Quarta-feira, 13 de Março de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

fernandopeyroteo

Fernando Peyroteo

 

José Cutileiro

 

Todo o mundo é composto de mudança

 

Ou assim Camões disse, talvez por palavras parecidas: estou a citar de memória que é mais traiçoeira ainda do que a pior das mulheres vítimas de violência doméstica aos olhos dos que lhes batem e, às vezes, de quem julga estes nos raros casos que são denunciados à polícia. Os modernos – nós, agora – estão a pôr de pernas para o ar costumes seculares. Miguel de Unamuno que, velho e alquebrado, na universidade de Salamanca replicou ao grito de Muera la intelectualidad traidora! Viva la muerte! do general franquista Millan Astray levantando-se e proclamando Este es el templo de la inteligencia y yo soy su sumo sacerdote!, anos antes, válido e em tempo de paz, teria gracejado – contaram-me, não vi escrito, mas se não era verdade era verosímil – que um homem devia todos os dias dar uma sova à mulher porque mesmo que ele não soubesse porquê ela sabia. De resto, não há sistema simbólico tradicional no mundo de que se tenha notícia (e são muitíssimos) em que a mulher não esteja do lado do mal, enquanto o homem fica sempre com o bem. Como se diria agora, há fake news que vêm de muito longe - entre os cristãos, com abundância, até da Bíblia.

 

Passar a tratar as mulheres de igual para igual é mudança nova e tanto quanto se saiba única. (Em sociedades matrilineais, por engano ditas matriarcais, o filho não herda do pai mas do irmão da mãe; quem quer, pode e manda continua a ser o homem). Quem diz mulher diz judeu. Estão a aumentar muito os casos de antissemitismo na Europa, hoje criminalizáveis. Essa mudança legal vai contra a tradição cristã que, durante quase dois milénios, maltratou os judeus, desde os pogroms da Europa oriental, percursores da solução final nazi, passando pelas conversões forçadas, até chegar à exclusão de clubes e outras descriminações raciais brandas que ainda duram. A pesar do peso dessa tradição, e de racismo generalizado (incluindo hebreu) no Médio Oriente, tratamento igual a judeus e goyim parece ter chegado à Europa para ficar. Outra mudança nova.

 

A mudança de que falava Camões é a mudança das estações, quatro vezes por ano voltando tudo ao mesmo, salvo no homem que a partir de certa idade chama à mudança envelhecimento seja qual for a estação em que entre. Quando, da mudança cíclica, se chega à mudança cada vez para pior da senectude, abre-se ainda mais um capítulo que pode às vezes fazer outros levantarem o sobrolho. Casal amigo de Frau Tichbein, mãe de Emílio (o dos detectives), achava que no tempo deles «o céu era mais azul e a cabeça dos bois era maior».

 

Levantar o sobrolho aos outros e ao próprio. Dei por mim a achar que os políticos de hoje, comparados com os do meu tempo (a que verdadeira política chegou em 1974, antes havia presos que éramos nós e carcereiros que eram eles) pareciam toscos e rascas. Depois fui mais atrás: aos 10 anos achava que o Presidente da República devia ser Fernando Peyroteo, avançado-centro do Sporting e da selecção nacional. A gente vai mudando.

 

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Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Hino pauta

 

 

 

José Cutileiro

 

As luzes estão apagar-se na Europa

 

 

Assim disse estadista inglês no começo da Primeira Guerra Mundial. Esse novo caminho para a escuridão está a ser trilhado agora, de maneira convencida não só na Polónia que parece vítima de maldição perene (Un polonais, un charmeur; deux polonais, une bagarre; trois polonais, la question polonaise, escreveu Voltaire que morreu antes da Revolução Francesa) e na Hungria, onde Victor Orban está metodicamente a enfraquecer democracia parlamentar por  governação autoritária e corrupta, com a cumplicidade do Partido Popular Europeu (que não o expulsa nem autoriza a Comissão Europeia a cortar-lhe finanças, continuando a pretender, contra toda a evidência, que o levará a mudar de rumo a bem) mas também em outros países da Europa de Leste onde se prestam agora homenagens a militares pro-nazis dos anos 30 e 40 do século passado - tratados de criminosos de guerra há  50 anos.

