Adeus Gutenberg
Sempre houve ricos e pobres, suspirava a avó Berta, católica apostólica romana (padre afilhado de missa do avô almoçava às vezes lá em casa), quando eu a vinha atanazar com horrores de injustiça social de cortar o coração que controleiro do PC ou entusiasta do MUD Juvenil ou sensibilidade própria agredida no liceu - educação primária caseira dera-me ilusões idílicas sobre o mundo – me houvesse trazido à atenção.
Era um mundo ainda em ordem. Contava ela que antes de começar a Guerra de 14 governava bem a casa com cinco tostões por dia e já no meu tempo de neto lia todos os dias às criadas o folhetim que saía na última página do Notícias de Évora, cuja complicada e ramificada intriga levava sempre mais do que um ano a fiar. Lembro-me do nome de um - A Toutinegra do Moinho - escrito por francês de nome afidalgado, salvo se fosse estratagema comercial para abrir ainda mais o apetite às leitoras porque, desde o Clube de Golf do Porto ao mais proletário sindicato do barlavento algarvio, passando pela feira da Malveira e pelo Grémio Literário, temos entusiasmo parolo por tudo quanto venha de fora. Numa das minhas voltas a Lisboa fui à loja de electrodomésticos do bairro e disse ao homem que queria um esquentador Junker. “Leve antes um Vaillant” respondeu-me ele. “Os Junkers já são feitos cá”.
Feito cá, feito lá; autores, jornais; tudo isto começa a soar um pouco anacrónico. Há dias o meu amigo Tom Friedman dizia no New York Times que a vida se complicara – e modernizara muito mais a ritmo inédito – em 2007, um ano antes da falência de Lehman Brothers e da magna crise que ainda está connosco quando progressos enormes em diversas áreas técnicas modernas cavaram mais – palavras minhas - a separação entre o mundo que nos criou e o mundo que crie quem nasceu depois da mudança de século. Em 2007 Steve Jobs lançou o primeiro IPhone, Facebook abriu-se a quem quer que tivesse endereço e-mail, invadindo o mundo, Twitter arrancou mesmo, os primórdios de cloud computing apareceram, Kindle pôs no mercado o livro electrónico, IBM produziu o computador cognitivo Watson que faz diagnósticos precisos e sugere tratamentos correctos, etc., etc.
E para além de tudo isto uma certa hierarquia de conhecimentos e a vigilância do respeito deles, garantidas pela invenção de Gutenberg e graças a ela largamente difundidas e validadas durante 5 séculos, tem vido a ser sacudida, às vezes mesmo obliterada, quando computadores e internet se oferecem à difusão equivalente de mentiras e verdades. O centro não aguenta as diabruras da periferia; mais: muita gente deixou de saber onde é o centro. Sentimentos de desenraizamento e desconfiança pululam; buscam-se valores seguros na família, na tribo, na nação, na pátria a qualquer preço moral: Brexit, Trump, Duterte nas Filipinas porque, contam o Pecado Original e outras mitologias, somos naturalmente maus. E como reza provérbio islandês: “Não há homem que não goste do cheiro dos seus próprios peidos”.
França, 1794
Mudam-se os tempos
Escrevo a 21 de Novembro, dia dos anos do Vasco Pulido Valente. De manhã lembrei-me dele quando tinha 14 anos ter dito ao pai, burguês de bem, inteligente, culto e informado (explicou-me como é que os romanos faziam a barba), engenheiro, opositor corajoso e coerente do regime salazarista, muito mais alto do que o filho que só deitou corpo no fim da adolescência. “Ah Pai, se eu tivesse a tua idade sabendo o que eu sei…” Na altura em que isto me vinha à cabeça, voz saída da telefonia do carro anunciou-me que era o dia dos anos de Voltaire.
O Vasco e Voltaire ao começo da semana – nada mau para antídoto de tanta patetice ignorante nos tempos que correm, disse com os meus botões. Devo-me ter distraído anos a fio e, pelas conversas que agora tenho tido e pelos jornais que agora tenho lido e pelos programas de televisão por que tenho saltitado, devemos ter andado (quase) todos distraídos porque recebemos com surpresa desagradável notícias sobre coisas acontecidas entre nós ou muito perto de nós de que (quase) ninguém estava à espera - nem bandarilheiros, nem apoderados, nem curiosos na tourada da política.
