a cabeça de Danton
Os doutores e o povo
Em 1778, o começo do preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, “Nós o Povo”, não incluía nem índios, nem pretos, nem indigentes, nem mulheres, só homens brancos desafogados (muitos deles, se fossem portugueses de hoje, seriam doutores). Em 1789 chegou a Revolução Francesa: Ah ça ira, ça ira, ça ira,/Les aristocrates à la lanterne/ Ah ça ira, ça ira, ça ira,/Les aristocrates on les pendra! (mas o Dr.Guillotin meteu-se de permeio, passou-se a decapitar e não a enforcar, o método manteve-se depois do próprio Guillotin ser guilhotinado e a invenção só deixou de ser usada quando a pena de morte foi extinta em França em 1982). Mais doutor que Robespierre não havia, Danton fora um grande barrista, Marat era médico. De entrada, cortaram-se cabeças a alguns fidalgos, mas o entusiasmo depressa abrandou. Essa revolução, toda a gente dizia, fora burguesa. Em 1917 veio a Revolução russa: os alemães do Kaiser (que detestava o primo Romanoff) convenceram Lenine a vir da Suíça e meteram-no em comboio selado donde só saiu na Estação da Finlândia, em S. Petersburgo, para tirar a Rússia da guerra e fazer a revolução bolchevique. Lenin era doutoríssimo, Trotsky também; Estaline não - mas fora seminarista. Depois de anos de saneamentos mortíferos e de gulag chegou a meritocracia partidária do tempo de Brejnev, quando os aparachiques deixaram de se matar uns aos outros e passaram a corromper-se uns aos outros. Opressão e subserviência dão sempre má mistura. A União Soviética colapsou ao fim de 70 anos de incompetências acumuladas que deixaram o que sobrou dela exausto até hoje.
E o poder sempre nas mãos de doutores, que experiências com outros deram resultados piores. (Tal o aguadeiro ajudado pelos ingleses para derrubar o rei Amanulah, modernizador do Afeganistão que, há quase um século, mandara tirar o véu às mulheres, se correspondia com Lenine e Mustafah Kemal e acabou exilado em Roma – enquanto em Cabul o aguadeiro mandou queimar todos os livros que não fossem o Corão porque ou diziam o que vinha no Corão e eram supérfluos, ou não diziam e eram malditos. Durou pouco). Mao, Nehru, Pol Pot, Lee Kuan Yew de Singapura, foram doutores – Kemal Attaturk, um doutor fardado. Portugal não escapou à maré: Afonso Costa, António José de Almeida, Sidónio Pais, António de Oliveira Salazar, Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e os de agora (salvo Jerónimo de Sousa).
A prática é sensata: mais vale ser governado por gente que saiba alguma coisa do que por gente ignorante e contente de o ser e hoje as melhores garantias de saber são universidades. Mas Facebook e quejandos dão vantagens inéditas à ignorância. O não britânico à Europa e a eleição de Donald Trump são disso exemplos assustadores - e a procissão ainda vai no adro. Nestas coisas, contra o que julgam alguns optimistas, não há progresso ascendente garantido; iremos por aí abaixo de escantilhão antes de começarmos a trepar outra vez pela encosta acima.