Quarta-feira, 17 de Julho de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

Samora Machel

Samora Machel     -  foto aqui

 

 

José Cutileiro

 

Correcção política

 

1982. Recepção do Presidente da República ao corpo diplomático em Maputo. À entrada, Samora Machel saúda os embaixadores e outros chefes de missão que o vão cumprimentando. Chega a minha vez:

«Senhor Presidente… »                                                                                                         

«Olá, patrão» e, olhando pedagogicamente para a cara atónita do embaixador da Alemanha Federal, logo atrás de mim na bicha – nessa altura havia duas Alemanhas, a Federal com capital em Bona, membro da OTAN, expiando convicta a pena dos seus crimes de guerra e a Democrática, com capital em Berlim, membro do Pacto de Varsóvia, convencida de que a conversão ao comunismo a limpara dos ditos crimes (e, de caminho, dirigindo e executando toda a intelligence da República Popular de Moçambique, incluindo as escutas a nossas casas) - social-democrata dedicado à cooperação com o Terceiro Mundo, acrescentou: «Ele era o meu patrão…»

 

E Samora Machel era assim. Disse-me um dia, a propósito dos cooperantes que agora vinham da URSS, dos países de Leste, da Escandinávia, dos Estados Unidos: «Vocês tratavam-nos como pretos. Estes gajos tratam-nos como macacos». E, doutra vez, que Agostinho Neto, então presidente de Angola, não era um preto – era um branco pintado de preto, porque não sabia rir-se. Eu conhecera, anos antes e muito ao de leve, o Dr. Agostinho Neto à saída do Hospital de Santa Marta em Lisboa, onde ele trabalhava salvo erro com o Dr. Carlos George: de paletó e colete, camisa branca e gravata às listas, parecia de facto doutor tão sizudo quanto os outros. O Natas, de sua graça António Vaz Pereira, meu predecessor em Maputo, falou-me de outro momento memorável que lhe fora contado por Chissano, então ministro dos negócios estrangeiros, que a ele assistira. Samora, fardado de camuflado, como nessa altura fazia sempre em tais ocasiões, ia receber as cartas credenciais do embaixador do Lesoto. Quando ao fundo da sala a cortina foi corrida e o embaixador, gordo e baixo, de casaca preta coberta de condecorações, apareceu e começou a caminhar na direcção de Machel, este, sem qualquer expressão no rosto, sem mexer a cabeça nem olhar para ele, disse a Chissano, perfilado a seu lado: «Ai o preto…»

 

Lembrei-me hoje de Machel porque, ouvido nessa altura, já era muitas vezes uma lufada de ar fresco, e recordado agora, o é ainda mais nestes tempos de correcção política – tão excessiva que até leva a absurdos contrários como quando Antonio Tabucchi, em Princeton, perguntou a minha opinião sobre assinar papel que lhe fora passado por Susan Sontag a pedir desculpa aos pretos americanos pela escravatura que trouxera de África os seus antepassados e eu lhe respondi que talvez fizessem melhor em pedir desculpa aos pretos da África ocidental por os seus antepassados não terem sido trazidos também.

 

NB Nada a ver com a Dra Fátima Bonifácio que, embora culta e informada, esquece pelo menos o Preste João e Desmond Tutu.

 

 

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Quarta-feira, 20 de Março de 2019

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

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Favoritas do Sóba, Angola

 

José Cutileiro

 

 

O passado e o presente

 

Desabafo de leitor amigo: «Foi quando se perdeu o respeito pelos mais velhos que começou a dégringolade… afirmo eu agora que sou velho». A leitora terá o seu exemplo preferido desta evidência; eu tenho o meu, não da minha própria experiência de vida mas de bisbilhotices registadas em estudos que alguns querem fazer passar por ciência, aos quais me dediquei quando era novo.