 

Na Europa dantes dita Ocidental a preocupação também é grande. Na Alemanha, talvez de todos os países europeus, aquele em que o apego à democracia parlamentar é maior (salvo na antiga Alemanha de Leste, envenenada à nascença pela mentira que a criara) o partido da Alternativa ganha terreno. Na Itália evoca-se abertamente saudade de Mussolini, e a coligação extrema direita/extrema esquerda que desgoverna agora o país entende-se em pouco mais do que no desprezo da democracia parlamentar e do estado de direito. Na Inglaterra, políticos desnorteados ou mal norteados transformam séculos de grande história to a trouble of fools (com vénia minha a Yeats). Em Espanha, pela primeira vez desde 1975, partido franquista ganha deputados em parlamento regional e lugar à mesa das pessoas de bem da política. Em França, há catorze fins de semanas, os gilets jaunes manifestam em ruas, estradas e rotundas, destroem propriedade, insultam o presidente da república e pedem democracia directa em vez de representativa (os lugares em que democracia directa foi tentada acabaram em ditadura mas ou não sabem isso ou é isso que querem). Paisagem retocada por antissemitismo renascente, que nestas coisas configura o tradicional canário da mina.

 

George Orwell escreveu algures que, de vez em quando, as pessoas queriam o mal, se batiam por ele. Madame de Stäel, no Paris revolucionário, sentira hiato entre políticos e povo, entre quem mandava e quem era mandado, como nunca sentira antes. Cesário Verde faz pensar: A dor humana busca amplos horizontes/E tem marés de fel como um sinistro mar. Mas ao lado de reflexões luminosas depressa surgem feitos medonhos, do terror de Robespierre às matanças de Pol Pot - e é para feitos assim que a Europa se está a pôr a jeito.

 

Portugal parece escapar à maré de fel. Em 1942, na inauguração do Estádio Nacional o governo salazarista fez espalhar de avionete milhares de panfletos rezando em grandes letras O QUE NÓS QUEREMOS É FUTEBOL. Se em inauguração próxima o governo democrático fizesse o mesmo o povo também haveria de gostar.

 

 

 

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Quarta-feira, 6 de Fevereiro de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Claude Lanzmann e Simone de Beauvoir2Claude Lanzmann e Simone de Beauvoir

 

 

 

José Cutileiro

 

Desabafos

 

 

Claude Lanzmann, director da revista Les Temps Modernes, onde sucedeu a Jean-Paul Sartre; autor de Shoa, filme-documentário de 10 horas sobre o morticínio dos judeus europeus por nazis alemães e acólitos de outros nacionalidades (a caça ao judeu é passatempo cristão intermitente e antigo) nos anos 30 e 40 do século passado; único amante de Simone de Beauvoir que esta admitiu que vivesse com ela na sua própria casa – apresento estes três feitos por ordem crecente de mérito – escreveu ter percebido desde muito novo estar condenado a uma vida falhada (ratée) por não ter nascido rico. São raras pessoas com essa lucidez e, mais raras ainda, aquelas que, possuindo-a, têm depois a franqueza de dizer o que ela lhes diz a quem as queira ler. Só encontrei a sentença de Lanzmann depois da morte dele, o ano passado, e talvez não tenha sido o único a identificar-me com a sua percepção fatalista. Mas é pensamento incómodo de albergar, sobretudo associado, inevitavelmente quando se pense em Lanzmann - Grande Senhor, ele próprio – e em Shoa, nos destinos dos milhões de pessoas por esse megamassacre consumidas (a maior barbaridade cometida por europeus contra europeus) . Na paz de uma sociedade tolerante que condena o antissemitismo, passados mais de 70 anos sobre os julgamentos de Nuremberg, parecerá mesquinho pôr na ideia que o dinheiro traga felicidade (não traz mas, dizia Bernard Shaw, traz qualquer coisa tão parecida que só um perito será capaz de as distinguir) de tal maneira que lamentar tão fundamente não o ter – e não o ter de nascença, como parte da ordem natural das coisas – dir-se-ia exercício narciso-masoquista antipático, mesmo desprezível.