Vai-se um homem deitar à noite convencido de que os ingleses querem ficar na União Europeia e acorda de manhã para saber que afinal querem sair. Vai-se uma mulher deitar convencida de que o 45º Presidente dos Estados Unidos vai ser finalmente, à segunda tentativa, uma mulher sabichona e teimosa chamada Hillary Clinton, e acorda de manhã para saber que afinal quem ganhou foi um aldrabão inculto, novato em política e malcriado que entendia muito melhor os eleitores americanos do que a sua experiente rival e, ao contrário dela, lhes sabia falar ao coração – de tal maneira que eram capazes de esperar por ele 3 horas para um comício, ao frio, até à uma da manhã, sem arredarem pé. Ontem, na véspera dos anos do Vasco e do Voltaire, franceses da direita e do centro, à procura de alguém que pudesse bater Marine Le Pen, protofascista da Frente Nacional, na segunda volta da eleição presidencial do ano que vem – que ela irá à segunda volta é convicção geral – numa primária aberta da direita e do centro escolheram antigo PM de Sarkozy que as sondagens punham em terceiro lugar, beato metediço na vida dos outros, liberal à la Thatcher em economia (coisa rara no sentimento francês, cujo primeiro reflexo à vista de criança descalça na rua é achar que a culpa é dos Rothschild, em vez de achar, como Thatcher, que a culpa é da criança), com um fraco por - e muitas visitas à - Rússia de Putin. Se o propósito é encontrar quem junte o resto da França para derrotar a extrema-direita (como Jacques Chirac derrotou Jean-Marie, pai de Marine, noutra segunda volta, em 2002) parece-me má ideia: Alain Juppé teria sido melhor escolha mas é claro que há ainda, no Domingo, a segunda volta da final da primária.
Em cada francês vivem, enlaçados em coluna salomónica, um ci-devant et um sans culottes. Têm de pensar em tudo pelo menos duas vezes.
Lord Ismay, primeiro Secretário-Geral da OTAN, entendia que esta servia
"to keep the Americans in, the Russians out and the Germans down."
A partilha do fardo
A eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos da América foi tomada por muitas europeias e muitos europeus como uma ofensa e uma má criação. Nesse espírito, algumas administrações nacionais tão alapardadas ficaram (não se fazem coisas assim aos amigos!) que, por sugestão do alemão, vinte e cinco ministros dos negócios estrangeiros de países da União Europeia bem como a Alta Representante (vice-presidente da Comissão que põe outro chapéu para presidir às reuniões dos MNEs do clube: na União Europeia, diria Oscar Wilde, as coisas nunca são puras e raramente são simples) tiveram jantar de trabalho em Bruxelas para primeira troca de impressões sobre esse importante evento transatlântico (o inglês dissera que não deviam estar bons da cabeça, o francês lamentara educadamente ter obrigações mais importantes em Paris, o húngaro metera os pés pelas mãos com desculpas de mau pagador para disfarçar a euforia pro-Trump de Vitor Orban, primeiro ministro húngaro, e os três fizeram gazeta – o que, se nos lembrarmos que o Reino Unido e a França são os dois únicos estados-membros da União com forças armadas capazes de meterem respeito seja a quem for, mostra a aparente frivolidade do exercício).
Mas não há com efeito razão para grande tranquilidade europeia quanto à nossa defesa e à defesa dos nossos interesses. A OTAN, estabelecida em 1952, chama-se por extenso Organização do Tratado do Atlântico Norte e o Tratado do Atlântico Norte fora assinado em Washington em 1949 pelos Estados Unidos da América, o Canadá e uma dúzia de países da Europa Ocidental. Outros se foram juntando: quando Guerra Fria acabou havia 16 Aliados, depois foi um vê se te avias com todos os ex de Leste a quererem-se profilaticamente proteger da eventual sanha do Kremlin (já não existia U.R.S.S. mas a Mãe Rússia mete medo igual aos vizinhos; os que dizem que isso é mentira e que foram os Estados Unidos e seus aliados ocidentais que quiseram cercar a Rússia de perto, devem ser lembrados que os três países bálticos e a Polónia, vizinhos da Rússia e aliados na OTAN não foram por ela atacados militarmente desde o fim da Guerra Fria mas a Geórgia e a Ucrânia, também vizinhos dela mas fora da OTAN, o foram tendo além disso a Rússia anexado a Crimeia). Desde o começo que os Estados Unidos gastaram mais na defesa de todos do que os outros em absoluto e per capita. “Burden sharing” – a partilha do fardo – passou a ser pomo de discórdia mais vivo desde que a Guerra Fria acabou, tendo havido muitas discussões sobre o assunto, embora Clinton, Bush e Obama nunca tenham feito ameaças como Trump agora fez e nunca Bush e Obama tenham admirado Putin como Trump agora admira.