 

Em quase toda a África ao sul do Sara, antes da chegada dos colonos europeus, os velhos mandavam em tudo quanto lhes coubesse na hierarquia da tribo: ficavam com o melhor das colheitas, casavam com as pequenas mais bonitas, dirimiam pendências internas, comandavam os seus contra o mundo. Os brancos trouxeram  muitas mudanças, por exemplo, a autoridade da língua do colonizador (ainda hoje, em Madagáscar, pastores dão ordens às vacas em francês), sendo a mais importante, nisto de velhos e novos, o pagamento de trabalho a dinheiro. O trabalho era e foi por muitos anos, agrícola e mineiro, privilegiando homens novos e robustos, enquanto o dinheiro dos brancos se tornara na única moeda de troca corrente e fiável. De repente, homens novos de origem modesta podiam pagar dotes acima das posses dos velhos mais distintos da tribo. A ordem antiga resistiu simbolicamente, aqui e além (em recantos bucólicos, há reis com trono mas sem poder), mas o grosso das coisas passou a ser regido pela ordem nova donde partiram as élites dos novos países independentes. Os velhos deixaram de constituir uma espécie de Senado da sua terra; sobrevivem esquecidos à mercê da caridade dos novos. Muitos pensarão, como o meu amigo, que a dégringolade começou quando lhes perderam o respeito.

 

Entendo-os mas não simpatizo com a nostalgia. O pitoresco da ordem antiga tinha incómodos. Aquí há 75 anos o meu chorado amigo Carlos Manuel fora a tourada em Santarém com o Fernando e o António Mascarenhas e o Conde da Torre, pai deles. Carlos Manuel deu a certa altura opinião sobre a lide; o Conde, sentado ao lado dele, discordou e deu-lhe uma estalada. Carlos Manuel levantou-se e saiu, no silêncio embaraçado da bancada. Ao fim do dia, no bar do hotel (nesse tempo o mundo era maior e quem viesse aos touros a Santarém ficava a dormir lá) o Fernando e o António foram ter com o Carlos Manuel: «O Pai está incomodadíssimo com o que se passou esta tarde. Vai lá pedir-lhe desculpa».

 

Tudo isto se passava nesta terra de costumes brandos onde Álvaro Cunhal se doutorou na Faculdade de Direito de Lisboa, arguido por Marcello Caetano, indo dormir à prisão e lá ficando depois de doutor e onde o tenente-coronel Majolinha, na Flandres durante a Grande Guerra, sempre que fazia disparar morteiro contra os alemães, rezava para não matar ninguém. Havia muito pior na Cristandade. O Marquês de Custine conta que a sociedade russa do seu tempo estava dividida em 14 classes, podendo os de cada uma delas bater nos das classes inferiores. Isto bem antes do bolchevismo.

 

A dégringolade fez bem a muita gente.

 

 

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Sexta-feira, 20 de Julho de 2018

Evora-Africa

Até 25 de Agosto de 2018 em Évora

O programa completo pode ser consultado em http://evorafrica.pt/

 

 Chéri Samba

Chéri Samba

© http://www.magnin-a.com

 

A exposição de arte contemporânea "African Passions", no Palácio Cadaval, com curadoria de André Magnin e Philippe Boutté - a primeira que realiza em Portugal - inclui obras de artistas plásticos e fotógrafos do Congo, Costa do Marfim, Moçambique, Mali, Senegal, Benim, África do Sul e Madagáscar.

 

O festival "Evora Africa", que se prolonga até 25 de Agosto, apresenta um diversificado programa de exposições, concertos, performances, conferências e DJ'S e reúne trinta artistas plásticos contemporâneos, músicos e performers africanos. 

 

 

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Omar Victor Diop, Série Diáspora

© http://www.magnin-a.com

 

Para além do Palácio Cadaval, o Templo Romano, o Cromeleque dos Almendres e a Biblioteca Pública de Évora serão palco de espetáculos da Orquestra Ballaké Sissoko, Costa Neto, Irmãos Makossa, Rita Só, Johnny Cooltrane, Mbye Ebrime, DJ Rycardo, Companhia Xindiro e os jovens dançarinos, Celeste Mariposa, Bambaram, Bassekou Kouyate, Selma Uamusse, Bubacar Djabaté, Áfrika Aki, The Zaouli de Manfla, Miroca Paris, DJ Ibaaku, Sara Tavares, Congo Stars de Vibration, Dj Lucky, Lady G Brown.