 

Talvez – mas depois a gente olha à roda e factos incómodos começam a vir ao de cima. Hoje sabem-se muito mais coisas do que os crescidos sabiam quando eu era pequeno e arrumam-se essas coisas também de muito mais maneiras, avivando semelhanças e contrastes. Por exemplo, sabe-se, com números certos e contas feitas, que as 26 pessoas mais ricas do mundo possuem mais no seu conjunto do que metade – metade - da população do globo terrestre – o que, quer eu quer a leitora, deveremos concordar ser um um rôr de gente. Ao mesmo tempo, nos grandes vazios políticos criados nas cabeças pelo fim do comunismo e das esperanças que este levantara – antes de as aniquilar em Moscovo, Beijing, Havana,  Pyong Yang, onde quer que agarrou poder e prometeu amanhãs que cantam – nada ainda medrou capaz de concorrer com as moderações, decentes e sensatas, que equilibravam os pratos da balança a nosso favor no tempo da Guerra Fria. Nas Américas, em África vibram intolerâncias de fundamentalismo cristão. Em Myanmar morreram ilusões sobre o budismo. O Islão descamba demais em violência.

 

Ficam as nossas democracias, a sua mistura de fome, saciedade e esperança que nos dá a todos, incluindo os Lanzmann, um lugar ao sol. Mas se as diferenças abissais de  riqueza não forem reduzidas até estes oasis se sumirão.

 

 

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Quarta-feira, 31 de Outubro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Adão e Eva - Peter Paul Rubens

 

José Cutileiro

 

 

O povo é quem mais ordena

 

 

A extrema riqueza e a extrema pobreza têm uma coisa em comum: ambas assustam à primeira vista, disse já não me lembro ao certo (a idade não perdoa) que escritor inglês - e era capaz de ter razão. Digo ‘era capaz’, porque não tenho experiência que chegue na matéria. Um ou outro marajá ou príncipe árabe em festas de Oxford, às vezes com atavios tradicionais e caprichos malcriados; uma manhã a pé por ruas de Karachi, com cuidado para não pisar cadáveres de gente acabada de morrer de fome.

 

A esmagadora maioria dos ricos e dos pobres que encontrei na vida estavam muito longe desses extremos, embora suficientemente perto para a gente saber que uns eram os pobres e outros eram os ricos e ser às vezes tentado a compará-los.  Passando do dinheiro à política, quem diga pobres e ricos poderá também dizer bases e cúpulas, povo e poder. E aí a minha experiência profissional quer como antropologista no Alto Alentejo  nos anos sessenta do século passado quer como diplomata na Bósnia Herzegovina no começo dos anos noventa do dito século, convenceu-me de coisas que não vêm e não são sugeridas nem no Sermão da Montanha de Nosso Senhor Jesus Cristo nem no Manifesto Comunista dos alemães anglicizados Karl Marx e Frederich Engels. (Parêntesis: se acrescentarmos Freud e Einstein a esse estojo de ferramentas intelectuais para entendimento do século XX, ficaremos com ramalhete que deixará de água na boca qualquer antissemita americano que se preze, já a engatilhar as muitas armas de fogo que o Estado os encoraja a ter em casa. Parêntesis fechado).

 

O que eu descobri nas minhas andanças alentejanas e balcânicas no já remoto século passado – ou descobri independentemente, ou julguei ter descoberto, ou, dirão alguns, tomei nuvem por Juno e elaborei enganado – foi que os pobres são piores do que os ricos (não só fisicamente, pois remédios custam caro, mas também moralmente) e que as bases são piores do que as cúpulas. Talvez isto não se note tanto porque os ricos dão mais nas vistas. O escândalo da tia do meu chorado Raúl Miguel, fechada num manicómio quando se apaixonou por amanuense pelintra, pela família que subornou psiquiatras e juizes, até deu uma peça de teatro de Ramada Curto. Dos muito velhos e velhas em famílias de trabalhadores rurais, mortos devagar de fome por só os deixarem comer à proporção das suas míseras reformas, ninguém falou. Quanto à política: hoje o Dr. Karadzic, chefe dos sérvios bósnios em 1992, preso na Haia, apela de sentença de quarenta anos de cadeia. Ele era a cúpula: e passava o tempo a tentar moderar as suas bases que queriam sempre matar e espoliar mais croatas e muçulmanos.

