Deutschland über alles?
Ou não? Na eleição de António Guterres para Secretário-Geral das Nações Unidas houve episódio esquisito. Depois de 5 votos a feijões todos ganhos por Guterres e antes do sexto, o governo da Bulgária retirou a sua candidata, Directora Geral da UNESCO, senhora socialista que tinha o apoio da Rússia e, por instigação de Angela Merkel, nomeou outra, Comissária Europeia, de direita. Guterres ganhou também a sexta votação e veio a ser escolhido por aclamação pelo Conselho de Segurança; a recém-vinda búlgara de direita teve ainda menos votos do que a búlgara de esquerda (que se mantivera em liça, indigitada por outro país). O curioso da história é Merkel ter decidido meter-se ao barulho quando a vitória de Guterres estava assegurada. Houve escolhas para Secretário-Geral da ONU renhidas, num caso pelo menos exigindo coelho tirado à última hora da cartola para fugir a impasse de vetos cruzados. Mas este ano não. Ou Merkel foi mal informada pelos seus de como as coisas se estavam a passar ou julgou que apesar de tudo a sua vontade prevaleceria (mais provavelmente, mistura de ambas as coisas). Não prevaleceu. Será o proverbial canário da mina?
Oxalá. Quem trate há muito tempo de coisas europeias - nos milhares de reuniões, entra o ano sai o ano, em que diplomatas, burocratas, políticos e técnicos de (hoje) 28 países concertam posições sobre toda a espécie de assuntos – conheceu três fases distintas quanto à participação da Alemanha. Na primeira, durante aí um quarto de século a seguir ao Tratado de Roma de 1957 - criador do processo formal que levaria à União Europeia - a Alemanha derrotada, saindo aos poucos da ruína, envergonhada, não mostrava preferências próprias nem levantava a voz, cultivava europeísmo em vez de patriotismo, e era seguidora disciplinada de quaisquer consensos. Na segunda, começada no fim dos anos 80, a Alemanha, primeiro com a capital ainda em Bona e depois, de novo inteira, em Berlim, começou a dar sinais cada vez mais fortes e frequentes de hegemonia e de gosto por a exercer. (O anúncio, em Dezembro de 1991,de que ia reconhecer a independência da Croácia sem esperar por acordo a Doze foi marco importante de autonomia política reconquistada). A terceira começou em 2010 com a crise financeira e a austeridade, declarada política obrigatória no Sul da Europa para quem quisesse receber ajuda de “Bruxelas” (que compensou primeiro perdas de bancos alemães e franceses), e foi anunciada em termos moralistas ofensivos pela formiga germânica às cigarras meridionais. Grande responsável pelo marasmo económico europeu tem sido acompanhada, também noutros campos, por arrogância crescente de quase todo o pessoal alemão que participa nos milhares de reuniões europeias.
O descontentamento de outros europeus perante esta situação absurda cresce; talvez leve Berlim a mudar de rumo. É urgente que o faça antes de tanta cegueira acabar de vez com reabilitação alemã que parecia há 10 anos ter vindo para ficar.
NB Há gente a mais agora a dar palpites sobre política internacional. E aconselhar a Alemanha, de dedo em riste, a partir de um pequeno blog lisboeta parece néscio. Mas será? Em 1914 quando se soube no Cartaxo que a Alemanha invadira a Bélgica, o director do jornal da vila saltou de cadeira de barbeiro meio escanhoado e saiu a correr, anunciando que ia escrever artigo a escavacar o Kaiser. E o facto, como lembrou o advogado e dramaturgo Amilcar Ramada Curto que contou depois a história, é que o Kaiser perdeu a guerra.