 

 

Malick Sidibé | Courtesy Galerie MAGNIN-A, Paris

 Malick Sidibé, Nuit de Noël (Happy Club), 1963

© http://www.magnin-a.com

 

 

 

Centro de Arte Quetzal, Vidigueira

 

No contexto do festival, o Centro de Arte Quetzal apresenta uma selecção de trabalhos dos artistas sul-africanos Marlene Dumas, Moshekwa Langa e William Kentridge, incluindo a série de curtas-metragens de animação (Dez desenhos para projecção 1989-2011), e um mural tipográfico da artista egípcia e libanesa Bahia Shebab, com o título Mil Vezes Não.

 

W Kentrridge

William Kentridge Levitation 1996

 

 

 

Marlene Dumas

Marlene Dumas Cain+Abel (Twins) 1989

 

 

 

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Quarta-feira, 4 de Julho de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

cova da Moura

Associação Cultural Moinho da Juventude, Cova da Moura

© Rui Palha 2014

 

 

 

José Cutileiro

 

 

A Amadora é um PALOP

 

 

 

A minha sobrinha predilecta, que fala alemão e russo, andou por essa Europa com Erasmo de Roterdão e, após tese de direito brilhante, é advogada em Lisboa, está indignada por haver tanta gente com “interesse eleitoral em berrar que querem pôr na rua os imigrantes todos já”. Sobretudo em países que não têm imigrantes e até mandam eles próprios emigrantes para partes menos intolerantes do Continente.

 

O que há agora é mau e anima em cada um de nós sentimentos que podem facilmente passar da indignação para a ira - e a ira é má conselheira, se não se quiser fazer mal. ‘A dor humana busca amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar’, escreveu Cesário Verde e hoje à roda dá-se pelas ditas marés, embora me pareça não serem desta vez causadas por dor mas por raiva. Que há mal dentro de cada um de nós toda a gente sabe; que se batam tambores para o fazer sair à rua a dar ares da sua graça, não acontece sempre e na Europa, desde as convulsões que acompanharam o fim da Segunda Guerra Mundial – na Alemanha e á volta dela expulsaram-se milhões de pessoas, último sobressalto da grande matança – tínhamos perdido o hábito e o gosto disso, salvo em lugares precisos – o País Basco espanhol; a Irlanda do Norte – especializados em horror macabro. (Estrada à saída de Belfast, tanta chuva que os cantoneiros se abrigam numa tenda. A lona abre-se, homem encapuçado, a metralhadora engatilhada, pergunta: “Católicos ou protestantes?” Aconteceu).

 

Ódios fraternos adormecidos, partiu-se para o que os franceses gostam de chamar o ódio ao outro – e nada parece abater agora. Comovemo-nos, há três anos, com cadáver de menino turco na praia? Mas pouco ou nada fazemos para impedir que homens, mulheres e crianças continuem a morrer no Mediterrâneo. Na Alemanha, a maré de fel quer dar cabo do  extraordinário exemplo de recuperação cívica e moral de um povo (o dos alemães ocidentais). Nos ‘países de Visogrado’ – Polónia, Hungria, Eslováquia, República Checa – o ódio ao outro, brutal (e ridículo, porque não há ‘outro’), torpedeia tentativa de instalação de democracia e decência. Ninguém quer o comunismo de volta mas a solidariedade humana, maltratada durante décadas, não recupera. Quanto ao nazismo: ao ver a Baviera, rica e sem imigrantes, querer tanto mal ao ‘outro’ fica um homem perplexo.

 

Volto à minha sobrinha, na Amadora. “Tenho contactado muito com questões de imigração no trabalho. E tenho um respeito enorme pela maioria destas pessoas. Ser imigrante legal não é fácil e envolve mais papelada e meses de espera com a vida pendurada do que qualquer ser humano merece (…) Ser imigrante ilegal é não existir. Tentar passar a legal depois de ter começado como ilegal é um calvário (…) Enfim também não digo que temos de aceitar toda a gente só porque temos de aceitar mas esta ‘nova’ Europa não é coisa em que me reveja.

 

Se calhar é porque, como me dizia no outro dia um taxista ‘a Amadora é um PALOP’ e eu afinal nunca vivi na Europa”.