 

O que me leva ao Pecado Original e ao à vontade que Silicone Valley veio dar à maldade humana. Fartai vilanagem! Tempo haverá até serem criados novos estabilizadores de decência e bom senso. Entretanto, o Brasil está à beira do abismo. Mas, como dizia o meu amigo Vernon Walters: «Você olha pró abismo e o Brasil não cabe!».

 

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 27 de Abril de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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foto: Cartier Bresson

 

 

 

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A ressurreição do fascismo?

 

 

 

A primeira volta das eleições presidenciais na Áustria deixou o candidato da extrema-direita bem à frente de todos os outros e os candidatos democrata cristão e social-democrata - dos partidos que em alternância ou coligação têm governado o país desde o fim da segunda guerra mundial - nem à segunda volta irão: os eleitores estavam fartos de sindicalista militante desde os 15 anos e de católico espantado quando descobrira que os 8 mil euros da sua pensão não correspondiam às pensões austríacas médias. O protofascista terá como opositor principal um independente que se diz próximo dos ecologistas; ambos são contra o grande acordo comercial com os Estados Unidos que está a ser negociado pela União Europeia.

 

Depois de os mais velhos de entre nós terem assistido à morte do fascismo em 1943 na Itália; em 1945 na Alemanha, na Hungria e na Roménia; em 1974 em Portugal com o 25 de Abril e em 1975 em Espanha com a subida ao trono de D. Juan Carlos (entendidos dizem que os regimes peninsulares de Franco e de Salazar/Caetano não foram bem fascismos - mas foram o mais parecido que por cá houve) teremos ainda, se insistirmos em sobreviver um pouco mais, de assistir à sua ressurreição?

 

Extrema-direita e Áustria rimam. Com a derrota de 1918, Viena tinha perdido o Império e depois de embandeirar em arco no nazismo desde meados dos anos 30, quando veio a derrota de 1945, tinha perdido também os judeus. Assim amputada foi submetida durante anos a neutralidade pelos vencedores, que depressa passaram a confrontar-se na Guerra Fria, dando jeito aos dois blocos impedir que aquele canteiro de germanismo pendesse para o outro lado. Era país “neutro” como se dizia na altura, tendo, quando a União Soviética não conseguia já esconder o seu enfraquecimento, políticos de direita descarados dito aos seus eleitores que a Áustria poderia aliar-se na OTAN e permanecer neutral (nunca se aliou porque a neutralidade lhe convém: gasta uma miséria em defesa sem ser chamada à pedra por isso). A História pesa. Per capita houve mais guardas de campos de concentração e extermínio nazis austríacos do que os houve alemães. Tradição antissemita dá aqui e além ares da sua graça, incomodando às vezes turistas americanos. No seu todo, porém, o país tem grande competência em PR (relações públicas): há muito estrangeiro convencido de que Hitler era alemão e não austríaco e de que Beethoven era austríaco e não alemão.

 

O que se passará depois da segunda volta da eleição, não se sabe. Haverá por algum tempo ingovernabilidade à espanhola ou à irlandesa? Ou – mais provável para alguns - teremos o país a alinhar-se com húngaros e com polacos numa espécie de núcleo duro autoritário da Europa Central, com pouca paciência para muitas obrigações da democracia, preferindo de longe autoridade a liberdade, xenófobo e protecionista? Visceralmente anti-russo, como os polacos, ou com um fraco por Putin, como o húngaro Orban? Venha o que vier, coisa boa não será.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 11 de Novembro de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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 Lisboa, 2015

 

 

 

 

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O futuro?

