eu antropólogo, ele historiador. Anos depois de Oxford, fui convidado para seminário sobre religião e política no Mediterrâneo, organizado em Roma por universidade americana. Numa manhã radiosa de Maio, o professor americano que presidia à reunião, careca como Mussolini, antes de começar os trabalhos anunciou gravemente que Martin Heidegger tinha morrido. “Should we do something?” Éramos uns vinte sentados a mesa quadrada e vi Joaquín, do outro lado, escrever num pequeno papel, dobrá-lo, passá-lo a vizinho do lado que o passou a vizinho do lado, até mim a quem vinha endereçado. Desdobrei-o e li: La classe obrera tiene un inimigo menos!

 

Abri o sobrescrito. A carta vinha em inglês, datada de Darkest Périgord e começava assim:      

 

Dear José,

The joy of seeing Enrique Barón loose the job almost made me forget to congratulate you on getting it. (A alegria de ver Barón Crespo perder o lugar quase me fez esquecer de te dar os parabéns por o teres ganho.)

 

Agradeci-lhe e nunca mais soube dele. Não sei se continuará historiador ou se   terá virado banqueiro; se Goody (dinamarquesa que em Oxford se recusara a viver em Summertown House, bloco de apartamentos da Universidade, porque a ideia de duzentas teses a serem escritas debaixo do mesmo teto a deixava deprimida) e ele continuam vivos, casados e felizes.

 

Gosto desta história – e mais ainda nos dias incertos que atravessamos – porque mostra o disparate sem nome dos patriotismos anti-europeus que agora vicejam e ganham raízes por vários cantos da Europa. Em França é com sentimentos assim que Marine Le Pen, na extrema direita, e Jean-Luc Mélenchon, na extrema esquerda, animam a malta – onde pululam, de um lado, beatos integristas e, do outro, devotos de Estaline e de Trotsky. Se qualquer deles os dois for eleito Presidente, a União Europeia acabou. Édouard Macron sabe isso, sabe muito mais coisas ainda e julgo que seria capaz de meter a França nos eixos sem dar cabo dela. Mas talvez lhe falte o jeito de um Bill Clinton ou de um Mário Soares para convencer pessoas burras a quererem coisas inteligentes. Carisma, chamam-lhe alguns.

 

 

 

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Quarta-feira, 21 de Dezembro de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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Waterloo e por aí fora

 

 

 

A batalha de Waterloo a 18 de Junho de 1815 do ar do dia ao cair da noite quando o corso Napoleão Bonaparte percebeu que estava perdido e fugiu para depois ser preso e desterrado na ilha de Santa Helena, possessão do Império Britânico no Oceano Atlântico ao largo da África Meridional onde viria a morrer, talvez envenenado com arsénico, acabou com a primeira tentativa moderna de estabelecer uma União Europeia. A segunda tentativa, destruída com Berlim em 1945, deveu-se ao austríaco Adolfo Hitler que se suicidou, havendo muitos dos grandes do seu regime que não se suicidaram sido julgados e enforcados em Nuremberga como criminosos de guerra. Essas duas tentativas foram liquidadas a ferro e fogo porque a ferro e fogo tinham começado, a primeira levando guerra a quase toda a Europa e a segunda a quase todo o mundo.

 

A terceira tentativa de União Europeia é a nossa, pacífica em parte porque os seus fundadores, depois de duas guerras mundiais, não podiam com uma gata pelo rabo e em parte porque o confronto entre União Soviética e Estados Unidos, entre comunismo e capitalismo, ambos armados até aos dentes, deixou os europeus ocidentais, confortados pelo Plano Marshall e pela OTAN, viajarem para o futuro em primeira classe pagando só bilhetes de classe turística. Les trente glorieuses chamam a esses anos em França (que o génio do general De Gaulle transformou de país vencido em país vencedor). Entretanto a União Soviética implodiu, o comunismo perdeu o crédito e os europeus ficaram sem o inimigo que os unia (o primeiro propósito da OTAN era defender-nos da União Soviética; o segundo é defender-nos uns dos outros). Como perigos menos apocalípticos se perfilam – o desagradável Putin; o Estado Islâmico – foi-se mantendo o que havia.

 

Mas este Outono, quando os Estados Unidos, em eleições livres e limpas mas sabotadas ciberneticamente pelo Kremlin, escolheram para presidente um charlatão demagogo, ignorante e instável, cujas prioridades de governo quanto a mudança climática, saúde pública, trabalho, relações internacionais, incluindo comércio internacional, etc., etc., e designação de futuros ministros nos deixam com o Credo na boca perante o futuro dos Estados Unidos e da humanidade em geral, o que há a fazer? Se a OTAN for posta em causa pelo seu sócio maioritário, como é que é? Pior ainda: neste tempo em que tudo se sabe assim que acontece (em 1815, a notícia da vitória em Waterloo levou 4 dias a chegar Londres) e toda a gente conta contos, aumenta pontos, esfuma por querer ou sem querer diferenças entre verdade e mentira; em duas democracias respeitadas os votantes escolheram Brexit e Trump (este, é certo, com Colégio Eleitoral de permeio), em que se sente corte radical entre o mundo da politica e o mundo das pessoas, alguém conhece que alma tem? Quem é que gosta de quê? Paz e direitos humanos estarão a passar de moda na Europa? O inferno são os outros? Será guerra que faz falta, para animar a malta?

 

 

 

 

 

publicado por VF às 09:00
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