Disponível para consulta no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Hoje, como no início da carreira de Futscher Pereira, os telegramas rosa são os recebidos e os telegramas verdes são os expedidos. O espólio ocupa 14 prateleiras do Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Foto Daniel Rocha
Estudar este espólio, disse o ministro [dos Negócios Estrangeiros] que é ele próprio um académico, vai permitir ver “como se exerce a profissão de diplomata, como se cresce e se amadurece passando pelos postos C., e como se faz política externa em Portugal — que tem sido sempre um pouco singular”. Foi justamente isso que a filha Vera mais gostou de descobrir ao mergulhar no universo profissional do pai: “Ver o que realmente faz um diplomata. Tem-se aquela ideia do croquete. Como a história da menina a quem perguntam: ‘O que faz o teu pai?’ e ela responde: ‘É diplomata e faz discursos em francês.’ Aqui percebe-se que ser diplomata é sobretudo a descrição e a análise do que se está a passar nos países. Foi ver os bastidores de uma profissão que é tão secreta.”
Em momentos separados e a milhares de quilómetros de distância, ela em Lisboa, ele em Dublin, os dois irmãos usam exactamente a mesma expressão. “Estava sentado em cima dos papéis quando já há historiadores interessados em ver”, conta Bernardo. “Até que percebemos que estávamos aqui sentados em cima dos papéis e que assim os papéis morrem”, diz Vera. O filho-embaixador tem uma razão extra: “Sendo eu próprio investigador nas horas vagas [é autor de A Diplomacia de Salazar (1932-1949), de 2012, e Crepúsculo do Colonialismo – A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961), que acaba de ser lançado], não me sentiria bem perante os meus colegas académicos dispondo daquele espólio e não o pondo à disposição deles também. Se o meu pai guardou isto tudo, é porque achava que os documentos tinham valor histórico. Não era apenas para nós podermos saber o que ele tinha feito como diplomata.”
Leia na íntegra o artigo de Bárbara Reis no jornal Público
Vasco e Malu Futscher Pereira com Nancy e Ronald Reagan em Washington
* * *
José de Freitas Ferraz* :
Ele, na realidade, foi o diplomata mais completo que eu conheci. Na medida em que era um homem extremamente inteligente e culto, tinha uma enorme capacidade de análise, escrevia muitíssimo bem, ainda hoje se quiserem podem ver, e para além disso era extremamente gregário, era extremamente afável, era extremamente simpático, ele tinha uma necessidade terrível de ter gente à volta e tinha também a seu favor o facto de, na realidade, a embaixada em Washington para ele ser o terceiro posto que ele fazia nos EUA. [...] O que aconteceu nesse período, nos períodos em que ele tinha estado nos outros postos ia coleccionando amigos e quando chegou a Washington já tinha uma rede importante e uma rede que desenvolveu.
Ele tinha uma, algo que eu aprendi na altura e os colegas também, que era : ele não tolerava "nós". Ele que era extremamente simpático e afável, não tolerava que num jantar oficial, numa recepção, nós, nos apanhasse a falar uns com os outros. Porque ele explicava que vocês estão aqui para trabalhar, portanto fazem o obséquio de falar com os convidados.
E ele, por seu lado, se eu estivesse numa ponta da sala, era um prazer ver o Vasco Futscher Pereira e a Malu a trabalhar, como os americanos diziam, “working the crowd”, praticamente cobrindo digamos 60 ou 100 convidados que eles lá tinham.
*
Bernardo Futscher Pereira:
Sempre guardou cuidadosamente e transportou consigo pelo mundo a sua correspondência com o ministério, as inúmeras cartas que trocou com colegas e amigos, os recortes de imprensa em que se apoiaram os seus relatórios. É todo este manancial de documentos, com a única exceção dos que são de natureza estritamente pessoal e familiar, que hoje simbolicamente entregamos à guarda do Arquivo Histórico-Diplomático.
E não haverá certamente melhor sitio para o depositar do que no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Faço-o com particular gosto por ser eu próprio um utilizador assíduo do arquivo e conhecer o seu valor ímpar para o estudo da história diplomática de Portugal – ou seja para a história de Portugal.