 

 

 

A família donde se venha (pai, mãe, avôs, avós, irmãs, irmãos) prepara-nos para a vida, inclusive porque, sem a gente sequer dar por isso, tantas vezes nos leva a amar pessoas de quem nunca gostaríamos. Com países é diferente: cada um tem os vizinhos que tem e ou se gosta deles ou não se gosta: daí não se sai. Pelo sim pelo não, dantes qualquer país que se prezasse tinha o seu Ministério da Guerra. De há décadas a esta parte passou a dizer-se Ministério da Defesa. Valha-nos S. Jorge Orwell.

 

Vizinhos, vizinhos, nós portugueses só tínhamos um; daí a prudência. “De Espanha nem bom vento nem bom casamento” é prevenção tão ancestral que o tratado internacional de entreajuda mais antigo do mundo ainda em vigor foi assinado por Portugal e a Inglaterra em 1386. E também para garantir mais independência à dinastia que inaugurava, o Mestre de Avis foi buscar mulher à casa inglesa de Lancaster. Histórias de poder: veio a seguir o Tratado de Tordesilhas dividir o mundo descoberto e a descobrir entre Portugal e Espanha. Depois, já com Os Lusíadas escritos – há países para quem a epopeia é ao mesmo tempo o epitáfio, disse há quase século e meio Oliveira Martins - regras dinásticas trouxeram-nos o primeiro rei Filipe (segundo de Espanha) para, sessenta anos depois, revolta popular e fidalga nos livrar do terceiro (quarto de Espanha). São águas passadas. Neste nosso tempo em que a fatia europeia do bolo mundial continua a mirrar o único vislumbre que pessoalmente tive do que seria o “espírito de Tordesilhas” aconteceu quando, havendo eu sido escolhido para Secretário-Geral da União da Europa Ocidental em 1994, Javier Solana foi escolhido para Secretário-Geral da OTAN em 1995. Mas não éramos patrões – éramos só gerentes.

 

Entretanto, bem entendido, Espanha e Portugal tinham aderido às Comunidades Europeias. Entre ambos a corrida, por assim dizer, passara a ser com touros embolados ou, abandonando folclores, a nossa vizinhança passara a ser outra, fora da União. Essa preocupa e poderá dar maus exemplos, sobretudo agora que um toque de Terceiro Mundo parece convir às predilecções de parte do novo poder político. Já existe espalhado em Portugal, mesmo para lá da extrema esquerda, um apoio bem intencionado mas faccioso e ignorante à “luta do povo palestiniano”, condimentado por laivos frequentes de antissemitismo (o velho antissemitismo europeu, com longas raízes históricas, mudou-se no nosso tempo da direita para esquerda). Sobre esse caldo de cultura alguns poderão agora ser tentados a imitar jeitos dos que se impacientam com as delongas da democracia formal e preferem ganhar batalhas políticas e sindicais na rua. A ir deitando pela borda fora costumes de civilidade democrática estabelecidos desde o fim do Estado Novo. A parecerem dar razão, em suma, àqueles e àquelas que, de vez em quando, olhando para trás e olhando à sua roda, sombriamente se convencem de que Portugal é incapaz de criar no seu seio elites sustentáveis. É pena.

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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© Philippe Geluck

 

 

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Allons enfants de la Patrie

 

 

Qual foi a consequência principal da Revolução Francesa? Há meio século, Chu En Lai respondeu que era cedo demais para se saber. Talvez na semana passada a resposta tenha vindo, mesmo que outros sábios chineses objectem (Voltaire nunca teve fãs para as bandas de Pequim).

 

Começando no massacre de quarta-feira de manhã na redacção de Charlie Hebdo por dois jiadistas franceses e acabando na multidão afirmativa – eu sou Charlie, eu sou chui, eu sou judeu – marchando pelas ruas de Paris e de muitas outras cidades francesas no domingo à tarde, passando pelo assassinato de polícias e de quatro judeus, reféns numa loja de comida judia de terceiro jiadista francês, um enorme sobressalto sacudiu a França.

