Quarta-feira, 17 de Agosto de 2016

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Aniki-Bobó-1942.jpg

Aniki-Bóbó, 1942

 

 

 

 

 

José Cutileiro.jpg

 

 

 

Contas do Porto

 

 

 

A primeira vez que fui ao Porto estranhei que me aceitassem o dinheiro. Ia em trabalho e ao fim de meio dia na cidade parecia-me evidente que um escudo de Famalicão ou de Ponte da Barca incorporava muito mais capital e trabalho do que um escudo de Almodôvar ou de Vendas Novas. Eu tinha quase trinta anos, isto é, foi há muito tempo: antes da adopção do euro como moeda nacional ter atirado os escudos para museus de numismática onde já se mostravam réis e cruzados e maravedis; antes de, a seguir ao 25 de Abril, se terem mudado nomes às coisas pensando-se que assim se mudava a natureza destas (mas a Ponte 25 de Abril é a mesmíssima ponte que a Ponte Salazar e o país que adiante e atrás dela se vê não pertence nem mais nem menos ao povo do que pertencia no dia 24 de Abril de 1974); antes da morte do Doutor Salazar por mor de ter caído da cadeira de lona onde gostava de se sentar no forte de Santo António do Estoril - por ordem cronológica invertida destes acontecimentos.

 

Mais atrás ainda. Eu era elitista, sulista e arrogante. Aos 15 anos fora aprender a pintar no atelier de António Pedro, em Campo de Ourique, onde pintores do primeiro grupo surrealista português, a que ele pertencia, elaboravam um cadavre exquis (quadro colectivo de que cada autor só ia vendo a sua parte). Pedro era sábio: não me meteu em cavalarias tão altas; mandou-me fazer retrato a óleo de um boi de loiça das Caldas. Passados meses desisti de vir a ser pintor; depois Pedro foi para o Porto onde fundou e dirigiu durante anos o Teatro Experimental. Num fim de tarde de inverno chuviscoso encalhámos os dois um no outro numa paragem de autocarro na Praça dos Restauradores, em Lisboa. Depois de saudações efusivas, “Mestre” perguntei-lhe eu “Como é que se pode viver no Porto?”. António Pedro era alto, de traços finos, óculos e barbicha bem aparada. Lá de cima respondeu-me com bonomia: “Oh filho: o Porto é uma cidade de província da Europa. E Lisboa não é nada”.

 

Depois de longa ausência, entrecortada por visitas curtas com fito certo, passei o último fim da semana a flanar no Porto e o efeito desta vez foi fulgurante. Lança autoestradas para fora como os polvos lançam tentáculos, por cada uma delas se entra na cidade e se deita até à Ribeira, sem léguas de subúrbios pelo meio. E a actividade permanente que já há mais de meio século me parecera de outro mundo, acentuou-se ainda mais e varia nas muitas novas coisas que se vão fazendo. Estamos, diz-se agora, todos ligados pela internet mas haverá lugares mais intensos na ligação do que outros. O dinheiro, a moeda, hoje não me dá problemas, porque já nem é deles nem é nossa. Mas há outra coisa, mais funda. O Porto, pensei, é Portugal acordado. E que o tripeiro ainda ature o alfacinha talvez devesse espantar muita gente (escrevo à vontade por não ser nem um nem outro).

 

Mário Cesariny de Vasconcelos pôs o dedo na ferida de maneira incómoda: “Lisboa, capital do Porto”. Injusto? Talvez mas por aqui me fico.

 

 

 

 

publicado por VF às 21:46
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