O teor de terilene
Quando eu andava na escola, o 25 de Abril era a 28 de Maio. Na escola e por aí fora, quase até aos meus quarenta anos; depois mudou. Cada regime celebra o golpe militar que levaria à sua instalação: o Estado Novo festejava a revolta de Braga em 1926, chefiada pelo Marechal Gomes da Costa, que pouco tempo durou na chefia; a Democracia festeja a revolução dos cravos, com o General António de Spínola como figura de proa que também depressa se foi. Dos quatro regimes que tivemos no Século XX - dez anos de Monarquia, dezasseis de primeira República, quarenta e oito de Estado Novo e agora a Democracia, toda foleira pelo Século XXI a dentro, deverá vir a ser esta a mais duradoura, quiçá mesmo muito mais duradoura, se o país vier a juntar mais uns mil anos àqueles que já viveu, quase todos com Rei (ou Rainha) absoluto ou constitucional.
«Os portugueses hão-de ser sempre os mesmos porque não há outros» dizia o primeiro Duque de Palmela, segundo me contou há anos o Vasco Pulido Valente, e gosto de o lembrar aqui porque eu não sou historiador e, quanto ao passado, prefiro fiar-me no que eles me digam a pôr-me a armar em carapau de corrida ou a armar ao pingarelho (o sargento-criptógrafo Pina dizia que não era bem a mesma coisa, eu acho, pelo contrário, que é exactamente a mesma coisa e o meu chorado Vasco Graça Moura, Deus lhe tenha a alma em descanço, dava-me razão e considerava o sargento – que ainda por cima era a favor do novo acordo ortográfico – um imbecil: o Vasco não tinha papas na língua). Mas se somos os mesmos há-de ser por genética e imitação de que nem sequer nos demos conta, que geração após geração, repetem-se momentos – «A beber capilé, fica igual ao bisavô que eu ainda conheci» - e a propósito de capilé vem-me à ideia outro morto. Eduardo Calvet de Magalhães, que Deus tenha, irmão do pedagogo e do diplomata, tão esperto quanto os ilustres manos mas mais divertidos, inventou a publicidade moderna em Portugal e, numa altura em que Salazar não deixava entrar cá a Coca Cola, dizia ter inventado também o refrigerante português ideal – capilé gazeificado – tendo já slogan para ele:«A bebida que lhe corre nas veias».
Talvez haja em todos nós um ar de Sul da Europa, de Norte de África sem turbantes. Quando vivia em Princeton, vim a Coimbra, convidado ainda pelo Professor Ferrer Correia, a seminário sobre a Europa. Passava-se num antigo convento ao pé do rio; quando chegou a minha vez, passei para a mesa e me voltei para o público, poucos estudantes com capas, mas muita gente nova, e também velhas e velhos, achei-me de repente no Kosovo, onde eu ia muito nessa altura pelas Nações Unidas: as peles, os cabelos, as roupas, as expressões de espectativa resignada, os olhares. Senti-me quase em Pristina, sabendo que estava em Coimbra.
Contei isto dias depois a amigo da idade do meu filho, muito viajado e homem de bom conselho que me disse, meio espantado com o meu espanto:
«É o teor de terilene, Senhor Embaixador.»