Nota Bene Portugal não foi dos primeiros assinantes do Tratado de Roma porque não era uma democracia e só entrou para as Comunidades Europeias depois de o passar a ser. Mas, sem o ser, assinou o Tratado de Washington e foi membro fundador da Aliança. Com coisas sérias não se brinca.
escrever
es.cre.ver
verbo
(do latim scribere)
Palavra que designa o acto de representar o pensamento por meio de sinais gráficos. Porém, por alguma razão se diz, geralmente, «fazer a lista das compras» e não «escrever a lista das compras». Neste sentido escrever é mais do que simplesmente redigir ou tomar apontamento. Daí que se diga muitas vezes «aquele é um tipo que escreve» para designar alguém que vá para além do apontamento ou da lista do supermercado. Este estatuto de nobreza (pobre) pode ser relativizado e enunciado em tom menor. Dizia o Pacheco (refiro-me a Luiz Pacheco), com a sua contundência habitual, que «não sou escritor, sou um gajo que escreve». A escrita tem ainda, no entanto, um prestígio imbatível: passar a escrito é tornar alguma coisa mais definitiva, alguma coisa que seja apenas do domínio do pensamento ou das intenções. Passar a escrito é oficializar, é tornar perene e solene. Se apenas se está a «escrever a alguém», isso quer dizer que se lhe está a enviar correspondência. Apesar disso, vivemos no império da oralidade, que é o do efémero, do atropelo, do esquecimento. Há coisas, porém, porventura demasiadas coisas, que só a escrever se pensam, que só escrevendo se dizem — porque as dizemos primeiro para nós. De outro modo, falhando a minúcia da expressão, embaraça-se o tempo na pressa da conversa e o pensamento, desatento, precipita-se na superfície escorregadia das palavras e das circunstâncias.
@ The Washington Post (em actualização)
O povo é quem mais ordena
Ah é? Ora toma lá que já almoçaste! Até as criadas ficaram consternadas: Ai a Dona Hilária, coitadinha, tão boa Senhora, depois de tudo quanto aturou ao marido apanhar com mais esta. O povo é quem mais ordena. O fazedor de TV- Realidade sabe que para se ser herói é preciso ser-se mau e meteu-se à obra, com veia de actor consumado. Fez troça de aleijados. Tratou as mulheres como no Antigo Testamento mas em calão de agora (calando fundo em almas evangélicas americanas: muitas mulheres votaram nele). Prometeu acabar com Obama-care, isto é deixar os pobres sem qualquer assistência médica, como estavam antes que só lhes faz bem em vez de viverem à custa dos outros. Rever os tratados comerciais de maneira a proteger o operário americano, isto é, decretar proteccionismo sempre que achar que for preciso para ser amado pelo povo (como nos anos trinta da Europa a caminho de fascismos e guerra). Tornar a pôr a tortura de suspeitos de terrorismo nas práticas de interrogatório militares e da CIA (waterboarding e “muito pior”). Aquecimento global é conspiração chinesa. Contra imigração clandestina, levantar muralha na fronteira com o México com o México pagar por ela. Tudo descrito em promessas eleitorais, porque o povo é quem mais ordena e ao povo não se mente mais do que ao clero ou à nobreza. (Há espíritos mal intencionados e já foram contadas quarenta mentiras por discurso em dias de inspiração, mas o povo gosta e o povo é quem mais ordena – em dias de menos inspiração, anda por vinte. Mentir, para o homem dos golfes e dos casinos, é um estado natural.
