Ano Novo, vida nova
Pelo menos desde a passagem de ano de 1986 a 1987 – isto é, a primeira já com Portugal membro das Comunidades Europeias – tal exortação exprimia ‘pensamento desejudo’ - assim o meu chorado Gérard traduzia ‘wishful thinking’ - e não previsão sensata dos dozes meses que se seguiriam, partindo evidentemente do princípio que a contagem não fosse interrompida por girândola nuclear, deliberada ou acidental, sempre possível quando a segurança de cada um dos dois lados é garantida pela convicção mútua de que quem sair a matar mata mesmo mas será morto também. Tão convencidos estávamos todos disso que, como o leitor “tenebroso e cruel e tonto e traste” que comprara sonetos garantidos por dois anos ao meu chorado Alexandre, críamos nos marcianos mas não víamos a bomba. Não víamos nem vemos. (Alexandre; Gérard: com a idade, os mortos vão-se metendo mais e mais nas conversas. Lembram-se de coisas de que nós já não nos lembramos).
Falo no réveillon de 1986 a 1987 porque o quarto quartel do século XX começou em Portugal de maneira mais animada que a dos nossos vizinhos da Europa Ocidental. Estes, engordados e anafados em casulo formado no abrigo do confronto Leste-Oeste, estavam tão iludidos pelo seu próprio bem-estar que se persuadiram de que viviam em paz por terem passado a ser bons, por terem deixado de querer matar os outros, sem perceberem que a paz lhes era imposta por russos e americanos, a quem zaragata aqui não conviria (salvo evidentemente se um dos dois tivesse previsto nela estratagema para enfraquecer fatalmente o outro, o que não aconteceu). A Rússia perdeu a Guerra Fria de dentro para fora (costuma dizer-se a URSS mas tal exactidão formal torna as coisas mais confusas em vez de as tornar mais claras) porque o seu sistema político se desagregou por si, tal como George Kennan, diplomata-historiador, previra em 1946 quando estava encarregado de negócios dos Estados Unidos da América em Moscovo, onde Estaline viria a declará-lo persona non grata.
Portugal era diferente. Em parte para fugirem à tropa em África, milhares de migrantes portugueses em França, Alemanha, e outros países europeus beneficiaram das trente glorieuses – ganhava-se sempre mais do que se tinha ganho no ano anterior – mas, nas parvónias de onde diziam que vinham, a melhoria tinha sido pouca. No começo de 1974 os portugueses não esperavam vida nova. Até que, de repente, veio o sobressalto de trocar África pela Europa, de passar de patrão dos pretos a criado dos brancos. De anacronismo serôdio a modelo do futuro, para alguns entusiastas - para gente sensata, menos pobreza e mais liberdade. E, passados uns anos de turbulência, tornou a ser ano novo, vida velha mas num patamar mais alto.
Este ano será de vida nova, não por mérito ou culpa própria: nós por cá todos bem. Mas Trump, Brexit, Putin, Estado Islâmico, tudo cada vez mais desigual e cada vez mais perto de tudo, vão meter-nos as novidades pela porta dentro, boas e más. Sobretudo más.