Gaby Photo, Léopoldville, 1954*
Comemoro hoje o segundo aniversário da publicação de "Retrovisor, um Álbum de Família" com a resenha de Clóvis Brigagão, amigo de longa data, que acompanhou de perto o meu projecto e, pelo caminho, me deu bons conselhos. O texto não chegou a sair no jornal mas aqui não podia faltar, passe a imodéstia.
RETROVISOR – Um Álbum de Família
Vera Futscher Pereira
Lisboa, Rui Costa Pinto Edições, 2009
Nessa encantadora e elegante obra de arte literária, Vera Futscher Pereira revela-nos o âmago de um álbum familiar. Ali estão as origens remotas da família e de seus negócios, alguns deles exercidos em Salvador da Bahia e no Rio de Janeiro, de um Brasil ainda bucólico. Ali estão também os caminhos pacientemente construídos no presente e, finalmente, a oferta generosa do futuro à nova prole. Mais além do legado fotobiográfico, o que apreciamos é a tecedura criativa, muito bem elaborada, através de uma trama 'a descoberto' ... Retrovisor é totalmente aberto às aventuras e desventuras que o leitor, intruso?, quer saborear a cada página.
À sua arte se junta, sem descontinuidade, o delicado e sensível ofício, tenaz e reluzente, que adquire sentido como ato de amor declarado a tecer, fio a fio, palavra a palavra, o retrato privado da família Futscher Pereira: a lusofonia cosmopolita. Essa ilustrada fotografia familiar ganha sabor e notável dimensão ao incorporar na narrativa o rico contexto histórico com variados comentários do desenrolar sociológico, político, cultural e, porque não, psicológico desses dois tempos, o privado e o público. É pura prosa poética, sob a bela e brilhante composição gráfica, que a autora presenteia ao público, sem pieguice ou maneirismos.
Ao lado da estória da vida dos avós, dos parentes próximos, principalmente dos pais, Vasco e Margarida, de si mesma e dos dois irmãos Cristina e Bernardo, a navegar pelo mundo afora, a autora abre suas páginas aos acontecimentos do dia-a-dia – através de textos tanto seus como de vários comentaristas. Cabe aqui um parêntese sobre o significado dos textos. Primeiro os da própria escritora, alinhavados com graça e sensibilidade, como « ... a tentativa de reagrupar pessoas e lugares dispersos pelas rupturas da vida - e pela própria passagem do tempo ». Narra, de forma concisamente confortável, como andavam as coisas da família, da política portuguesa e do mundo, dos movimentos culturais, artísticos e literários, criados pela geração nascida nos anos 20 do século passado, mas que ainda ressoa aqui e agora, a desvendar as várias circunstâncias que percorrem as páginas, sem perder o fio da meada, num português refinado e claro. Anoto outras contribuições textuais: notas, telegramas, cartas e registros diplomáticos do embaixador Vasco Futscher Pereira, sempre impecáveis, em múltiplos sentidos e em especial notas, artigos e recortes de jornais sobre seu tempo como Embaixador em Brasília (75-77). Os poemas extraídos dos dois livros de Margarida Futscher Pereira: Lugar Comum e Bens Adquiridos, portuguesmente poéticos, como este: « temos que trilhar/piso difícil/para aprender/a saudade sem mácula» (p. 165). O artigo de Bernardo Futscher Pereira publicado em O Jornal (21/05/1982) “Reagan e Brejnev Trocam Galhardetes”, análise política intocável sobre a pressão da opinião pública nos estertores da Guerra Fria. Além de vários outros textos sempre muito bem contextualizados, destaco os diretos, firmes e literariamente muito bem escritos, de Maria Filomena Mónica de seu livro A Evolução dos Costumes em Portugal, 1961-1991.
Como forma de ilustração da estória familiar, que une geração e vida cultural – onde o mundo entra e participa dessa saga - a autora concebe, com gracioso apuro, uma obra que frui livre, a extrair toda a riqueza e vantagens literárias e estéticas de seu Retrovisor. Além de ser obra de leitura muito cativante e prazerosa, ela é recomendada para os estudos de sociologia e antropologia familiar, para cursos de artes gráficas, letras e jornalismo e até mesmo para os que gostam, estudam e pesquisam épocas e interações das relações humanas. Do abrir ao fechar as páginas de Retrovisor, o espelho recompõe todas as figurações, os textos, as imagens e, principalmente, as pessoas que de forma comovente, humana e precisa, Vera Futscher Pereira consagra em suas essencialidades.
Clóvis Brigagão
cientista político e escritor, brasileiro, viveu em Lisboa entre 1975-1979.
*Foto de capa de "Retrovisor" (Cristina, 1954)