O efeito em nós, europeus, começa por medo de deixar de haver disposição americana para nos defender: há mais de meio século que contamos com ela e o susto faz frio na espinha. Além disso tudo quanto seja homófobo, misógino, racista, reacionário genérico (como nos medicamentos) animou imenso com a brutalidade tosca exibida por Trump e vai tornar mais difícil dia-a-dia de decência. O povo é quem mais ordena. Porque é que, quando a chamada classe política perde o fio à meada e tribunos populistas capturam o poder (às vezes, como Hitler, em eleições livres e limpas) e se instalam, estes são, invariavelmente, velhacos? De mesmo antes do nosso tempo: Lenine, Estaline, Hitler, Mussolini, Mao Tse Tung, Pol Pot… Não há um que se aproveite (os que agora parecem estar na forja - Putin, Erdogan, Orban - tampouco prometem virtude). De maneira que embora a democracia canse e pareça às vezes estar em risco tem-se acabado por voltar a ela à la Churchill. O povo é quem mais ordena. Mas quiçá isso mude. A democracia parlamentar talvez se tenha dado particularmente bem com a imprensa de Gutenberg e atribuições afins. Nas redes sociais de agora e do futuro previsível, onde sapiência e responsabilidade se diluem até ao desaparecimento, palpita-me que tudo possa ser diferente. Entretanto o povo é quem mais ordena - e um americano em cada quatro julga que o sol anda à roda da terra.
Hillary Clinton
A 7 dias de Broncalina do camandro?
Ou de Bernardette do caboz? Ou uma ou outra, tanto faz. Na segunda terça-feira de Novembro, próximo dia 8, os americanos dos Estados Unidos vão às urnas decidir o seu destino político – e o nosso. Toda a política é política local, disse famosamente Tip O’Neill, antigo presidente da Câmara dos Representantes em Washington, de origem tão irlandesa que em quase cinco décadas de serviço em altas instâncias do Partido Democrata nunca pôs os pés na Embaixada Britânica, porque os ingleses tinham sido os opressores coloniais, os responsáveis pelas terríveis fomes dos séculos XVIII e XIX no seu país, o Diabo na terra, e Tip não queria ser visto pelos outros irlando-americanos a comer o seu pão e a beber o seu vinho, tu cá tu lá com eles. Manteve essa ficção até ao fim, embora se desse com os ingleses como Deus com os anjos e os ajudasse quando tal fosse preciso.
Mas, para voltar ao aforismo de Tip, os grandes países têm vantagens sobre os pequenos (é certo que, neste ano da Graça de 2016, a pequena Valónia que nem chega a ser um país atrasou de vários dias a assinatura de acordo comercial muito importante entre a União Europeia e o Canadá e, como nos nossos dias o comércio externo é a única coisa pela qual a Europa ainda tem peso no mundo e se pode dar a algum respeito, houve gente que se assustou mas tudo foi depressa ao sítio assim que a questão de política interna belga que fizera a Valónia portar-se mal foi apaziguada – se eu fosse embaixador no activo acrescentaria nesta altura, entre parêntesis, ver meu 153). E há uma prática bizarra nalgumas organizações internacionais – parar o relógio da sala a poucos minutos da hora para a qual se programara o fim de uma reunião e só o deixar trabalhar outra vez quando se tiver chegado ao acordo pretendido, passadas horas, dias ou mesmo meses, podendo-se então olhar para o relógio e pretender que se acabou no dia e hora devidos. Começou isto quando Don Mintoff, zaragateiro marxista e populista, era primeiro ministro de Malta e inventava maneiras de tornar o seu país importante pela incomodidade que causasse aos outros. Por fim, para lidar com ele, teve de se inventar o conceito de “Consenso Menos Um”.
Entreténs de ricos para acudir a males menores. O que poderá estar à nossa espera na madrugada da próxima quarta-feira será um tsunami geopolítico de dimensões inéditas desde 1945, maior – para nós – do que o fim da União Soviética. A política local dos Estados Unidos, os interesses dos seus brancos pobres e dos seus fundamentalistas evangélicos, apostados uns em proteccionismo que os fechasse num casulo imune à globalização e os outros em Supremo Tribunal que recriminalisasse o aborto, poderá ganhar. A Senhora fez o que pôde mas, confessa, falta-lhe o jeito do marido ou de Obama, muitos não gostam dela e não se pode excluir que perca a eleição. Se tal acontecesse a ordem internacional sofreria sobressalto de consequências imprevisíveis para a Europa.