 

 

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Quarta-feira, 31 de Janeiro de 2018

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

APBLO_1661

 Nuer

 

 

José Cutileiro

 

 

 

Variações sobre o Bey de Tunis

 

 

 

30 de Janeiro

 

É terça-feira, já passou o meio do dia e estou a escrever em Notes taken at “Oitavos”, trazido do hotel para o avião que me leva de volta à chuva e ao escuro de Bruxelas, depois de três dias de sol e de luz no Guincho, após ter feito esta manhã keynote speech no Instituto de Defesa Nacional, abrindo colóquio sobre as relações transatlânticas de segurança, que continuava depois da minha saída, com Ricardo Alexandre a moderar painel dedicado às relações políticas entre europeus e norte americanos. Saí antes do fim, com bastante pena minha porque a conversa entre Carlos Gaspar, Vasco Rato e um rapaz americano da Brookings Institution era interessante e a regência (como de um maestro) de Ricardo dava gosto: estimulava os oradores a levarem água aos seus moinhos, o que eles faziam com eloquência, mas de maneira que tudo passasse sempre por fim pelo moinho do moderador. Trabalho de artista, sempre bom de ver. Peter Carrington, quando era Secretário-Geral da OTAN (vulgo NATO), fazia-o de tal maneira bem que um dia eu disse ao António Vaz Pereira, nosso embaixador lá, que, em vez de receber ordenado, deveria ser ele a pagar pelo privilégio de assistir a tais espectáculos. Pese a Carrington (e a Ricardo) porém, o mais extraordinário desempenho a que tive a sorte de assistir foi de Giulio Andreotti quando era ministro dos negócios estrangeiros de Itália numa reunião do Conselho da Europa em Estrasburgo, falando em italiano e chegando por isso a quase todos nós à roda da mesa através de intérpretes (no meu caso, para inglês; eu fora lá com Eduardo Azevedo Soares, que era secretário de estado). Andreotti era de serenidade equânime; nunca levantava a voz; fazia com os dedos pequenos gestos de chefe de orquestra e despachou agenda longa em tempo curto, a contento de todos. Quando ao fim da tarde deixamos Estrasburgo o pequeno avião dele estava parado perto do nosso. Italianos da diáspora pertencentes a sua clientela política tinham vindo saudá-lo e vi um deles cair sobre um joelho no tarmac e beijar-lhe a mão.

 

Devo mandar o texto do Bloco-Notas à Vera até ao fim do dia de terça-feira para ela ter tempo de encontrar ilustração que nos agrade aos dois e pôr tudo no ar (no éter? Na web?) quarta-feira. Até hoje nunca falhei mas tenho sempre medo. Telefonei ontem, segunda–feira, à Vera para lhe dizer que desta vez só podia garantir o texto no computador dela quarta-feira à hora de almoço. Ela tem sempre imensa paciência: riu-se e disse que não tinha importância.

 

31 de Janeiro

 

Já é quase hora de almoço em Lisboa, o texto ainda não está pronto e o céu aqui em vez de ser azul como no Guincho é em fifty shades of grey. Os Nuer do Sudão do Sul que vivem da pastorícia têm 50 palavras para dizer boi, conforme as características do bicho. Porque é que os belgas não fazem o mesmo com cinzento? De maneira a percebermos logo se vai chover muito, pouco ou nada? Ou se vai nevar? Ou daqui a quantos meses fará sol?

 

 

 

 

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Quarta-feira, 25 de Outubro de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

pinhal de Leiria

Pinhal de Leiria, 2017

 

 

José Cutileiro

 

 

 

O mundo real

 

 

François Mauriac, católico apostólico romano da região de Bordéus e prémio Nobel da literatura em 1947, escreveu que não conhecia a alma dos criminosos mas conhecia a das pessoas honestas e era um horror. Menos argutas, as nossas elites - eu e tu, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère… (et, de nos jours, nos soeurs aussi) - estão a descobrir agora que aquilo a que gostam de chamar o país real – o Portugal profundo, escuridão misteriosa escondendo grande diamante por lapidar – é, afinal de contas, tão mau ou pior do que elas próprias. Contentará videirinhos saberem-se dotados de um olho em terra de cegos mas vai deprimir mais o resto de todos nós. A calcinação do Pinhal de Leiria foi a pedra de fecho da abóboda sonâmbula de incúria em que se fora transformando o Estado português.