Sempre procurou transmitir a importância de fazer as coisas bem feitas. Punha um grande apuro em tudo o que fazia, e em particular naquilo que escrevia, num estilo que se esforçava para tornar límpido e elegante. Não era pessoa timorata, que se acanhasse perante os seus superiores ou que deixasse de exprimir, de forma delicada mas firme, os seus pontos de vista. Estava à vontade com toda a gente.
Teve uma vida muito atribulada, mas nunca se deixou abater pelas preocupações. Pelo contrário, procurou sempre gozá-la tanto quanto podia. Tinha tempo para tudo. Aliás, costumava dizer: “não ando com pressa na vida”.
Discípulo de António Sérgio e Agostinho da Silva, creio que se via como um humanista. O amor pela cultura manifestava-se numa devoção pelos livros, não como objetos – não era bibliófilo nesse sentido embora adorasse todas as artes decorativas, incluindo a encadernação – mas como expressão do que de mais profundo e elevado a razão e a arte podem criar.
*
*Presidente do Instituto Diplomático
Agradecimentos: Margarida Lages, José de Freitas Ferraz, Bárbara Reis, jornal Público
Cristina de Carvalho Futscher Pereira
17 de Abril 1948 - 27 de Setembro 2005
O Ramo de Oiro
Estando eu à minha porta
Com três horas de serão
Vi passar Nossa Senhora
Com um ramo de oiro na mão.
Eu pedi-lhe uma folhinha
Ela disse-me que não;
Pedi, tornei-lhe a pedir,
Ela deu-me o seu cordão,
Que me dava sete voltas
À roda do coração.
Sete voltas não são nada
Ó Virgem da Conceição
Prendei vós esta alma toda
Prendei-ma com vossa mão
Que a metade inda é do mundo
Metade, que a outra não.
Plantai-me esse ramo de oiro
No meio do coração
Ficarei no vosso altar
Como vaso de eleição.
Romance popular incluído nos manuscritos garrettianos descobertos pela Cristina em 2004. O poema foi lido no seu funeral e editado numa pagela oferecida aos amigos.
*
Veja também os posts:
Vasco Luís Futscher Pereira
3 de Fevereiro de 1922 — 20 de Agosto de 1984
Brasília, 10 de Agosto [1974]
Almoço com o Vasco Futscher no Clube Naval.
Rosto glabro e redondo e olhar de sapo por detrás duns óculos onde palpita viva e ágil a retina bombeada do míope. Grande falador de riso fácil e de uma extrema simpatia natural. Tudo lhe desperta curiosidade.
Ostenta um instintivo gosto pela vida alimentado, ao contrário de muitos, pela cultura e a inteligência. Uma ponta de obesidade confere-lhe uma certa inteireza física acentuando-lhe a espontânea jovialidade. Quando sorri, e sorri com frequência, as bochechas sobressaem à maneira dum boneco animado, arredondando-lhe a face e a expressão reboluda do olhar.
A primeira impressão é a de que não poderia ter havido melhor escolha. Calhado para o Brasil, como outros o são para a Finlândia ou a Indonésia. O Brasil, que não conhece, surge-lhe como uma experiência inteiramente nova que ainda o anima e seduz, pois é homem, se não me engano, de entusiasmos repentinos.
Diz-me, no entanto, ter ficado horrorizado com o que lhe contou o Castelinho1, com quem jantou há dias, acerca da intensidade e polivalência aqui da repressão política a cargo simultaneamente de diversos organismos, que agem por conta própria, cada um dispondo de sua gente e actuando por sua iniciativa.
[...]
Voltando ao Brasil, falei-lhe da relação essencialmente freudiana que ainda hoje liga - ou separa? - o Brasil e Portugal. Quem teimar em encarar este país com o olhar peregrino do portuga, e não perceber a ambiguidade de sentimentos que o brasileiro nutre para connosco, arrisca-se a cometer grossa asneira e a nada entender desta terra e desta gente.
Na verdade, nada mais ilusório do que partir do princípio de que a matriz lusíada, por si só, será suficiente para preservar os laços da tão apregoada comunidade luso-brasileira.
