Camilo e Eça
Polémicas do burgo
A Vera gostou muito do artigo do Henrique Raposo sobre o Vasco Pulido Valente no Expresso, “duro mas certeiro”; disse-me que eu próprio saí “muito bem na fotografia” e perguntou-me o que achava. Respondo-lhe neste seu blog “Retrovisor”, onde há mais de quatro anos me dá asilo político.
A primeira coisa que me ocorre é dar parabéns ao Vasco. A nossa relação para-fraternal - sendo ele irmão mais novo que de vez em quando se zanga, sem eu perceber porquê – vem muito detrás e logo no começo Vasco ganhou em mim crédito tal que, passadas mais de seis décadas, não se esgotou ainda. Aos catorze anos e baixinho – deitou corpo logo a seguir – levantou os olhos para o pai, engenheiro erudito (explicou-me que os romanos faziam a barba com sílex muito afiado) e disse-lhe: “Á pai, se eu tivesse a tua idade sabendo o que eu sei…” Toda a sua vida tem sido uma luta para estar á altura dessa espécie de promessa. Acho alguns dos muitíssimos artigos bons que publicou e, pelo menos, um dos seus livros, “O Poder e o Povo” (sobre a revolução republicana), peças de antologia. Que ensaísta competente e brilhante lhe dê tanta importância mesmo discordando, central e convincentemente, da sua maneira de olhar para nós, portugueses, faz jus ao trabalho de uma vida.
E, por fim, assunto mais pessoal, devo-lhe ter encontrado A.B. Kotter. Quando se preparava o diário “A Tarde”, Vasco disse a Victor Cunha Rego que se eu lá escrevesse, ele não escreveria e o Victor recebeu de braços abertos o inglês da Várzea de Colares.
A segunda coisa que me ocorre é dar parabéns ao Henrique Raposo. Também gostei muito do ensaio e lembrei-me da resposta intrigada de Mário Soares, recém-eleito Presidente, quando lhe perguntei como era Cavaco Silva, que eu não conhecia. “Não sei. Não pertence à burguesia urbana, como nós. Vai à televisão dizer que não mente!”. Por também não vir da burguesia urbana - nem do Alentejo da mó-de-cima - o olhar de Henrique Raposo vê diferente e foi diferentemente educado, até pelo próprio e pelas suas escolhas filosóficas (sem a mitologia do PC, não houve Santa Catarina Eufémia que o desencaminhasse). Sente melhor do que outros a diferença entre os doutores e o povo mas também o que todos têm em comum. (No fim dos anos 40 do século XX menina inglesa de 12 anos que viera visitar primas por essa idade filhas de lavrador rico de Reguengos, desatou a chorar numa aldeia do concelho porque nunca tinha visto gente tão pobre). A falta metódica de paciência de Henrique Raposo para o que chama o snobismo do Vasco, tratando os seus por indígenas, ajuda a perceber o país que somos. E acerta em cheio no papel de Eça de Queiroz no amolecimento das nossas elites. O velho Carlos Martins Pereira, também de Reguengos e também rico, preferia Camilo e dizia que Eça era “um janota do Porto”. Terá porventura tido razão.
Quanto a A. B. Kotter, tinha aprendido muito sobre Portugal em conversas com Jorge Dias. (Falavam sempre em alemão um com o outro).