 

Acabada a ficção “do Minho a Timor” (ainda ouvi gente dizer isso a estrangeiros, sem pestanejar) veio o grande desafio europeu: desde que o Dr. Soares bateu à porta de Bruxelas até nos deixarem entrar passaram dez anos, durante os quais se trabalhou. Uma vez dentro, porém, as coisas começaram a mudar. O Projecto Europeu, onde sempre quisemos estar “no pelotão da frente” (em Portugal a única literatura com leitores é a desportiva) passou a ser uma espécie de renda, ou de lotaria onde não havia nunca prémios astronómicos mas se ia ganhando sempre um poucochinho. Até que chegou a austeridade – “Os pobres que paguem a crise!” – e alguém se lembrou do cavalo do inglês que o dono treinava para viver sem comer e quando estava quase, quase treinado, morreu. Qual o quê! Os povos não são cavalos; entre troikas e autocensura íamos cantando e rindo - até que, de repente, duas girândolas de fogos deram connosco em terra.

 

Ninguém nos estenderá a mão num mundo cheio de outros disparates. Por exemplo, há dias a Organização Mundial da Saúde nomeou seu “Embaixador” Robert Mugabe, ditador que com mão de ferro transformou um dos países mais ricos de África num dos mais pobres. O escândalo foi geral e em 24 horas a OMC tirou-lhe o título. Porque é que o distinguiram? A razão é simples e percebi-a a 25 de Junho de 1982, em Nairobi, numa cimeira da OUA onde fora de observador. Moçambique fazia 7 anos; eu, embaixador em Maputo, quis felicitar Samora Machel que chegava com a comitiva à sala das reuniões quando de outro corredor apareceram Omar Bongo, presidente do Gabão e a sua gente. Estávamos na Guerra Fria: para esquerdistas europeus Bongo era um lacaio do capitalismo; para europeus de direita Machel era um perigoso marxista-leninista. “Machel!”; “Bongo!” gritaram e caíram nos braços um do outro às gargalhadas. Pertenciam ambos à irmandade de escravos forros que agora mandava em África. Capitalismo e comunismo eram problemas nossos, não deles.

 

Pela primeira vez o director da OMS vem de África (ex-ministro dos estrangeiros etíope); para ele Mugabe deve ser ainda, sobretudo e para sempre, um dos grandes heróis das guerras de independência africanas.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 20 de Abril de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

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 Sam Nujoma

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

 

Windhoek

 

 

 

Nome bem posto: o vento não amaina na capital da Namíbia onde em 1990, depois de muitos anos de luta anti-colonial, tomou posse o primeiro presidente, Sam Nujoma. Outros chefes de movimentos independentistas de colónias britânicas – Julius Nyerere da Tanzânia (traduziu The Merchant of Venice para suaíli – nunca lhe perguntei se, nessa versão, Shylock em vez de ser judeu era indiano – inventou uma utopia socialista africana e arruinou o país sem derramamento de sangue) ou Oliver Tambo da África do Sul que durante a prisão de Mandela dirigiu o A.N.C. mantendo-o amarrado a visão marxista revolucionária, ou Robert Mugabe do Zimbabué, católico da libertação africano que de entrada seguiu o conselho do moçambicano Machel e não tocou nos bens dos brancos e depois fez marcha atrás transformando a agricultura mais rica de África numa miséria escandalosa, ou outros ainda – durante os anos da luta tratavam o camarada Nujoma um pouco por cima da burra por não o acharem tão inteligente e tão culto quanto eles eram.