 

Tirou-a do torpor triste, desencantado e quezilento em que há anos a pouco e pouco se afundava (embora os franceses continuassem a fazer mais filhos por casal do que quaisquer outros europeus) recusando adaptar-se às exigências do mundo globalizado e digital. Desde 1995 fora assim: governo anunciava reformas, sindicatos opunham-se; Assembleia Nacional passava leis, povo saía à rua; após curto braço de ferro, o governo desistia. E em pano de fundo, apesar das iniquidades de Vichy, há em França mais judeus e, apesar de descolonização argelina calamitosa, mais árabes, do que em qualquer outro país da Europa – embora com milhares de uns a emigrarem para Israel e milhares dos outros a rumarem à jiad. No domingo à tarde era como se um sopro de liberdade tivesse levantado toda a gente do chão e a houvesse feito levitar.

 

Charlie Hebdo, que imprimira as caricaturas dinamarquesas de Maomé e publicara número “editado pelo Profeta”, vira a redacção incendiada e recebera ameaças (a protecção policial do director morreria com ele). As suas sátiras da extrema direita e dos monoteísmos eram, para muitos, de ferocidade ofensiva e de mau gosto. As vendas vinham a baixar. Mas a brutalidade dirigida da destruição – “Matámos Charlie Hebdo”; “Vingámos o Profeta” gritaram os assassinos – acordou os valores adormecidos da República. No peito de cada francês bateu de novo a liberdade contra os inimigos da revolução de 1789; a liberdade escrita por Éluard em toda a parte – Sur mes cahiers d’écolier Sur mon pupitre et les arbres Sur le sable sur la neige – contra a ocupação nazi de 1940-44.

 

A procissão só vai no adro (Charlie Hebdo troçaria da imagem): mais de 50 pequenos atentados de vizinhança antimuçulmanos foram praticados desde o dia 7 em França; em Dresden a manifestação semanal contra “a islamização da Europa” foi segunda-feira a mais concorrida de todas. Para profilaxia e tratamento da barbárie que tenta instalar-se é preciso mexer em muitas coisas, dos liceus às casernas. Mandar com cabeça fria, coração quente e pulso firme. Por muito tempo.

 

Entretanto, eu sou Charlie. Prefiro ser de um lugar onde cada um possa pensar o que queira e o possa dizer – a ser de um lugar onde seja obrigatório acreditar num Deus. É essa a escolha.

 

 

 

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Quarta-feira, 24 de Dezembro de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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 Fuga para o Egipto, Giotto 1311

 

 

 

 

 

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Boas Festas

 

 

 

A quadra de presentes é propícia ao calibrar das posses de cada um e sente-se no ar um perfume de luta de classes de que não me lembrava há muito tempo (“consciência de classe que parecia adormecida”, escreve-me amiga em Portugal). Apesar de distracções na televisão, na telefonia, nos jornais, na internet, nas redes sociais - guerra sem quartel entre sunitas e xiitas; tropelias de Putin; aquecimento global provocado pelo homem (brinca, brincando, crescemos de dois mil para sete mil milhões em pouco mais de meio século: europeus, porém, somos cada vez menos); epidemias que resistem a remédios - mau viver insidioso alastra em cada vizinhança.

 

Como só más notícias se vendem – e compram – entram-nos desgraças pela casa dentro amanhadas “de cinco maneiras diferentes”, como os linguados do restaurante Sua Excelência quando o Queiroz recitava o menu. Contra mim falo, mas parece às vezes haver hoje mais comentadores do que coisas a comentar. Entretanto, espreguiçando-se estremunhada, a luta de classes que ninguém é capaz de definir mas em que muitos gostam de acreditar – um bocadinho assim como a Graça de Deus – arreganha os dentes. Já tínhamos passado por isso e eu julgava que o assunto estivesse arrumado. Nem pouco mais ou menos.

