Quarta-feira, 14 de Junho de 2017

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

saint-John Perse

 Saint-John Perse

José Cutileiro

 

 

  

Ir ver o Sr. Terry

 

 

 

Há cinco anos, depois de eu me esquecer às vezes de coisas de que costumava lembrar-me sempre, minha mulher sugeriu que eu deveria ir consultar um técnico, especialista que me examinasse e pudesse verificar se eu mostrava sintomas de Alzheimer.

 

“Pagar e morrer, o mais tarde que possa ser!” afirmava, didático, milionário meu conhecido que, a meio da assinatura de um cheque, depois da caneta ter já traçado parte do gatafunho, parava uma fracção de segundo, como se a mão lhe doesse, antes de rematar diminuição irrevogável de liquidez. Por razões longas de enumerar, assisti há muitos anos a sessão em que guarda-livros lhe ia pondo cheques em frente para assinar, cada um deles sobre páginas que justificavam o dispêndio, e foi preciso sempre vencer a hesitação final.

 

Eu sou assim com médicos, sobretudo médicos que não conheça, e vou adiando o mais que possa. Depois habituo-me, mas mesmo os raros por quem ganho devoção – sem ela, consultas não servem de nada – visito espaçadamente. (Em parte, porque tenho a impressão de estar a tirar-lhes tempo com o meu moi haïssable).

 

Procurei ganhar tempo, como funcionário público sorna, mas sem perder de vista que o propósito da busca era encontrar o melhor especialista, cinco léguas em redondo. O meu endireita – na tabuleta diz osteopata e tem, a seguir ao nome, iniciais equivalentes, na arte dele, a óptima região de origem controlada – formou-se e trabalhou anos num centro reputado de neurologia, de maneira que comecei por lhe perguntar a ele. Comecei e acabei. Deu-me o nome e as coordenadas do especialista que deveria ir consultar.

 

Não era médico, tendo só direito a Senhor, e tinha agenda carregada mas, devido, segundo a secretária, a desistência, recebeu-me mês e meio depois do meu primeiro telefonema. O exame passava-se em duas sessões de duas horas, em dias diferentes. Acabado o primeiro dia perguntei-lhe o que achava. “Digo-lhe no fim” respondeu.

 

“O Senhor Terry é casado?”

“Sou, porquê?”

“O que é que eu digo à minha mulher?”

“Que não esteja preocupada” respondeu o especialista e sorriu, cúmplice.

 

Estou agora noutra de esquecimentos e a minha mulher acha que devo ir ver o Sr. Terry outra vez. Eu acho que não vale a pena porque continuo a saber de cor grosas de versos. “Tudo coisas que aprendeu quando era novo”. É verdade, mas fixei outro dia um poema de Saint-John Perse. Aqui vai, também para a leitora.

 

 

J'honore les vivants, j'ai face parmi vous.

Et l'un parle à ma droite dans le bruit de son âme

et l'autre monte les vaisseaux,

le Cavalier s'appuie de sa lance pour boire.

(Tirez à l'ombre, sur son seuil, la chaise peinte du vieillard.)

 

 

J’honore les vivants, j’ai grâce parmis vous.                                                                        

Dites aux femmes qu’elles nourrissent                                                                                      

qu’elles nourrissent sur la terre ce filet mince de fumée…                                                      

Et l’homme marche dans les songes et s’achemine vers la mer                                            

et la fumée s’élève au bout des promontoires.

 

 

J’honore les vivants, j’ai hâte parmis vous.                                                                        

Chiens ho! mes chiens, nous vous sifflons…                                                                            

Et la maison chargée d’honneurs, et l’année jaune entre les feuilles                                  

sont peu de chose au coeur de l’homme s’il y songe:                                                      

tous les chemins du monde nous mangent dans la main.

 

 

 

“My name is Zheimer, Al Zheimer” diz sempre o mano João quando se fala destas coisas. 

 

 

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

 

publicado por VF às 09:00
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