 

Independências africanas foram vindo, Pretória percebeu que tinha de acabar com o apartheid. Antes livrou-se da Namíbia, antiga colónia alemã cuja ocupação as Nações Unidas haviam condenado. Depois de muitas peripécias, de Nova Iorque veio o finlandês Matti Ahtisaari, por Pretoria estava o Administrador-Geral Louis Pienaar, do mato e do exílio vieram lugares-tenentes de Nujoma. Entre o fim das conversações e a independência visitei os protagonistas. Pienar e Ahtisari contaram-me a mesma história, o primeiro como cangalheiro a ler-me uma certidão de óbito e o segundo como parteira que me narrasse um nascimento. Esperando a coroação, Nujoma, de fato de safari e sandálias, estava à vontade na moradia onde me recebeu, mobilada tão à pressa que vaso de planta grande ao lado dos sofás novos tinha ainda a etiqueta do preço: 8 rands e 99.

 

Num jantar em Joanesburgo meses depois, jornalista contou-me ter amigo dentista de que agricultor rico da Namíbia era cliente. (A vasta maioria dos grandes proprietários rurais da Namíbia são afrikaners). Homem de uns 70 anos estivera no consultório com o filho uma semana antes: tudo ia pelo melhor, sem quaisquer desmandos ou empecilhos à sua actividade que a independência tivesse trazido. A certa altura quisera referir-se ao Presidente, não se lembrara do nome e perguntara ao filho: “Como é que se chama o cafre que trata da política?”

 

Na sua simplicidade Nujoma percebera uma coisa enorme que escapara à finura dos outros (e a muitos sociais democratas europeus): com o fim do comunismo acabara a razão de ser de muitas práticas social-democratas. Que o capitalismo tenha de se modificar e depressa, não há a menor dúvida; que se insista para o fazer numa espécie de comunismo laite não tem pés nem cabeça. Aumenta o mau viver, desacredita a classe política, desanima os empresários, enxota os investidores: pior do que a austeridade, atrasa o futuro. Quando é que a esquerda europeia tomará juízo?

 

 

 

 

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Domingo, 15 de Novembro de 2015

Sete anos

 

 

 

Tromp-l'oeil_Still-Life_1664_Hoogstraeten.jpg

 Samuel van Hoogstraten (1664)

 

 

Queridos Leitores,

 

o blog faz hoje sete anos, os últimos dois com a presença semanal do Bloco-Notas de José Cutileiro. São já mais de cem crónicas com o respectivo boneco, como ele diz. São textos que me orgulho de publicar e estou-lhe muitíssimo grata por isso. Grata ainda pela ajuda que tem dado a manter vivo este espaço e por me deixar exercer funções de iconógrafa – mot savant que ouvi há uns anos numa conferência no Instituto Francês e a que logo me identifiquei. 

 

Este ano o Retrovisor recebeu outras contribuições valiosas: as fotografias de João D’Korth, cerca de 300 imagens dos anos 30 e 40, que Henrique D’Korth Brandão pôs à minha disposição e ajudou a digitalizar, e a série My Years in Angola (1950-1970) graças à colaboração de Elizabeth Davies. Agradeço ainda a Jorge Colaço, amigo e colaborador deste blog desde o princípio. 

 

Ao longo destes anos tenho acompanhado com interesse a expansão dos conteúdos em português na rede, muito graças à blogosfera, e detectado lacunas também. Ainda há personalidades do século XX em Portugal com pouca ou nenhuma presença na net. A fotografia vernacular começa a despertar mais interesse – neste momento estão patentes em Lisboa fotografias dos álbuns da Raínha D. Amélia e dos Retornados das ex-colónias – mas quanta coisa não se terá já perdido ou continua a desbotar no fundo duma gaveta? 

 

Há pouco tempo, para ilustrar um artigo sobre o poeta Tomaz Kim, o Jornal de Letras usou uma fotografia deste blog (muito bonita apesar de um pouco estragada). No verão passado o jornal Observador usou imagens que tenho coleccionado das praias de antigamente, algumas das quais eu própria descobri na rede. As fotografias de João D’Korth da Exposição do Mundo Português contêm surpresas apesar de tratar-se de um evento tão amplamente registado. Espero continuar a mostrar aqui curiosidades do mesmo género, que no entanto não vêm ter comigo ao ritmo a que eu desejaria.

 

Aos leitores que visitam pela primeira vez, ou que do Retrovisor conhecem pouco mais que o Bloco-Notas de José Cutileiro, convido à leitura de anteriores posts de aniversário.

 

Muito obrigada pela visita!