[...]
O embaixador limitou-se a ouvir-me e apenas citou, como prova do contrário, dois exemplos: o caso do Estado de São Paulo2 e a proliferação de clubes Eça de Queirós disseminados por todo o Brasil. «Veja só o imenso capital de simpatia que isso representa para connosco se o soubermos aproveitar com um mínimo de inteligência.»
Levantou-se — já não sei que horas eram... e quantos cafés havíamos ingurgitado — e com um sorriso paternal, pousando-me a mão no ombro: «Deixe lá, homem, não se preocupe, não seja tão pessimista, ainda há por aí muito caturra que gosta de nós.»
Marcello Duarte Mathias
© D. Quixote 2010
1.Carlos Castelo Branco, mais conhecido por Castelinho, ao tempo influente editorialista do Jornal do Brasil.
2. Nessa altura, o Estado de São Paulo um dos jornais mais prestigiados, inseria em substituição das partes censuradas, consoante a maior ou menor extensão das mesmas, extractos de Os Lusíadas, assinalando assim os cortes de que era objecto.
Foto: Francisco Silva Fernandes
Duas fotografias do álbum do Brasil, de finais do século XIX. O álbum pertenceu a meu tio-avô António Guilherme de Barros Pereira de Carvalho (1893-1939) e chegou-me do Brasil setenta anos depois da sua morte pela mão generosa de Maria Amália Fragelli, que o conservou depois do desaparecimento da única descendente directa de António Guilherme, Stella Maria Pereira de Carvalho.
Brasil, finais do séc. XIX
Aninhas, finais do séc XIX
A menina encostada ao mastro pode ser Ana Maria Barros da Costa Morais, prima de António Guilherme e de Guilherme Júnior, meu avô materno, cujo retrato se encontra na página anterior do álbum e aqui.
Leia mais sobre O álbum do Brasil
Outras fotografias do álbum do Brasil nos posts
Lisboa, 1909
A propósito de post recente no blog Restos de Colecção sobre o Banco Burnay aqui, uma foto de Henry Burnay encontrada no espólio de Venâncio Augusto Deslandes, que vemos à direita, de chapéu alto. A fotografia data de 1909, ano da morte de ambos.
Mais sobre Henry Burnay em Associação dos Amigos da Torre do Tombo aqui
Mais sobre Venâncio Augusto Deslandes neste blog aqui e aqui
Fatias de família (Alto Alentejo)
Pão 500 gramas
Açúcar 500 gramas
Ovos 4
Pau de canela q.b.
Canela em pó q.b.
Vinho 1/2 decilitro
Corta-se o pão em fatias e aloura-se um pouco no forno. Dispõem-se numa travessa funda e regam-se com o vinho açucarado a ferver e temperado com o pau de canela.
Quando estiverem molezinhas retiram-se as fatias do molho e escorrem-se. Põe-se ao lume, numa caçarola, o resto do açúcar e um pouco de água até ganhar ponto. Depois vão-se mergulhando as fatias nos ovos batidos, uma a uma, e fritando na calda do açúcar. Estando todas cozinhadas, regam-se com o resto da calda e polvilham-se com canela.
M.A.M. [pseud. colectivo de Maria Adelina Monteiro Grillo e Margarida Futscher Pereira]
in Cozinha do mundo português. Porto: Livr. Tavares Martins, 1962, p. 633
As 1001 receitas deste livro foram coligidas e experimentadas ao longo de muitos anos por Maria Adelina e Joaquim Monteiro Grillo — o poeta Tomaz Kim — e meus pais, Margarida e Vasco Futscher Pereira. A edição, em 1962, deveu-se a Maria Adelina — Nita Monteiro Grillo — cuja dedicação ao projecto o levou a bom porto.
É recordado como o melhor livro de Cozinha Portuguesa no blog Prosimetron aqui e aqui.
Ultimamente tenho abrandado o ritmo de posts, às vezes por falta de tempo para dedicar ao blog e outras vezes por falta de material e de inspiração. Gostaria de ter chegado aos 500 nestes cinco anos mas o meu espólio familiar tem naturalmente limites e, de momento, não tenho novas colecções em mãos. As minhas leituras também se têm prestado menos, nos últimos tempos, à composição de vinhetas politico-literarias.