 

Os muito ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Muita gente na finança – banqueiros e para-banqueiros, grandes, médios e pequenos – tomou o freio nos dentes desde que a União Soviética colapsou e deixou de ter medo fosse do que fosse. Sem perceber que o fim do comunismo não fora a irradicação de uma doença mas sim o fracasso de um remédio – nunca é demais repeti-lo – abandonou o cuidado dos outros. Mas enquanto os Estados Unidos, arrancando com um programa de estímulo, saíram da crise que lá começara em 2008, a Europa, com a grilheta da austeridade a arrastar-lhe os pés, abeira-se da deflação. Irlanda, Grécia e Portugal devem mais do que deviam quando os programas de ajuda começaram - e nunca poderão pagar. Uma falsa convicção germânica de virtude obnubila responsáveis políticos e fá-los insistir no mau caminho.

 

Quando a economia, em vez de crescer, mirra, e os filhos vivem pior do que viveram os pais, os europeus, desabituados há muito tempo de tais desconfortos, tornam-se agressivos. Xenofobia pavoneia-se em França, na Alemanha, na Grã-Bretanha; protecionismo empobrece as nações. Quando não haja estrangeiros nem infiéis para bode expiatório avança a “luta de classes” - exemplo da tentação universal de fazer passar inveja por virtude - com tradição em Portugal, primeiro às escondidas da PIDE, depois posta ao léu pela Revolução dos Cravos. Esquecida a seguir – e lembrada agora.

 

A menos que os políticos entendam, percam medo da Alemanha, esqueçam austeridade e se metam a ajudar a economia com bom senso e coragem precisos, o que espera a Europa é - com vénia a Mestre António Garcia - uma broncalina do camandro ou uma Bernardette do caboz.

 

Boas Festas, mesmo assim.

 

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Quarta-feira, 29 de Outubro de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Sempre a desaprender

 

Há quase vinte e um séculos, entre salvar o assassino Barrabás e salvar o Messias Jesus, gente da terra de ambos que os conhecia bem preferiu salvar Barrabás. Em 1933, o partido de Hitler foi eleito em escrutínio livre e limpo.

 

Os desígnios de Deus são insondáveis (se Jesus não houvesse sido crucificado não teria havido cristianismo) mas os factos permanecem, nus e crus como a verdade. A voz do povo nem sempre é a voz de Deus ou, em versão adaptada aos nossos costumes políticos, a democracia pode dar para o torto. Mas dá para o torto muito menos vezes do que as tiranias, teocracias e cleptocracias que vemos à nossa roda. Como em tantas outras coisas, foi Churchill quem encontrou a fórmula certa, muito lembrada agora que condenações da decência do nosso viver se afirmam de novo, banha da cobra lembrando a dos fascistas dos anos 30 do século passado: “A democracia é a pior forma de governo que há, tirando todas as outras”.

 

Em Portugal não há ameaços de criação de uma extrema-direita significativa, a meu ver porque a enorme popularidade de Cavaco Silva, no seu primeiro mandato de Primeiro-Ministro, absorveu como uma espécie de mata-borrão cívico os pingos neo-fascistas mais radicais que haviam tentado confrontar o PREC e haviam persistido depois, aqui e além, sob os primeiros governos constitucionais. Tudo isso entrou de cambulhada, até hoje, no grande leque da direita parlamentar, bentinha pelo regime e, por aí, não há quem ponha em risco a Terceira República. Não porque nós, os portugueses, sejamos menos egoístas, menos racistas ou mais morais do que os nossos vizinhos e comparsas europeus. Remontamos todos, nós e eles, ao pecado original ou, se não quisermos presumir sobre começos, somos todos talhados em madeira tão torcida que não há um que tenha saído direito. O problema é que o como e o porquê dos portugueses interessam pouca gente porque Portugal pouco pode. Mas em lugares de mais consequência — não na Alemanha, hoje um monumento inabalável de democracia, mas em França, Reino Unido, Países Baixos, Suécia, Finlândia — direitas pouco salubres crescem como bambus e obtêm apoios de alto-a-baixo nas sociedades, (incluindo, em França, entre antigos eleitores comunistas). Os chefes dessas direitas querem expulsar os imigrantes, sobretudo muçulmanos; ‘proteger’ as economias nacionais no mundo globalizado para lá de todo o bom senso; descriminar contra minorias; alguns disfarçam mal antissemitismo renascente que chega a pôr em dúvida o Holocausto. Sondagens mostram subida constante de popularidade, confirmada em eleições parciais, prenunciando mesmo possibilidade de conquista da Presidência da República em França. As semelhanças com o que se passou na Europa dos anos trinta deviam meter medo e mobilizar os defensores da democracia na Europa de hoje.