 

 

*

 

 

Álbum de Família (2008)

 

Queridos Leitores, (2011)

 

Cabinet de Curiosités (2011)

 

Na blogosfera desde 2008 (2012)

 

Cabinet de curiosités 2 (2013)

 

Tags (2013)

 

 

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Domingo, 1 de Novembro de 2015

La Blessure (Doclisboa 2015)

 

 

La Blessure 3.jpg

 La Blessure (2004 França/Bélgica)

de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval

 

 

O melhor filme que vi nesta edição do Doclisboa é uma recriação notável das condições de acolhimento e de vida de imigrantes africanos em França.

Um texto sobre o filme e mais fotografias na revista Courte-Focale aqui.

 

A crítica de Jacques Mandebaum no Le Monde aqui

A text in English here.

 

 

 

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Quarta-feira, 21 de Outubro de 2015

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Sala de Actos U. Évora.jpg

 

Sala de Actos do Colégio do Espírito Santo, Évora

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

Aldeia da roupa branca

 

 

 

Amiga do coração, voltando de sessão solene universitária, passada algures em sala bonita na província deste maravilhoso país que tão generosamente me acolhe no seu seio – assim escreveria o meu chorado A.B. Kotter, da Várzea de Colares - saíra dela tão bem impressionada que me disse “[H]oje senti-me muito feliz e orgulhosa de Portugal”.

 

Conto isto aqui à leitora metendo A.B. Kotter pelo meio porque há muitas maneiras de se ser do país de onde se é e há também diferenças marcadas de país para país. Num dos Diários do Marcello Mathias, não me lembro qual deles e é de memória que arrisco, Marcello está de visita a uma catedral inglesa (Salisbury?) quando o espaço da igreja e inscrições várias nas suas paredes, algumas sobre mortos pela Pátria em guerras contra estrangeiros, o levam de repente a perceber que ser inglês is a full time job.

 

Ser português nem sempre parece tal. Nós somos menos intensos; dá-nos a coisa nalguns dias, noutros não tanto. Por exemplo, na derrocada de honra e de bom senso que, desde a noite do passado dia 4, no rescaldo das eleições legislativas, alguns insistem em nos apresentar como construção do futuro – de um futuro cheio de amanhãs que cantam – é só em oásis de tempo ou de espaço que muita gente portuguesa se poderá agora sentir bem com Portugal.

 

O avesso – como na roupa – da apregoada brandura dos nossos costumes, refractária a guerras civis, revoluções e motins por tudo e por nada, que, sem alarde ou vanglória, cometeu o maior feito histórico do país desde 25 de Abril de 1974 – a absorção pacífica de centenas de milhares de retornados de África, muitos dos quais nunca cá tinham posto pé - revela-se no bom modo com que o país sustentou quatro anos de austeridade sem tugir nem mugir. É o reverso da medalha.

 

Ora longos períodos de apatia cívica definham a fibra do respeito por si próprio, da mesma maneira que, mutatis mutandis, longos períodos de imobilidade física vão definhando as fibras do tecido muscular e chegam, por vezes, a fazer desaparecer os músculos. Assim enfraquecida, incapaz de perceber bem quem é, atordoada pelo rumor da vida a dar socos na porta cada vez mais ensurdecedor de há século e meio para cá, desde que telégrafo, e depois telefone, telefonia, televisão, internet, redes sociais e o mais que virá, se verá, ouvirá e sentirá, mudaram de alto abaixo a nossa residência na Terra – nos foram dilacerando da tribo sem nos armar em cidadãos do mundo – a gente tenta agarrar-se à aldeia, enterrar a cabeça como as avestruzes. Na aldeia de cada um às vezes tudo parece possível: o novo primeiro ministro do Canadá vai deixar de bombardear o Estado Islâmico; os trabalhistas britânicos escolheram Corbyn para chefe; em Portugal uma suposta ‘esquerda unida’, apesar de diferenças de crença que tornam tal união impossível, entende que o povo a quer para governo, apesar dos resultados do voto de 4 de Outubro não indicarem isso de todo. Terá a nossa aldeia perdido a vergonha?

 

 

 

 

 

publicado por VF às 17:40
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