Serendipity:
Estava eu nesta dificuldade quando José Cutileiro me telefona a propor — muito cerimoniosamente, o que ainda me faz sorrir — alojar a sua crónica “Bloco-Notas” no Retrovisor. Nesta blogosfera recheada de espaços tão apetecíveis, anuncia-me que, of all places, gostava de estrear-se neste cantinho. Terá sido o chamamento de gente como Cinatti, O’Neill, Nemésio ou Garrett?
Preciso de explicar que José Cutileiro é o meu Perfect Reader, o leitor ideal, o leitor a que aspira todo aquele que escreve, o leitor exigente que leu o que escrevemos de fio a pavio, percebeu tudo e gostou do que viu. Neste caso, não só gostou como se deu ao trabalho de redigir e publicar na revista do MNE uma resenha elogiosa de Retrovisor, um Álbum de Família, ultrapassando largamente tudo o que eu poderia esperar em termos de reconhecimento de um trabalho tão circunscrito. Nem sequer nos conhecíamos pessoalmente em 2009, foi o meu irmão que lhe deu o livro.
Desta feita, o meu leitor ideal dá-me a enorme alegria de vir arejar este "cabinet de curiosités", que andava muito precisado, e abrir-lhe as portas a novos leitores, a quem dou desde já as boas vindas.
Stay tuned, o Bloco-Notas de José Cutileiro começa a 11 de Dezembro. Sai à quarta-feira.
Anonyme; Cabinet de curiosités; (fin XVIIe siècle)
Huile sur toile; Florence; Opificio delle Pietre Dure. aqui
Tenho celebrado um ou outro aniversário do blog com um breve balanço e queria tê-lo feito neste quinto aniversário, mas atrasei-me. Quero antes de mais agradecer os comentários deixados no post de 15 de Novembro. As palavras de incentivo de tão ilustres colegas da blogosfera animam-me particularmente. Assinalei a data com um cartoon que divide a blogosfera entre “histórias sobre ninharias que alguém cozinhou, tricotou ou coseu”, “auto-promoção” e “teorias da conspiração”. Está bem visto, em versão mais soft seria o facebook, os blogs pessoais e os blogs políticos.
Em poucas palavras, para quem me visita pela primeira vez, este blog divide-se entre histórias do meu álbum de família (fotos, recordações e curiosidades do espólio familiar), histórias dos álbuns dos outros (fotografias e curiosidades dos espólios de outras famílias) e, last but not least, textos bastante variados de Autores, sobretudo excertos de obras de história, jornalismo, ensaio e alguma literatura.
Os textos que eu própria escrevo (em minoria) tratam normalmente de espólios familiares, álbuns e recordações, enquanto as citações de Autor e os textos doutras pessoas surgem geralmente a propósito da actualidade e/ou do calendário. Quanto às imagens tenho procurado apresentar um máximo de material inédito, inicialmente com base no meu arquivo familiar e, progressivamente, a partir de colecções particulares que parentes e amigos têm posto generosamente à minha disposição.
O blog recebe actualmente em média 50 visitas por dia e poucos comentários (cerca de 300 até hoje em 480 posts). O propósito continua a ser o mesmo: partilhar a minha exploração da fotografia vernacular e reflexões de Autores favoritos, além de contribuir, mesmo que modestamente, para o universo dos conteúdos em português, com imagens, perfis e textos algo esquecidos*.
Queridos Leitores e visitantes em geral, continuarei a esforçar-me por merecer a vossa visita.
* Notas:
Cabinet de curiosités 1 in English
Neste contexto veja o blog Restos de Colecção aqui e o projecto Conteúdos em Português aqui
Neste blog, um texto sobre a Fotografia Vernacular aqui , um perfil aqui e um texto de Autor ilustrado com uma foto aqui
Vidal e Hugo Navarro de Andrade Belmarço (c. 1900)
outra foto dos irmãos aqui
interessante apontamento sobre Vidal Belmarço no blog Promontório da Memória aqui
Casa Belmarço aqui