 

Não é luta fácil. Mesmo os dois casos acima podem ser virados do avesso: os alemães mataram os judeus; os judeus mataram Jesus Cristo. A luta continua.

 

Imagem aqui

 

 

 

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Quarta-feira, 23 de Julho de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

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 Destroços do voo 17 da Malaysia Airlines próximo de Hrabove, leste da Ucrânia, manhã de 19 de Julho de 2014.

(Dmitry Lovetsky/Associated Press)

 

 

 

 

 

A Cereja no Bolo

 

 

“Primeiro julguei que tivesse sido o Mossad, para distrair a nossa atenção de Gaza” disse a rapariga, sentada de Ipad ao colo. “Mas o que se foi sabendo não dava para isso. Entre russos e ucranianos…”

 

Conversa em Bruxelas, quando não restavam dúvidas quanto à origem do míssil terra-ar que deitara abaixo um avião da Malaysia Airlines com 298 pessoas a bordo sobre o leste da Ucrânia. Mas para muitos europeus dos nossos dias, criados no soft power e na correcção política, a maldade de Israel não tem limites e Vladimir Putin até nem é mau de todo, dada “a sobranceria com que os Estados Unidos trataram a Rússia a seguir ao fim da União Soviética”. Santa simplicidade.

 

Nesse fim de semana, em Paris e noutras cidades de França, numerosos manifestantes solidários com o povo da Palestina, enquanto partiam montras e ameaçavam sinagogas, gritavam palavras de ordem antissemitas — “Mort au juif!” — como não se via e ouvia em França já há muitos anos. (Coincidência de datas: o primeiro-ministro presidiu a cerimónia de desagravo comemorativa da concentração de 13.152 judeus, incluindo 5.051 crianças, num velódromo parisiense — o Vel d’Hiv — a 16 e 17 de Julho de 1942 antes de serem despachados para extermínio em Auschwitz). O antissemitismo francês tem tido altos e baixos.

 

Quanto ao avião da Malásia e a Putin, a verdade veio depressa ao de cima. Entre gabarolices e aldrabices, os rufias da República de Donesk, locais ou mercenários russos, deixaram poucas dúvidas sobre a selvajaria da sua proeza, e meios nacionais americanos de observação (NSA, etc.) revelaram com precisão cirúrgica o que se passara. Em muitas capitais do mundo, o patrão do Kremlin, cuja fanfarronice nacionalista inspirara a desordem armada no leste da Ucrânia — e cuja intendência lhe fornecera logística — é visto como corresponsável pela criação de ambiente propício à prática da atrocidade. Na União Europeia, até alemães e italianos concordaram no endurecimento de sanções à Rússia.

 

Quanto a Gaza, o horror de civis mortos e feridos por fogo israelita continua e continua também a incompreensão do que se está a passar. Gaza, com uma das mais altas densidades de população do mundo, é gigantesco e trágico escudo humano da armadilha onde Israel tem caído desde que se retirou do território em 1994. O Hamas dispara de lá todos os dias foguetões sobre Israel e cava túneis para por eles fazer mais ataques. Quando Israel pretende atingir rampas de lançamento ou quer escavacar túneis mata e fere inevitavelmente civis. A tática do Hamas não é original (em 1992, muçulmanos da Bósnia mandavam morteiros contra sérvios de pátios de hospitais) mas a escala desta vez é épica. E, lembrava Marx, alterações quantitativas conduzem a alterações qualitativas.

 

O Hamas, que não reconhece o Estado de Israel, tem agora muito menos apoios no mundo árabe. Mas a direita israelita de hoje está como Abba Eban disse um dia dos árabes: não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade.

 

 

 

 

 

 

publicado por VF às 09:28
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