Mário Soares
1924-2017
O bey de Tunis
O bey de Tunis entrou na literatura portuguesa na manhã em que Eça de Queiroz se serviu dele para acudir a um writer’s block. Prometera na véspera ao director do jornal que teria o artigo pronto para ele no dia seguinte. O moço da tipografia que viera buscá-lo esperava no pátio, andando de um lado para o outro com botas que rangiam. Mas a noite passara, a inspiração não chegara e agora, entre a espada e a parede, Eça, sem outro tema que lhe passasse pela cabeça, resolvera atacar o bey de Tunis – com má consciência, porque o que sabia do bei dava este como homem perfeitamente estimável e, ainda por cima, julgava ter visto algures que ele tinha morrido. Pouco importava. “Em Tunis há sempre um bey” decretou – e deu cabo dele.
Ou pelo menos assim resolveu dizer aos seus leitores e ao também escritor Pinheiro Chagas a quem treplicava. Eça escrevera em artigo publicado numa revista duas passagens cujos conteúdos haviam indignado Pinheiro Chagas: que a nossa colonização no Oriente fora um monumento de ignomínia e que no começo do século XIX Portugal fora uma colónia do Brazil. Num artigo de jornal Pinheiro Chagas replicara, com argumentos recheados de erudição (num deles evoca as Molucas, levando Eça a perguntar-lhe na sua tréplica: “Pois todas as Molucas, Pinheiro Chagas?) e condenara Eça pela insuficiência do seu conhecimento e a sua falta de patriotismo. Agora Eça, com talento polémico e leveza de prosa muito superiores aos do outro, considera Pinheiro Chagas um brigadeiro da campanha do Roussilhão que “sabiam deitar fundilhos numas calças e estavam convencidos de que Deus era padre” e diz-lhe por fim “Você, meu caro Pinheiro Chagas, não ama a Pátria, namora-a”. Pretendendo fazê-lo para desculpar Chagas dos disparates que contra ele dissera, inventa sardonicamente a história do bey de Tunis explicando que sabia bem quanto a falta de inspiração era razão de tantos disparates que se publicam nos jornais. (Ou diz isto por palavras suas, melhores do que as minhas, porque cito de memória e não vale a pena contar outra vez à leitora quanto a memória é traiçoeira: tanto ou mais do que as mulheres garantiu-me há anos, sem estar bêbado, um marialva desmemoriado).
Os tempos não são bons. Estamos a poucos dias de Trump dispor dos códigos secretos, isto é mais perto do que alguma vez estivemos de uma guerra nuclear – e de muitas outras arrelias convencionais. E Mário Soares deixou-nos. Entre Setembro de 1974 e Novembro de 1975, sempre que vinha de Londres a Lisboa tentava ir ver, antes de quaisquer outros, o mais pessimista e o mais optimista dos meus amigos, traçava a bissetriz entre o que cada um deles me dizia e sabia em que Portugal estava. Mais tarde, com a Pátria outra vez pacata, quando Victor Cunha Rego se foi embora procurei tentar substituir o pessimismo dele pelo meu. Não foi fácil mas não foi impossível. Mas o optimismo de Mário Soares não o encontro em mim e fiquei agora sem saber em quem o possa encontrar.